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Sérgio Buarque de Holanda inicia o primeiro capítulo de seu livro Raízes do Brasil, com uma reflexão bastante contundente, senão desanimadora:

A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando manter tudo isso em ambientes muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima, de outra paisagem. Assim, antes de perguntar até que ponto poderá alcançar bom êxito, a tentativa, caberia averiguar até que ponto temos podido representar aquelas formas de convívio, instituições e ideias de que somos herdeiros. (HOLANDA, 2001, p.31)

Voltemos ao começo de nossa história.

Sob a ótica de Darcy Ribeiro (1995), a chegada dos portugueses nas praias do que nem era Brasil ainda, foi um acontecimento. Acredita-se que os índios que os recepcionaram, na verdade não sabiam o que esperar daquela gente, na mesma proporção em que não sabiam o que esperar das forças divinas tais como o seu primitivismo as conhecia. Porém, não tardou muito, aquele povo crédulo seria, depois do pau-brasil, o produto mais valioso para Portugal. Logo após as primeiras décadas de invasão, só restara ao índio maculado, mazelento e sem futuro, negar a si próprio um passado indigno de ser vivido, sob a égide de uma cristandade que o apontava como um pecador, tentando forjá-lo tão civilizado quanto a sua inocência permitisse. Um panorama bem diverso daquele imaginado quando ainda dos encantos dos primeiros encontros.

“Só hoje, na esfera intelectual, repensando esse desencontro se pode alcançar seu real significado” (1995, p.44). No entanto, apesar da nossa história, apesar da identidade mestiça, apesar de tudo, e indicando uma deficiência da língua, os nossos dicionários disponibilizam os seguintes antônimos para “civilizado”:

Rude: incivilizado, rústico, desumano, feroz, incivil, boçal, bruto, agreste, inurbano, selvagem, indomesticado, bestial, improgressivo, inumano, brutal, bárbaro, tosco, cruel, bugre. Mal-educado: descortês, malcriado, altivo, insolente, desprimoroso, desatencioso, arrogante, seco, intratável, grosseiro, inconveniente, indelicado, grosso, pedante, presumido, impolido.

Ignorante: peco, burro, seco, obtuso, pateta, rombudo, lorpa, inculto, bronco, rombo, imbecil, idiota, tapado, estúpido, crasso.

Diante disso, o que esperar de ambas as partes, naquele encontro entre “civilizados” e um povo passivamente adjetivado por sua primal nudez e liberdade?

A incompatibilidade foi imediata. De um lado os índios agiam como sabiam, de forma polida e educada de acordo com seus costumes e as próprias normas de conduta. Logo, logo, passaram a produzir em conformidade com os critérios e sob a imposição dos invasores que, por sua vez, criavam fórmulas de persuasão e convencimento, presenteavam, assediavam, iludiam, castigavam, subjugavam em nome de mais uma conquista.

Naquele início, a defasagem evolutiva entre esses personagens foi responsável pelo derramamento de muito sangue indígena e muitas vitórias para os invasores. Mas por outro lado, foi o fator mais resistente ao subjugo, oportunizando ao índio a firme manutenção de sua identidade cultural, que ainda hoje se destaca claramente da europeia e da africana. Os negros, tão estigmatizados quanto os índios, resistiriam à subjetivação de maneira mais contundente, tendo contribuído com um patrimônio cultural inestimável para a formatação identitária brasileira.

Algumas das leis e regras impostas aos índios com o propósito de civilizá-los são bastante curiosas:

Defender-lhes comer carne humana e guerrear sem licença do governador, fazer‐lhes ter uma só mulher, vestirem‐se, pois tem muito algodão, ao menos depois de cristãos, tirar‐lhes os feiticeiros, mantê- los em justiça entre si e para com os cristãos; faze‐los viver quietos sem se mudarem para outra parte, se não for para entre cristãos, tendo terras repartidas que lhes bastem e com esses padres da Companhia para os doutrinar. (Apontamentos de coisas do Brasil, 8 de maio de 1558 in Leite 1940, p.75‐87 apud RIBEIRO, 1995, p.51).

De caráter jesuítico e teor sectário, subjetivador e permissivo, leis como essa criaram condições para ações que levaram à destruição “cerca de trezentas aldeias indígenas na costa brasileira do século XVI” em nome de Deus, da civilidade e da colonização, por meio de

portuguesa onde, ou triunfavam as reduções missionárias sob o comando das ordens religiosas ou a escravidão pelas mãos dos colonos. As demais povoações foram destruídas rapidamente e no lugar surgiram concentrações de contrabandeados africanos feitos escravos, destinados ao trabalho nos engenhos e nos portos; punhados de mamelucos e brancos pobres direcionados à criação de gado; índios, comparados a gado pelos colonos, incorporados ao empreendimento colonial como escravos, devido ao seu alardeado primitivismo parvo.

Embora com propósitos bem diversos daqueles de cunho colonizador, os jesuítas acabaram fracassando em sua missão salvacionista, ainda no primeiro século, por serem mais fiéis à Coroa e aos seus propósitos, do que à defesa dos índios gerando, com isso, uma população de alienados cujo destino foi uma indignificante aculturação e consequente indigência.

Nos séculos seguintes, apesar do imbróglio entre os poderes e a guerra premente entre Deus e os diabos, a obra colonial de Portugal frente a índios e negros foi radicalmente degradante.

Na composição social do país, o cunhadismo foi o primeiro tipo de arranjo que consistia em casar uma índia com um civilizado, criando laços parentais que resultavam em uma comunidade mista e, de certa forma, cooperativa.

Em 1532, a Coroa portuguesa cria as donatrias que dariam início às primeiras províncias distribuídas os agregados do trono, onde o índio deixa de ocupar a posição de parente e é destinado à escravidão, custando um quinto do valor de um escravo negro.

Em 1549, o primeiro governador a chegar ao Brasil já encontra vilas costeiras situadas estrategicamente, com a estrutura necessária para receber numerosos funcionários civis e militares, dentre eles artesãos, colonos, soldados, missionários, jesuítas e toda a sorte de profissionais necessários ao desenvolvimento e às rotinas demandadas por aquelas vilas. Instalou-se na Bahia, constituída com aquela gente que trouxera de Portugal, produzindo um sem número de mamelucos.

Os negros, por sua vez, trazidos da costa ocidental da África por volta de 1538, se originaram de tribos de língua e cultura diversificadas, e segundo Ribeiro (1995, p.114) pouca importância tiveram na formação daquela protocélula luso-tupi. No entanto, foram responsáveis por compor a “massa trabalhadora que produziu quase tudo que aqui se fez” e por se afirmarem definitivamente enquanto raça e cultura, presença inquestionável na expressão nacional.

O nheengatu ou língua geral nasce no século XVI com o status de língua materna, originada da mistura entre o português e o tupi, as quais continuaram a ser faladas

simultaneamente a ela. As três línguas só foram substituídas pelo português, que passa então a ser adotado como língua materna, no século XVIII, o que nos faz crer que a imagem apoiou intensivamente os processos comunicacionais por alguns séculos, já que aquele dispositivo linguístico não era um mediador claro e forte o suficiente para a integração dos discursos.

Ao final do século XVI, somando índios, negros e seus descendentes à população de religiosos, funcionários ligados à Coroa e comerciantes interessados no mercado europeu, o contingente colonial já equivalia, em número, a qualquer sociedade europeia.

Na medida em que o neobrasileiro foi se formando brasilíndio, afro-brasileiro, mameluco e enfim o mulato que foi o que prevaleceu por resistência, o brasileiro foi surgindo lapidado em sua estranheza, sem origem, brotando nação de uma poção heterogênea e resiliente. O que me faz refletir sobre quem são, verdadeiramente, os nossos pais. Sob a ótica de Ribeiro (1995, p.131), essa orfandade nos impeliu a sair da “ninguentude” assumindo a “própria identidade étnica: a brasileira”23.

Até o final do século XVII, a economia se baseava na produção de açúcar e tabaco, e na criação de gado. Outro negócio enriqueceu muita gente durante os três séculos que durou. Segundo Ribeiro, a escravidão era uma concessão real, legalizada que, de acordo com os estudos de Curtin, entre 1538 e 1866, trouxe para o Brasil nada menos que 3.216.800 negros. Mais assombroso ainda são os cálculos de Buescu que considerou a “taxa anual de reposição”: 6.352.000. (CURTIN, P. e BUESCU, M. apud RIBEIRO, 1995, p.162)

Nos primeiros sessenta anos do século XVIII, a extração de ouro e diamantes leva para o interior do país, principalmente para as regiões de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, áreas de posterior disputa entre paulistas e baianos, mais de sessenta mil pessoas.

Em 1698 nasce, na Serra do Espinhaço em Minas Gerais, o acampamento de Ouro Preto que evoluiria rapidamente para a cidade de Vila Rica do Ouro Preto em apenas trinta anos, em consequência da chegada de um grande número de imigrantes em busca de ouro. Nesse período a região somava uma população de quase cento e cinquenta mil habitantes, excetuando os índios e os neobrasileiros, número que evoluiu para dois milhões no final do século XVIII.

Somando Ouro Preto, Sabará e São João Del Rey a umas outras seis vilas aproximadamente, todas com excelentes condições para a extração de ouro e diamantes, Minas Gerais passou a ser a capitania mais populosa do país e a demandar uma série de serviços e

produtos provenientes de outras capitanias, movimentando economicamente a região que se desenvolveu rapidamente.

Para suprir a falta de tudo naquele interior inóspito, compravam o fumo e o açúcar do Nordeste, o gado do Sul, e escravos do Rio, porto de entrada e saída para Minas que, à época, tinha uma população inferior à de Ouro Preto. Mercadorias, escravos, imigrantes, ladrões, fome, comerciantes, tropeiros, mulas, doutrina, boiadeiros, prostitutas, bandeirantes e toda a sorte de interesses passavam pelas estradas mineiras que se transformaram no meio mais importante de comunicação e difusão do Brasil, criando uma rede de intercâmbio por todo o país, trazendo recursos e grupos humanos para o interior.

As tendências que lá surgiam, em todas as áreas, rapidamente eram absorvidas por outras regiões, de Norte a Sul, de Leste a Oeste, chegando a alcançar a Argentina. “Tudo isso fez de Minas o nó que atou o Brasil e fez dele uma coisa só” (1995, p.153). Como consequência, surgem novas e grandes cidades, compostas por todo o aparato imobiliário necessário à vida coletiva e social. O Brasil que até então era visto apenas como uma colônia ilhada da civilização passou a figurar como um triunfo comercial para Portugal.

Da urbanidade que se formou, nasceu um brasileiro rico que passou a patrocinar a exibição do seu poder por meio da arquitetura e da arte barroca.

Esgotado o ouro, esgotada a sangria, aquela região herdara não apenas dívidas, mas uma população majoritariamente de negros e pardos que, apesar das condições desfavoráveis, havia tido contato, por meio do Barroco, com o que havia de mais culto, refinado e erudito da expressão civilizada da época, a exemplo de artistas como os mineiros Mestre Ataíde e Aleijadinho.

Atualmente as etnias continuam com suas características culturais preservadas, porém inseridas, atuantes e dialogantes nessa identidade híbrida e contemporânea que congrega tantos outros olhares, e se distingue por suagenuína e recíproca generosidade.

Seu produto verdadeiro não foram os ouros afanosamente buscados e achados, nem as mercadorias produzidas e exportadas. Nem mesmo o que tantas riquezas permitiram erguer no Velho Mundo. Seu produto real foi um povo‐ nação, aqui plasmado principalmente pela mestiçagem, que se multiplica prodigiosamente como uma morena humanidade em flor, à espera do seu destino. Claro destino, singelo, de simplesmente ser, entre os povos, e de existir para si mesmos. (Idem, p.68)

O Brasil mostra os primeiros sinais de recuperação dos conchavos e esgotamento político no início do século XIX, junto com os últimos suspiros daquela essência barroca, que foi o que se plasmou de mais original em nossa identidade.

Só Ouro Preto, a primeira cidade brasileira a ser declarada tardiamente como Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade pelas Nações Unidas em 1980, preserva uma herança constituída por 25 igrejas barrocas construídas entre os séculos XVII e XVIII no centro histórico do município mineiro.