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A Estratégia Saúde da Família e o acolhimento às situações de violência intrafamiliar

Estruturar a lógica da atenção às necessidades de saúde da população exige mudanças tanto na concepção de saúde, como também, no modelo assistencial (MENDES, 1999). A concepção da saúde antes vinculada à ausência de doença e morte é, hoje, mais vinculada à noção de processo saúde-doença, à qualidade de vida, aos direitos sociais, à participação popular e à produção social, exigindo dialeticamente mudanças no paradigma sanitário, na prática sanitária, na reestruturação produtiva e transição tecnológica e na estrutura dos serviços de saúde (MENDES, 1999). Ao mesmo tempo, a dimensão cognitivo-tecnológica, também, sofreu influência destas mudanças, em especial, com relação à produção e utilização de conhecimentos e técnicas coerentes com os pressupostos políticos-ideológicos do projeto de produção social da saúde (MENDES, 1999).

O projeto de produção social da saúde, segundo Mendes (1999) e Feuerwerker (2005), se refere a um novo paradigma sanitário que busca superar o modelo biomédico e curativista, estes últimos pautados no paradigma flexineriano (MENDES, 1999). Mendes (1999) aponta

que em uma sociedade, por meio da produção social, poderá se produzir tanto a saúde como a doença. A compreensão sobre saúde passa, então, de uma condição de dependência de técnicas, especializações e compreensão mecanicista dos mecanismos do corpo humano, para um estado em constante construção, sendo produzida coletivamente, nas relações sociais e subjetivas. A produção social da saúde pode se inscrever, portanto, como campo de conhecimento na ordem da interdisciplinaridade e como prática social, na ordem da intersetorialidade (MENDES, 1996).

Nesse sentido, a Constituição Federal Brasileira de 1988, que instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS), inspirada na Conferência Nacional de Saúde de 1986, teve seu capítulo sobre saúde marcado pelo paradigma da produção social da saúde (SANTOS; WESTPHAL, 1999), ou seja, a definição de saúde atualmente se relaciona às estruturas sociais, a ter emprego, renda, moradia, ou seja, remetendo à qualidade de vida em vários aspectos. Diante disso, os princípios organizativos e doutrinários do SUS, bem como as características da APS, têm estreita ligação com este paradigma que almeja, portanto, responder às necessidades de saúde da população e à mudança do modelo de atenção em saúde, como proposto pelo movimento da Reforma Sanitária, desde a década de 1970.

Nesse cenário, novas práticas de atenção à saúde passam a ser exigidas para a produção do cuidado, especialmente pelas equipes de saúde da ESF, buscando atender às necessidades sociais de saúde e fazer valer o conceito ampliado de saúde proposto pela Reforma Sanitária e contemplado na Constituição Federal de 1988.

O trabalho em saúde, dentro do paradigma da produção social da saúde, se caracteriza como um processo relacional que se produz através do trabalho vivo em ato, ou seja, no encontro entre duas pessoas onde se estabelece um jogo de expectativas e produções, criando com isso espaços de escuta, fala, empatia e interpretações (FERREIRA et al., 2009b). Para a concretização desses elementos que citamos acima, como parte integrante do cuidado em saúde, o profissional pode lançar mão, em sua caixa de ferramentas, de tecnologias leves e leve-duras que incluem aspectos inter-relacionais do cuidado (a autonomia, diálogo, etc.) ou ele pode, também, apenas utilizar tecnologias duras, como os componentes de suas valises tecnológicas para a produção do cuidado, produzindo resultados distintos. As tecnologias leves e leve-duras podem compor a caixa de ferramenta do profissional, quando este tem como seu projeto oferecer qualidade de vida às pessoas e não apenas curar doenças. Já as tecnologias duras (máquinas, equipamentos, procedimentos) são procedimentos centrados no corpo biológico que adoece, buscando recobrar a saúde.

A prática do profissional da saúde se faz a partir de três tipos de valises tecnológicas: as leves, leve-duras e duras. No caso do médico, por exemplo, uma valise está articulada a sua mão e na qual cabem, o estetoscópio, bem como o ecógrafo, o endoscópio, entre vários outros equipamentos duros que compõem uma caixa de ferramentas tecnológicas formada por “tecnologias duras”; a outra está na sua cabeça, na qual cabem saberes bem estruturados como a clínica e a epidemiologia que expressam uma caixa formada por tecnologias leve-duras; e, finalmente, uma outra presente no espaço relacional trabalhador–usuário que contém tecnologias leves implicadas com a produção das relações entre dois sujeitos, que só tem materialidade em ato (MERHY, 2000, p. 109).

No contexto da ESF, a centralidade do cuidado está no trabalho vivo em ato e na utilização de tecnologias leves e leve-duras que organizam o cuidado ou governam as ações profissionais (FERREIRA et al. 2009b). O desejo ou a subjetividade da equipe de querer fazer, de querer atender às necessidades sociais de saúde, de incluir a subjetividade ou singularidade do sujeito em suas ações, também, compõem o trabalho vivo em ato e a utilização de tecnologias leves de cuidado (FERREIRA et al. 2009b), no contexto da ESF, permitindo, portanto, responder às necessidades sociais e subjetivas das pessoas, não só as biológicas, apontando, para possibilidades de inclusão de propostas de cuidado voltadas à questão da violência intrafamiliar.

Organizar projetos terapêuticos cuidadores que envolvem predominantemente o uso de tecnologias leves de cuidado em saúde, como a capacidade de escuta, função social em resolver e amenizar conflitos, reconhecer a singularidade de cada família e ajudá-las com sensibilidade e ética (MÂNGIA; MURAMOTO, 2008) demandam, “conhecimentos e práticas sociais na ordem da intersetorialidade” (MENDES, 1999, p. 241) e também, da integralidade, com ações de prevenção, promoção e recuperação da saúde, através do trabalho em equipe. São precisamente estas características da prática social, no contexto da ESF, que poderão acolher, também, as situações de violência intrafamiliar que envolvem crianças e adolescentes, seguindo o que vem sendo almejado pela PNRMAV e pelo Relatório Mundial sobre Violência e Saúde (BRASIL, 2001a; KRUG et al.; 2002).

A prioridade desses dois documentos, do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde, é apresentar ideias que centralizam o tema da violência no campo da saúde coletiva. No tópico a seguir, buscamos, portanto, centralizar as discussões sobre a violência intrafamiliar a partir das valises tecnológicas centrais que organizam a produção do cuidado na ESF (tecnologias leves de cuidado, a intersetorialidade, trabalho em equipe e a integralidade).

2.6 Atenção às situações de violência intrafamiliar no contexto da Estratégia Saúde da