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Além dos ajustes alimentares realizados no interior das unidades domésticas, há formas variadas de acesso aos alimentos considerados básicos, aqueles que são prioritários e que não podem faltar na alimentação das famílias porque faz parte do

habitus alimentar e conferem maior saciedade ao longo do dia. Todas as famílias

entrevistadas recebem ajuda alimentar com doações de alimentos os quais são considerados por eles como “básicos” ou a “parte grossa” da alimentação:

“É a parte grossa assim arroz, feijão, a massa, azeite, sal, farinha de milho.

“[...] arroz, feijão, açúcar quase sempre eu ganho na rua” (Marta).

“Tem um vizinho aqui que me dá erva, o filho dele tem 2 mercado, Seu João,

ali. Aí se o pacote que rasga assim sabe, que fura ele, o mercado não pode vender, aí o filho dele traz um monte. Aí ontem ele trouxe um quilo, esses dias me deu três quilos de erva” (José).

“Meu compadre, ele que me ajuda mora lá na salgado né, ele vem de lá e traz

coisa pra nós comer. Foi ele que ajudou na gravidez da Layze pra tipo, pra pega peso, porque eu não tinha muito peso quando tava grávida da Layze. Eu não tinha muito, ela nasceu bem pequeninha parecia um ratinho” (Lúcia).

“Graças a Deus sempre tem um ou outro que ajuda com o básico né” (Rosanita).

Outra estratégia usada pelas famílias em situações mais graves de fome e escassez de alimentos é encaminhar as crianças para a casa de vizinhos, amigos e familiares para fazer as principais refeições até a família conseguir alimentos novamente e não raras vezes a família toda vai visitar os parentes ou amigos para fazer alguma refeição principal devido a falta de alimentos.

“Aí quando não tem, não tem nada, eu mando a Layze e a Luyze comerem ali

na Salete (amiga/vizinha)” (Lúcia).

“Ontem nós saímos pra jantar fora no irmão dele. [...] De meio dia nós não

comemos. Pra elas eu servi o prato com o pouco que tinha. (Rosanita).

“Teve um dia que [...] elas (crianças) falaram que queriam comer né, aí elas

foram aqui pra uma vizinha, aí eu a Maria e a Raquel fiquemos uns três dias sem comer, só olhando um pro outro. Fazer o que né” (João).

Além da ajuda de doações outra estratégia de acesso aos alimentos é a ajuda financeira também na forma de doação, mas em dinheiro. Essa estratégia normalmente é realizada por familiares por isso ocorre naquelas famílias que tem parentes com quem podem contar em ocasiões especiais de restrição alimentar. A ajuda financeira é destinada prioritariamente para compra de alimentos, mas também pode ser usada para comprar fraldas para crianças ou medicamentos:

“Tem o irmão dela por mês ele manda, ele manda quanto 100 reais lá, daí eu

trago alguma coisa pra nós, mais agora ele não tem mandado mais, ta muito doente [...]. E o guri me ajuda aqui as vezes, meu guri mais velho, mora lá na outra rua, mas agora ele tá só de bico né” (João).

“Daí eu ligo pra minha mãe e peço dinheiro emprestado [...] Quando ela quer

sim, mas quando ela não quer, ela não ajuda” (Lúcia).

Menos frequente, mas também acontece é a troca de serviços por alimentos básicos. Essa estratégia é desenvolvida pelos homens da casa, conforme os relatos a seguir:

“[...] é só a senhora trazer a farinha e o que mais precisar que faço aí, fiz 6

pão pra ela, ela ficou bem faceira. Aí no outro dia ela levou 3 quilo de carne em troca do serviço” (João).

“[...] Não se eu fiz pros estranho não precisa tu me da 10, vou faze porque eu

quero faze, aí ela disse não esses 10 é pro senhor compra uma carne, então vou pegar se é pra comprar carne (risos)” (José).

Outra estratégia usada de forma frequente e regular são as sobras de comida que recebem de pessoas conhecidas do bairro e os alimentos disponíveis no lixo, esta última estratégia é usada em especial por uma família. Essa entrevistada é recicladora e costuma, segundo sua fala, “recolher muita comida da rua” aqui ela se refere ao lixo e “ganhar muita coisa na rua” incluindo alimentos que as pessoas dão:

“Sim, sim o que sobra nas panelas, eles almoçam daí se sobrou alguma coisa

daí eu já levo os potezinhos daí ela coloca nos potes, depois é só eu ir lá buscar. Aham é todos os dias. É arroz, é feijão, carne as vezes não sobra né, as vezes sobra pouco, as vezes não sobra, mas arroz, feijão, massa, salada. Salada de tomate, alface, repolho” (Marta).

“Um dia eu fui no lixo deles e tinha uns ossinho [...] Daí eu pedi pra ela, não

se tu puder guardar os ossinhos pra mim tu guarda que daí eu posso aproveitar. Daí assim foi. Daí eu sempre pego os ossinhos do irmão dela que faz churrasquinho. Ai depois esses dias, foi faz umas duas semanas que eu pego vianda lá, tipo é uma vianda né?” (se referindo as sobras de alimentos)

(Marta).

Quanto a participação das famílias em programas de ajuda alimentar ou mesmo de assistência social de entendidas públicas não houve relato positivo. Todas as famílias falaram a dificuldade que possuem para acessar, por exemplo, o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) que inclusive localiza-se no bairro onde moram, mas todas as vezes que foram não conseguiram ajuda:

“Tinha o CRAS ali em cima, daí eu fui lá no CRAS daí eu não consegui nada

no CRAS” (Lúcia)

Entretanto, em relação às entidades privadas ou associações o acesso é mais fácil. No próprio bairro Nova Santa Marta existem várias entidades e associações beneficentes e que desenvolvem trabalhos sociais, porém somente uma delas foi citada pelas famílias:

“A gente assim, a gente tem uma ajuda, por exemplo, tem uma associação de

recicladores na Santa Marta, uma senhora. Daí quando a gente precisa de algum alimento, que ela tem ela repassa pra gente” (Marta).

Por outro lado, algumas famílias desenvolvem estratégias mais contemporâneas de acesso aos alimentos utilizando as redes sociais:

“Daí no face tinha, eu publiquei naqueles nos grupos de doações, daí eu

comecei a pedi coisas porque eu não tinha nada [...]. Daí nisso eu conheci a Nívia [...] ela tem o Casa Espírita Social39 não sei [...] ela me ajudou, ela me

trouxe tudo, ela me trouxe enxoval pra Layze, trouxe fralda no hospital também e outra mulher junto com ela foi lá levou fralda, levo roupa porque eu não tinha. Carrinho eu ganhei, ela que me ajudou, me deu uma cesta básica sabe [...] Até eu peguei ela pra batizar, ela batizou essa daqui” (Lúcia).

Também ficou evidente na fala das famílias o constrangimento que elas têm de ter que pedir ajuda, por isso preferem ficar sem comer, recolher alimento no lixo ou contar com a solidariedade de amigos, vizinhos e alguns familiares do que pedir ajuda para entidades sociais ou mesmo para pessoas que não fazem parte da sua rede de ajuda e apoio. Todos referiram que essa situação os humilha e envergonha por isso só pedem ajuda nessas entidades ou instituições públicas e mesmo privadas quando não há alternativa porque mesmo se humilhando não conseguem:

“E eu sabe, ai eu sô assim eu odeio pedi assim sabe, pedi ajuda assim, por

exemplo, ir no, até na assistência social sabe” (Marta).

“Esses lugar não adianta a gente nem ir [...] e eu não gosto de tê que implora sabe [...]” (José).

Todas essas estratégias desenvolvidas pelas famílias são importantes para ter acesso aos alimentos, mas especialmente mostram como elas conseguem sobreviver e conviver com a fome diuturnamente no seu cotidiano. Contudo a situação de fome e escassez de alimentos submete essas famílias a situações de impotência, humilhação e desvalorização, pois algumas estratégias usadas são degradantes e ferem a dignidade da pessoa humana, uma vez que a fome está inserida num contexto de privação das capacidades humanas.

De modo geral, o estudo mostrou a importância da rede de solidariedade que as famílias estabelecem como principal estratégia de acesso aos alimentos baseadas em relações de amizade, confiança e familiaridade com amigos, vizinhos e parentes. A rede de ajuda e solidariedade também foi a principal estratégia encontrada no estudo de Arboleda e Ochoa (2013) e Aguirre (2004) os quais ajudam

39 A entrevistada se referiu a Sociedade Espírita Francisco Costa localizada no bairro Passo D’Areia em Santa Maria, RS.

os domicílios com alimentos básicos. Podemos inferir que, os princípios de equidade, ética, solidariedade e justiça social – características básicas de uma pessoa humana segundo John Rawls – estão presentes nessa comunidade talvez não como gostariam mas como é possível dada as circunstâncias de escassez vividas não só pelas famílias entrevistadas mas pela maioria das famílias da comunidade.

6.3 AS ESTRATÉGIAS DE ACESSO AOS ALIMENTOS E AS POLÍTICAS DE