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Capítulo 3 – Adoecidos e Descartáveis

3.6 Estratégias individuais de defesa

A desarticulação da coletividade tem impedido que a classe trabalhadora consiga impor limites à exploração e ao conjunto de mecanismos de opressão subjacentes à qual se encontra submetida e que ameaça sua existência não somente como força de trabalho, mas como ser humano genérico.

Neste contexto, de fragilização das práticas solidárias, alguns trabalhadores tendem a construir, como forma de minimizar o sofrimento, estratégias individuais de defesa. Essas estratégias, no entanto, “necessárias à proteção da saúde mental contra os efeitos deletérios do sofrimento, (...) podem também funcionar como uma armadilha que insensibiliza contra aquilo que faz sofrer” (DEJOURS, 2007, p. 36).

As estratégias individuais de defesa, assim chamadas nesta pesquisa por emergirem do contexto da fragilização dos laços coletivos, configuram-se na “tentativa de opor uma denegação à percepção daquilo que faz sofrer” (DEJOURS, 2008, p. 31). São também assim

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denominadas por estarem “voltadas basicamente para evitar ou tornar suportável o sofrimento”, apesar de no geral, não propiciarem transformações. (SELIGAMANN-SILVA, 2011, p. 368).

Apesar desse tipo de estratégia individual ser objeto de estudo também da teoria psicanalítica, a abordagem aqui apresentada se limitará à sua identificação como expressão das relações constituídas sob o capitalismo e acentuadas em função das formas de gestão do trabalho pautadas pelos pressupostos da acumulação flexível. Os exemplos a seguir buscam ilustrar essas situações.

Durante as entrevistas com os trabalhadores da General Motors, duas situações chamaram a atenção, ambas identificadas na planta da GM localizada em São José dos Campos/SP. A primeira delas diz respeito a um trabalhador133 que desenvolveu, conforme seu relato, lesões nos dois ombros, tendinite nos dois cotovelos e síndrome do túnel do carpo134 na mão direita.

A entrevista, como nos outros casos, transcorreu abordando sobre a organização e o ambiente de trabalho na GM. Com o avançar da conversa este trabalhador foi questionado, da mesma forma que os outros anteriormente entrevistados, sobre o processo de avaliação de desempenho. Contou que costumava ser bem avaliado. Disse que o fato de ser lesionado não o tornava “aleijado” e que não podia “se esconder atrás da lesão”. Em seguida afirmou que já havia realizado quatro cirurgias e que teria que fazer outras.

Diante das informações dadas sobre seu estado de saúde, foi questionado se sentia dor ao trabalhar, uma vez que essa é uma das características das enfermidades de natureza osteomuscular. Questionou-se também sobre como conseguia manter o ritmo de produção equiparado aos demais trabalhadores, apesar de ter desenvolvido tantas lesões.

A resposta veio na sequência. O trabalhador tinha desenvolvido um mecanismo particular para enfrentar o sofrimento ao qual outros trabalhadores adoecidos vinham sendo

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Trabalhador 5/ SJC. Entrevista realizada em 22/11/2013, em São José dos Campos/SP.

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Conforme o Ministério da Saúde do Brasil, a Síndrome do túnel do carpo é “caracterizada pela compressão do nervo mediano em sua passagem pelo canal ou túnel do carpo. Está associada a tarefas que exigem alta força e/ou alta repetitividade, observando-se que a associação de repetitividade com frio aumenta o risco. As exposições ocupacionais consideradas mais envolvidas com o surgimento do quadro incluem flexão e extensão de punho repetidas, principalmente se associadas com força, compressão mecânica da palma das mãos, uso de força na base das mãos e vibrações”. (BRASIL, 2001, p. 217)

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submetidos. “Tomo Tramal 37,5mg135 três vezes por dia”, disse, “além da injeção para dor que, quando estou trabalhando, tenho que tomar uma por mês. (...) É o único remédio que consegue aliviar a dor. (...) Você fica anestesiado”.

Anestesiava-se a base de remédios fortes e assim, ao longo da jornada, conseguia trabalhar com os demais, sem lesões. É claro que, conforme o próprio trabalhador admitiu durante a entrevista, sua estratégia de defesa estava piorando a cada dia sua condição de saúde. Ele tinha consciência disso. Afirmou sentir-se “como se fosse um robô” que, segundo explicou,

“trabalha, trabalha e, a partir do momento que você não precisa mais dele, você o descarta, joga fora e encosta no canto; é assim que o lesionado sente”, resumiu. “Nós somos simplesmente peça de reposição”, acrescentou.

Comportamentos próximos ao desenvolvido pelo trabalhador entrevistado por esta pesquisa têm sido relatados por outras investigações. São comuns, inclusive na General Motors, tal como indicaram os dirigentes sindicais e cipeiros entrevistados, casos de trabalhadores que, por medo de serem perseguidos e/ou demitidos, escondem durante o máximo de tempo possível os sintomas que indicam o desenvolvimento de LER/Dort.

Esse tipo de comportamento é denominado pelos pesquisadores de presentismo. “O indivíduo vai aguentando, continua a trabalhar, a produzir, ainda que menos, e só quando realmente não suporta mais é que vai para o benefício social. Em geral, o enquadramento é por auxílio-doença e, quando a pessoa retorna ao trabalho, é demitida” (SELIGMANN-SILVA, 2013, p.53). O presentismo pode manifestar-se como resultado de pressões para o aumento da produtividade, excesso de trabalho, assédio moral, entre outras variáveis. Esse comportamento, que pode ser considerado como um mecanismo de defesa, tende a agravar ainda mais a condição de saúde física e mental do trabalhador.

A segunda situação envolve um operário que desenvolveu, conforme seu relato, lesões nos dois ombros e na coluna lombar. Na ocasião da entrevista, contou que quando voltou de um dos afastamentos para tratamento médico, enfrentou dificuldades para ser inserido em uma atividade compatível com sua condição de saúde. Em função de seus problemas na coluna, desenvolveu medo de ser ridicularizado pelos colegas de trabalho. Em função disso, passou a

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Tramal 37,5 mg é indicado, conforme bula, para “dores moderadas a severas de caráter agudo, subagudo e crônico”.

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impor a si mesmo limites a seu deslocamento dentro da fábrica. Sua maior preocupação estava voltada para o horário de almoço, quando a concentração de trabalhadores no restaurante era grande. Conforme relatou,

eles não queriam arrumar lugar para mim. Aí até que uma vez chegaram para mim e falaram assim: “vamos colocar você no almoxarifado”. Só que o almoxarifado tinha coisas que não dava para eu fazer. Parece incrível, né? A gente que tem problema sabe. Se eu abaixasse muito, eu travava. Eu travei duas vezes dentro da empresa e fui mandado para o Vale [clínica]. Duas vezes eu travei lá dentro. Eu não almoçava dentro da empresa de tanto medo que eu tinha de travar no meio do caminho ou travar no restaurante. Eu não almoçava. Eu travei no meio do caminho uma vez, indo almoçar. (...) Chegou um momento que eu não queria almoçar. Eu tinha medo de travar e todo mundo olhar e começar a gritar “Olha aí o lesionado! Olha aí o braço curto! Não serve para nada mesmo!”. Eu ficava preocupado com aquilo. (Trabalhador 3/SJC)

Em ambos os casos, as estratégias de defesa utilizadas não foram capazes livrar esses trabalhadores da violência física e mental a qual todos, mesmo não percebendo, têm sido submetidos cotidianamente no chão de fábrica.

Na verdade, as duas situações são expressão evidente do sofrimento e da “negação do sujeito humano genérico”, tal como sugere Alves, “pelos constrangimentos da ordem burguesa” (2013a, p.128). Para o autor,

A desafetivação do ser-genérico do trabalhador assalariado – operário, empregado ou trabalhador público – explicita-se através da manifestação de adoecimentos e doenças do trabalho que atingem o corpo e a mente de homens e mulheres proletários que se submetem às relações sociais de trabalho capitalista, relações sociais caracterizadas pela subalternidade estrutural ao capital (ibid., p.128).

Chama à atenção a afirmação de um dos trabalhadores. Ao mesmo tempo em que afirma sentir-se reduzido a “um robô”, objeto “descartável”, expressão trágica da condição de existência estranhada a qual se encontram submetidos homens e mulheres sob o sistema do capital, este operário confronta sua redução à mercadoria descartável reafirmando sua condição de humana. “A gente não é máquina; um corpo de um ser humano não é igual ao do outro”, afirmou.

As estratégias individuais de defesa são manifestações contraditórias da subjetividade que emerge desses locais de trabalho. São resultado do confronto levado ao extremo entre o discurso gerencial humanizador e o trabalho na sua efetividade cotidiana. Em grande medida, tal

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como puderam identificar as entrevistas, entre esses trabalhadores restam poucas ilusões sobre o verdadeiro sentido da reestruturação produtiva e de seu arcabouço gerencial.

Apesar disso, involuntariamente, estas ações, restritas ao campo individual, tendem tanto a reforçar a ocultação da doença e seu enraizamento na crise estrutural do sistema do capital como acabam por fortalecer a ideologia da culpabilização do próprio trabalhador pelos “infortúnios” de sua vida. As ações individuais são um refúgio solitário. Nele esses trabalhadores buscam apoio para sobreviver em um ambiente de trabalho cujos laços de solidariedade foram rompidos, onde o individualismo e o impulso para a produtividade permitem que operários tratem seus colegas adoecidos como “vagabundos”, “braços curto”, entre outras expressões relatadas pelos entrevistados por esta pesquisa.

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