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Estratégias de sobrevivência e a ocupação como instrumento político dos movimentos socioterritoriais

MOVIMENTOS SOCIOTERRITORIAIS E SEUS REPERTÓRIOS NA DISPUTA NO E PELO TERRITÓRIO

2.1 CENTRO DE PORTO ALEGRE: ESPAÇO DE DISPUTAS E TENSÕES SOCIOESPACIAIS

2.1.2 Estratégias de sobrevivência e a ocupação como instrumento político dos movimentos socioterritoriais

Esta queixa do “não ter para onde ir” e “não ter onde morar” como manifestação recorrente da massa de trabalhadores e trabalhadoras urbanas passou a “ocupar” os centros urbanos com a “redefinição e uso do espaço”. Segundo a Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios – PNAD, o déficit já chegava a 7,757 milhões de moradias em todo o país em 2017, sendo que 91% das famílias atingidas pela falta de moradia são de baixa renda, com até três salários mínimos de renda familiar no início da década de 2010 (IBGE, 2015).

Ainda segundo Buonfiglio & Penna (2011) “os sem-teto não constituem um novo movimento social; são antes, uma nova expressão da histórica luta nacional por moradia, revelada por coletivos que estão à margem das políticas habitacionais e lutam para nelas, inserirem-se” (BUONFIGLIO; PENNA, 2011, p. 121). É essa massa humana que forma nos centros urbanos as condições para a atuação de movimentos socioterritoriais que transformam a queixa em um movimento de exigência.

Em Porto Alegre, as tensões sociais provocadas pelo déficit habitacional e pela atuação do poder público local no reordenamento urbano e também a partir de intervenções urbanísticas na região central remontam à segunda década do século XX, em especial a partir das remoções e intervenções realizadas em várias regiões da cidade, que deram origem ao bairro Restinga, no extremo-sul da cidade, ainda na década de 1960, dentre outros exemplos (NUNES, 1990). Na década de 1980, diversas outras formas de lutas por moradias foram desencadeadas nos bairros de periferia da cidade, em especial na Zona Norte, a partir da falência de empresas responsáveis por construir imóveis com o financiamento do Sistema Financeiro de Habitação, que resultou em intensas mobilizações e confrontos em bairros como Jardim Leopoldina, Cohab, Rubem Berta, Parque dos Maias, dentre outros (DIAS, 2009). Ou seja, a problemática da moradia já vem de longa data e a tática da ocupação e de organização das lutas pelo direito à moradia já foram experimentadas pelos movimentos socioterritoriais que atuam ao longo desse período na cidade.

Mas é na década de 2000 que a região central de Porto Alegre volta a ser protagonista da ação política de movimentos socioterritoriais que, ao observarem uma massa de trabalhadores e trabalhadoras que usavam o espaço do centro da cidade para construir seus territórios de trabalho e de subsistência, mas que, em consequência da informalidade do trabalho e falta de garantias legais como salário fixo, direitos trabalhistas e seguridade, os levava a enfrentar outras problemáticas, como a questão da mobilidade urbana e acesso a casa própria e à moradia digna20.

É a partir da realização das seguidas edições do Fórum Social Mundial - FSM em Porto Alegre21, que é tido até então como o maior evento de contraponto ao

neoliberalismo e antiglobalização dos últimos tempos, que movimentos e ativistas locais pelo direito à moradia passam a participar de articulações e círculos internacionais de debate e organização da luta pelo direito à cidade. Aquele ambiente de passeatas, ação direta, reivindicações, mobilizações, de agitação política e social acaba sendo assim o estopim para o que Miller & Nicholls (2013) chamam de espaço de politização e, assim, o centro da cidade volta a ser um espaço de formação e ação de movimentos que, além de mobilizar uma massa de despossuídos, de sem-teto e de desempregados, também passou a contar com articulações e relações em escala global. Tal condição lhes permitiu, assim, ampliar o seu debate político, as suas táticas e estratégias, como também a contar com uma rede de colaboração jurídica e política para promoverem a sua ação na luta no e pelo território (BUONFIGLIO, 2007).

Como vimos, a ação dos agentes empresariais que atuam no mercado imobiliário e dos proprietários de imóveis tem migrado, ao longo das décadas, para regiões mais valorizadas, o que ocasionou a produção de vazios urbanos na região central da cidade. No caso de Porto Alegre, há no centro da cidade inúmeros “vazios verticais”, produzidos pelo abandono tanto por proprietários privados quanto por órgãos públicos municipais, estaduais ou federais, que chamam a atenção para um “estoque” de edifícios inteiros fechados ou sem destinação (BUONFIGLIO, 2007, p. ix). Ao mesmo tempo que cresce uma massa de sem-teto que tem como principal queixa a falta de moradia; que essa massa passa a articular e a se organizar com movimentos e redes em múltiplas escalas que dão a esta queixa “bandeiras de lutas” e repertórios políticos para transformá-la em exigência; então o próximo passo será a

20 Nas entrevistas aplicadas durante o campo desta pesquisa esta é uma resposta recorrente quando os

participantes são questionados do porquê se organizaram nos movimentos socioterritoriais que reivindicam o espaço do CHPA.

21 Porto Alegre sediou quatro das cinco primeiras edições do Fórum Social Mundial, entre os anos de

materialização das lutas pelo direito à moradia e os vazios urbanos em espaços de politização e de reivindicação.

Para tal ação, a tática mais apropriada é a ocupação popular, ferramenta esta que muitos movimentos de luta pela moradia compreendem como aquela que tem uma finalidade bem clara – a negociação e a conquista da moradia e da qualidade de vida. Segundo estudiosos da teoria dos movimentos sociais brasileiros, há uma mudança de forma e ação desses movimentos que lhes dá uma nova identidade a partir de estratégias que passam da denúncia para a ação direta (mobilizações, marchas, passeatas, desobediência civil, negociações, ocupações etc.) e, também, pressões indiretas (GOHN, 2010).

Tais movimentos passaram, desse modo, a se articular com outras pautas e reivindicações, que também frequentam o ambiente urbano, como as causas identitárias (cor, raça, gênero, habilidades, capacidades e também aqueles que operam na formação de consciência crítica e geradores de saberes), e, assim, passaram a recrutar também militantes e ativistas dessas causas, que enxergam a ocupação popular como a construção efetiva de espaços de resistências políticas, culturais e sociais. Dessa forma, o tema das ocupações passa a mobilizar não somente os “descamisados”, “desempregados” e os “sem-teto”, mas também estes passam a ser acompanhados de ativistas sociais de diversas ordens, que lhes dão outros conteúdos e narrativas para arregimentar apoio e engajamento público, além de tensionar os agentes públicos e privados para a negociação e, assim, produzir conquistas positivas.

É nesse contexto que o CHPA passa a ser o espaço de atuação e politização e de produção de estratégias de sobrevivência para diversos movimentos socioterritoriais identificados com a luta pela moradia, que têm dentre os seus repertórios de ação coletiva a ocupação popular como instrumento político de enfrentamento aos agentes públicos e privados, que também reivindicam suas territorialidades no espaço urbano da cidade.

2.1.3 Movimentos Socioterritoriais e o conflito de apropriação no Centro