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Estrutura narrativa da memória para as Confissões

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CAPÍTULO 2 – ESTRUTURA NARRATIVA DE CONFISSÕES X

2.3. Estrutura narrativa da memória para as Confissões

O livro das Confissões pode ser dividido em três partes (o tempo do mundo, o tempo da autoconsciência de si e o tempo interno), sem desconsiderar a intenção descrita por Agostinho nas Retratações, de que os dez primeiros livros falam a seu respeito e os três últimos da Escritura.

O que será considerado é um tempo da alma no mundo, em que a narrativa gera um constante conflito do personagem entre a distentio animi e a intentio animi, por meio da rememoração.

2.3.1. O tempo do mundo – a dissipação – Não quem fui

No primeiro bloco, os livros de I a IX, Agostinho ordena de forma cronológica e narra seus hábitos morais e intelectuais sob um processo de rememoração em busca da verdade, que tem como peso o pecado. É necessário pontuar essa divisão ao marcar o livro I das Confissões com as narrativas do si de sua infância ao livro IX com a finalização, marcada na morte de Mônica, sua mãe, quando ocorre uma presentificação do tempo, em que a morte (finitude) da mãe fecha um ciclo de percepções e recordações do passado cronológico de uma temporalidade objetiva dos eventos mundanos marcada por culpas e desejos.

Na primeira divisão, dos livros I ao IX, Agostinho procura no tempo “passado- presente” da infância até a conversão extrair algo de essencial, ao narrar no “presente- passado” sua interioridade na busca de si mesmo e de Deus.

Quero recordar as minhas torpezas passadas, as corrupções de minha alma, não porque as ame, ao contrário, para te amar, ó meu Deus. É por amor do teu amor que retorno ao passado, percorrendo os antigos caminhos dos meus graves erros. A recordação é amarga, mas espero sentir tua doçura, que não engana, feliz e segura, e quero recompor minha unidade depois dos dilaceramentos interiores que sofri quando me perdi em tantas bagatelas, ao afastar-me de tua Unidade (Confissões II, i, 1).117

Ao narrar a infância e a adolescência, já se observa a articulação que Agostinho apresenta como procura da realidade, como pensa, a partir de seus critérios, sobre a memória seletiva e articuladora, ao reunir imagens da memória, reconstruindo o

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passado: “Eis as conclusões a que chego hoje, reconstruindo como posso o caráter de meus pais” (Confissões II, iii, 8).

O contato com a própria realidade já estava condicionado ao movimento do tempo. Ao reconstruir o passado e dizer como foi educado por meio dos pais, mas também apontar para um tempo interno que fala sobre a dissipação de si na juventude e a necessidade de amar.

E o que é que me encantava, senão amar e ser amado? Mas, eu não ficava na medida justa das relações de alma para alma, dentro dos limites luminosos da amizade. Do lodo dos desejos carnais e da própria natureza da puberdade emanavam vapores que me enevoavam e ofuscavam o coração, a ponto de não mais distinguir entre um amor sereno e as trevas de uma paixão. Uma e outra efervesciam confusamente em mim (...) Eu me agitava e me dissipava, ardia nas paixões da carne; e tu te calavas. Ó alegria que tão tarde encontrei! (Confissões II, ii, 2).

Captar o tempo é narrar seus conteúdos, a partir da transitoriedade, ao afirmar por meio de suas experiências vividas a finitude, a temporalidade e fragilidade da consciência humana. Agostinho percorre um caminho em busca da sua dissipação no tempo. Dessa forma, estrutura a realidade.

Onde estava eu quando te procurava? Estavas diante de mim, e eu até de mim mesmo me afastava, e se não encontrava nem a mim mesmo, muito menos podia encontrar-te a ti (Confissões V, ii, 2).118 Assim é, para que eu alcance aquele por quem já fui alcançado e me desprenda da dissipação dos dias antigos, seguindo ao Deus uno (Confissões XI, xix, 39).119

É importante observar que, embora haja pontos de referência e mudanças, Agostinho se submete ao movimento da realidade em questão em relação com a “Coisa” que se busca conhecer.120 Agostinho busca pela constituição de sua imagem e semelhança em união com Deus. Esse conhecimento não se refere à vacuidade das palavras, e sim à potencialidade de seu significado, por meio do olhar interior,

118 Confissões V, ii, 2. 119 Confissões XI, xix, 39.

120 O Mestre. No livro O Mestre, Agostinho faz um brilhante diálogo com seu filho Adeodato sobre a

importância do significado das realidades que são tidas em maior conta que os sinais ou os nomes. O conhecimento da coisa que é significada é mais valioso que os sinais, mesmo porque as realidades podem ser conhecidas sem sinais. Para Agostinho, falar é uma coisa e ensinar é outra, do mesmo modo, significar é uma coisa e ensinar é outra. As palavras não são suficientes para alcançar o conhecimento, pois elas demonstram certa vacuidade de conhecimento (p. 19-119).

desenvolvido em suas primeiras obras, nas quais é pontuada a busca pelo conhecimento da verdade, como, por exemplo:

Na verdade, ao aprender a coisa mesma, não acreditei nas palavras alheias, mas nos meus olhos. Entretanto, talvez acreditasse nelas para atender, isto é, para buscar com a vista o que ia ver (...) Ora, acerca de todas as coisas que inteleccionamos, não consultamos alguém que fala e produz um som fora de nós, mas a Verdade que preside interiormente à nossa mente, sendo talvez incitados pelas palavras a consultá-la. E aquele que é consultado, ensina: é Cristo, de quem se disse que habita no “homem interior” (Efésios 3,16-17), e é “o Poder incomutável de Deus, e a sempiterna Sabedoria”. A esta, de fato, toda alma racional é cunsulta; ela, porém, manifesta-se-lhe na medida em cada um é capaz de a receber, em razão da própria vontade, boa ou má. Se a alma alguma vez se engana, não é por defeito da Verdade consultada, do mesmo modo que não é por defeito dessa luz exterior que os olhos corporais por vezes se enganam. É manifesto que, para nos certificarmos acerca das coisas visíveis, recorremos a essa luz, para ela no-las mostrar, na medida em que somos capazes de as ver.121

2.3.2. O tempo da autoconsciência de si – quem sou e ainda quem sou

No segundo bloco, o livro X abre novo ciclo da temporalidade: o tempo não é percebido por uma temporalidade cronológica de narração dos fatos. Entretanto, trabalha um tempo interno, oscilante entre o já e o ainda, à procura da unidade e da verdade, que tem como fundamento o retorno a si mesmo nos livros de I a IX, passando a estruturar o tempo a partir do tempo experiencial, com nova ressignificação das experiências vividas e organizadas no presente, ao propor a discussão e os questionamentos sobre si mesmo (quem sou? o que sou agora?122 O que amo eu quando te amo?)123 e ao buscar a compreensão sobre o conhecimento de si e o conhecimento de Deus: entrelaçando o presente, o passado e o futuro, na busca da verdade no presente (“não o que fui, mas o que já sou e o que ainda sou”),124 tornando possível uma compreensão do elo entre os dois blocos. Considerado também enquanto imanente e transcendente, porque vai para além de si mesmo na busca da verdade, já no presente; e para si mesmo, no retorno a sua interioridade.

121 O Mestre. 103. 122 Confissões X, iv, 5. 123 Confissões X, vi, 8. 124 Confissões X, iv, 6.

O livro X das Confissões chama a atenção logo de início para um diálogo com Deus Pai e Criador, crescendo paralelamente na busca por Deus e pela Virtude da alma, ao estabelecer que se quer conhecer a Deus do mesmo modo como se é conhecido por Deus. Assim, para conhecer a Deus, Agostinho propõe o meio, ao se perguntar pelo que ama quando ama a Deus. Mostra a natureza humana do homem e a natureza humana e divina de Cristo. O Verbo assume características de ação na vida humana. Agostinho faz distinções entre interior e exterior, consciência e abismo da consciência. Apela ao homem interior ao esquecer, lembrar, recordar, ao contemplar a natureza humana e divina, ao “olhar” a semelhança e a dessemelhança na busca da imagem divina no ser humano. Após passagens detalhadas sobre a memória, segue o exame da consciência da fraqueza humana. Na sequência, o papel de mediador de “Cristo” enquanto homem novamente é afirmado: Deus em Deus, o lugar do Verbo na Trindade. Finaliza o livro com a figura do Filho unigênito, no qual há sabedoria e inteligência, e afirma reconhecer a imagem de Cristo na imagem humana pela redenção, por meio da consubstanciação da alma em Cristo.

Dado a considerar é o verbo cogito, que, de início, tem o significado de pensar e sofre a transformação e passagem da palavra ainda escrita literalmente, cogito, pelo significado de conhecer,125

a redenção. Talvez tenhamos aqui a questão-chave para a narração do movimento da alma, que culmina sobre a reflexão da existência e do ato do Criador que une inteligência, memória e vontade.

2.3.3. O tempo interno – ainda quem sou

O terceiro bloco é formado pelos livros XI a XIII. Trata-se do terceiro nível da estrutura temporal: o da consciência do tempo interno e objetivo, que tem como meta atingir um tipo de completude, que se constitui como mais “imanente” do que o tempo imanente, ou seja, uma recapitulação e confirmação do retorno à origem inseparável de Deus, por meio da exegese do princípio de todas as coisas sobre o tempo, o Gênesis e o significado da Criação. Desse modo, a narrativa apresenta um início, um meio, com seu

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(...) nam cogo et cogito sic est, ut ago et agito, facio et factito. verum tamen sibi animus hoc verbum proprie vindicavit, ut non quod alibi, sed quod in animo conligitur, id est cogitur, cogitari proprie iam dicatur (Confissões X, xi, 18).

(...) quoniam cogito pretium meum, et manduco et bibo et erogo et pauper cupio saturari ex eo inter illos qui edunt et saturantur. et laudant dominum qui requirunt eum (Confissões X, 43, 70).

clímax, e o final. A releitura do Gênesis abre e fecha a narração na origem da Criação e culmina na redenção pelo Criador por meio do Filho.

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