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CAPÍTULO 3 – HILDA HILST SOB O OLHAR DO PORNOGRÁFICO

3.2 O diálogo hilstiano com a pornografia e sua historicidade

3.2.4 A estrutura narrativa e a linguagem

Segundo Hunt (1999), até o século XVIII, o gênero dominante na estrutura narrativa da pornografia é o do diálogo. De fato, percebemos isso começando com Luciano e sendo estabelecido como modelo por Aretino. Geralmente, envolvia o diálogo de iniciação entre mulheres. Com o desenvolvimento do gênero romance, a pornografia também se modifica. Após o surgimento de Pâmela, de Richardson, por exemplo, as obras pornográficas de maior destaque adotam a forma de romance extenso, abandonando o modelo anterior.

Em Hilda Hilst vemos algo inquietante. Não há a captação da forma tradicional do diálogo usado pela pornografia até o século XVIII, entretanto, Contos d’escarnio. Textos grotescos estrutura-se de forma tão peculiar e trata de alinhavar gêneros tão diversos dentro do mesmo espaço, que também não nos permite dá-lo seguramente a alcunha de romance.

O narrador/personagem já inicia a história falando do seu método pouco ortodoxo de narrar e percebemos que iremos nos deparar com um narrador nada pudico nas primeiras páginas, mesmo sem termos sido avisados em momento algum do teor do livro que decidira escrever depois de ler tanta “bestagem em forma de letra”.

Realmente não há uma estrutura linear. Perceba que logo após falar da sua pouca simpatia por sequências ortodoxas, Crasso, de súbito, começa seus relatos ao contar como era visto na infância. Igualmente de forma repentina, após apenas seis linhas, pois não podemos falar em parágrafos, ao passo que também não fazem parte da estrutura desenvolvida por Hilda, já nos deparamos com um pequeno poema licencioso, que nos introduz às suas aventuras sexuais com uma das muitas mulheres com quem se envolveu:

A verdade é que não gosto de colocar fatos numa sequência ortodoxa, arrumada. Os jornais estão cheios de histórias com começo, meio e fim. [...] os verbos chineses não possuem tempo. Eu também não. A minha primeira safadeza foi meio atrasadinha. Eu já havia completado dezoito anos, mas sempre fui muito tímido, talvez por causa do nome, talvez por causa do jeito que papai morreu, todo mundo quando me via dizia: lá vai Crasso, filho daquela da crassa putaria, eu ficava com os olhos úmidos mas logo em seguida, apesar da minha timidez, mostrava o pau.

Otávia tinha pelos de mel.

A primeira vez que me beijou a caceta Entendi que jamais seria anacoreta Não me beijou com a boca

Avistamos aí a quebra na sequencia narrativa e o baralhamento de gêneros supracitado. O livro parece relacionar-se intimamente com o seu título. Em Contos d’escárnio. Textos grotescos temos a presença de diversos contos que aparecem, com exceção de “Lisa”, sem sobreaviso ao leitor. Junto a isso, temos a presença de textos pertencentes a gêneros diversos como receita, teatro e epístolas. O elemento grotesco presente no texto não é negligenciado pela obra e a permeia em diversos momentos. Muniz Sodré (1972) define o grotesco como “[...] o fabuloso, o aberrante, o macabro, o demente – enfim, tudo que à primeira vista se localiza numa ordem inacessível à “normalidade” humana” (p. 38). Vimos o grotesco em diversos momentos através dos contos aqui abordados, porém, vejamos como isso se dá em um texto, integrante do gênero receita, também oriundo do caderninho recebido por Clódia pelos pacientes do hospício onde ficou por um tempo. As receitas são precedidas pelo título “Pequenas sugestões e receitas de Espanto-Antitédio para senhores e donas de casa”. Todas elas são enumeradas com algarismos romanos, a seguir temos a “XIV”:

Compre uma galinha daquelas lindas, vermelhas, gordotas, que esqueci o nome. Ensine o seu filhinho (só até 8 anos, porque senão vira “Farra da Galinha”) a segurá- la (a galinha) abaixo das axilas, perdão, quero dizer das asas e naturalmente de costas para o seu rapazinho. Amarre o bico (da galinha, evidente) com um pequeno elástico colorido (para não fazer má impressão ao seu menino, a não ser que ele tenha tendências sádicas e aí, por favor não compre a galinha), para que a galinha não se vire subitamente e bique o piupiu do seu menino. (Isso não vai acontecer, madame, é apenas excesso de zelo do autor.) Ensine ao seu menino onde é o fiufiu da própria e deixe-os sozinhos na hora do recreio. Os dois vão adorar. Depois compre várias galinhas para que sua criança tenha opção de escolha. Instigue-o a convidar os amiguinhos da vizinhança. Para que as galinhas também tenham opção de escolha. Credo! Como é difícil o texto didático. (HILST, 2002, p. 34)

É impossível ignorar a atmosfera cômica criada por Hilst, não só nessa, mas em todas as receitas. Entretanto, vemos o elemento do grotesco representado pelo caráter demente do conteúdo das instruções e do feitio inacessível à normalidade humana no fato de iniciar uma criança de oito anos com uma galinha.

A respeito do grotesco representado pelo macabro, temos um conto em especial, onde alguns garotos encontram uma velhinha e seu cachorro na rua. Resolvem matá-la, comer seus

olhos e, de tanto apreciarem o sabor, também os olhos do cão. Há quem possa argumentar que o grotesco e também a comicidade presente em Contos d’escárnio. Textos grotescos, anulem o teor pornográfico do livro. No entanto, enxergamos tais características como um diálogo tanto positivo, no sentido de conservar e retomar características da pornografia nos diferentes momentos de seu trajeto, inovador, na perspectiva de justapor características que não eram e nem são comuns no universo da escrita pornográfica e talvez negativo, por apresentar alguns padrões do gênero de forma diferente das quais eles tradicionalmente foram maneados. O grotesco remete diretamente à pornografia libertina, principalmente a sadiana, enquanto o cômico pode estar presente, sim, na pornografia, pois o riso também é compreendido pelo obsceno, e a pornografia tem a obscenidade em sua natureza. Além disso, para Sontag a pornografia, mesmo em meio à comicidade, ainda é pornografia, pois esta é uma forma capaz de parodiar a si mesma (1987, p. 56).

Outro aspecto particular na estrutura da obra é que ela não se divide em capítulos, e os relatos, textos e episódios são separados por espaçamentos. Os diálogos presentes nos textos não são organizados de forma tradicional. Não há o uso de travessões e os aspectos ortográficos são utilizados de forma irregular. Hilda usa vírgulas em vocativos, respeitando a norma culta, mas, em sua maioria, não faz uso deste recurso em situações que, como escritora letrada, sabe que gramatical e literariamente deveria fazer. O uso de letras minúsculas, geralmente, é usado nos diálogos entre uma fala e outra. Porém, maiúsculas após pontos finais, interrogações, exclamações e em começos de frases também variam em seu uso: “ah, não não não, voltemos aos brasileiros que são aqueles, Líria, que tens mais à tua frente e dizes que são mais o quê? palavrudos, zombeteiros, metidos a fundo, cuzeiros, ai, Líria” (HILST, 2002, p. 101).

Ao mesmo tempo, Hilda usa um narrador, escritor de bandalheiras que está constantemente repensando a estética da linguagem dentro do próprio texto a partir da chularia: “A primeira vez que “a fodi” (ou que “fodi-a” ou que “fui fodê-la, é melhor?)” (HILST, 2002, p. 16). Em uma parte do livro, enquanto descreve a primeira vez que viu Clódia, mais uma vez banhado pela licenciosidade, repensa a linguagem, inclusive, fazendo referência à literatura clássica:

Um perfume de tenras ervazinhas inundou a igreja. Meu pau fremiu (essa frase aí é uma sequela minha por ter lido antanho o D.H. Lawrence). Digo talvez meu pau estremeceu? Meu pau agitou-se? Meu pau levantou a cabeça? Esse negócio de

escrever é penoso. É preciso definir com clareza, movimento e emoção. E o estremecer do pau é indefinível. Dizer um arrepio do pau não é bom. Fremir é pedantesco. Eu devo ter lido uma má tradução do Lawrence, porque está aqui no dicionário: fremir (do latim fremere) ter rumor surdo e áspero. Dão um exemplo: “Os velozes vagões fremiam”. Nada a ver com o pau. Depois, sinônimos: bramir, rugir, gemer, bramar. Cré, como dizia o padre tutor do Tavim, nada mesmo a ver com o pau. Meu pau vibrou, meu pau teve contrações espasmódicas? Nem pensar. Então, meu pau aquilo. O leitor entendeu. (HILST, 2002, p. 32)

Utilizar uma prática literária extremamente transgressora que é a de questionar a Tradição e ainda a própria linguagem literária, por meio do uso estilístico não convencional, usando como base uma ferramenta igualmente violadora e tachada, como vimos em capítulos anteriores, até mesmo de antiestética, é algo imensamente inovador. Se enquadra no diálogo de inovação que a autora faz com o gênero e há diálogo, pois, a pornografia está presente na obra, no entanto, seus elementos são trabalhados no uso de uma forma inovante do ponto de vista da tradição literária.

Ainda no plano da linguagem, Hilda faz jus a Aretino e diz “a coisa em si”, usando e abusando da chularia. Ao falar especificamente do vocabulário da literatura pornográfica, Maingueneau diz que:

[...] a literatura pornográfica não é um campo de atividade que lançaria mão de um vocabulário especializado como é o caso da marcenaria, da caça a cavalo ou da informática. Propriamente falando, ela não utiliza terminologia, constituída de termos unívocos, mas termos que recaem amplamente sob o domínio de tabus. (MAINGUENEAU, 2010, p. 81)

Como vimos em diversas citações diretas de Contos d’escarnio. Textos grotescos, Hilda faz uso de um vocabulário intensamente chulo e os tabus não se limitam apenas ao plano do vocabulário, mas vão além, através das temáticas como a pedofilia, incesto, zoofilia, entre outras. A maestria da autora está em conseguir colocar ao lado de tudo isso a reflexão sobre temas como a existência, a morte, o transcendente, enfim, a metafísica do ser. Rubito pergunta a Clódia sobre um dos contos de Hans: “é metafísica ou putaria das grossas?”, Hilda, ousa misturar o que é tido como óleo e água e, em sua obra, traz tal questionamento não como uma pergunta, e sim como uma assertiva de sinonímia.