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De acordo com as nossas pretensões metodológicas neste trabalho, nos guiaremos pela perspectiva de Gomes (2011) que considera este conceito, formulado por Raymond Williams, como uma hipótese cultural, ou seja, como um modo de entender as formas como distintas temporalidades coexistem no terreno da cultura, a partir de elementos dominantes e residuais. Williams abordou mais fortemente esta hipótese nas obras The Long Revolution (1961) e em Marxismo e Literatura (1979), mas depois disso, ela não encontra mais tanta atenção em suas obras. Embora dê conta de questões fundamentais para o pensamento do autor em relação aos Estudos Culturais e à comunicação, ele se configura como um conceito “difícil”, de aplicabilidade metodológica questionável (GOMES 2007; 2011), mas ainda assim, bastante relevante para pensamos nossas questões sobre gênero, televisão e cultura. De acordo com Gomes (2011), Estrutura de Sentimento representa o duplo esforço do autor, presente em toda a sua obra intelectual, de operacionalizar conceitualmente a sua compreensão da cultura como um modo inteiro de vida, e também o seu posicionamento político de enfrentamento do capitalismo. Porque é a partir das disputas tensionadas por esses elementos que podemos ter a mudança cultural, o surgimento de novas hegemonias. Hegemonia, para Williams, é o processo que define o cenário em que os limites e pressões são exercidas na cultura. Mas isso não significa a sobreposição de uma ideologia sobre a outra. A hegemonia é um campo de forças, em que as categorias do dominante, residual e emergente a todo tempo estão em disputa.

O dominante refere-se às praticas, valores e significados partilhados de modo predominante. Para se tornar uma formação hegemônica, o dominante precisa estar em constante reprodução. Para efetuar esse processo, ele pode, estrategicamente, apreender elementos da ordem do residual e do emergente. Em nossa sociedade (ocidental), por exemplo, boa parte das ideias que se configuram enquanto

41 dominantes vem da classe burguesa. O fato de muitas vezes não associarmos essa relação no tempo histórico demonstra os seus modos de reinvenção e interação com as práticas para manter-se enquanto dominante.

O residual refere-se aos valores e práticas que eram dominantes em tempo passado, mas que de algum modo podem aparecer reconfigurados no presente. Já o emergente se configura em oposição direta ao dominante, colocando-se num lugar de resistência e proporcionando novos valores e práticas. Williams ainda salienta os elementos de ordem alternativa, que não almejam oposição ao dominante, podem coexistir sem pretender uma ruptura; e também os elementos inovadores, que podem parecer emergentes, mas em realidade, operam sob os códigos dos valores dominantes a fim de reforçar o seu lugar de predominância. (SILVA, 2013). Estas categorias servem para nos falar das práticas, valores, normas, hábitos que no terreno cultural, orientam nossos modos de vida e organização. A interação complexa entre caracteriza o processo de hegemonia, que organiza esta coexistência e disputas.

(...) a hegemonia não é única; ao contrário, suas próprias estruturas internas são muito complexas e devem ser renovadas, recriadas e defendidas de forma contínua; pelo mesmo motivo, podem ser constantemente desafiadas e, em certos aspectos, modificadas. (WILLIAMS, 1979, p. 52)

Segundo Gomes (2011b), a dinâmica entre as categorias evidencia que Williams reconhece que o processo cultural é composto por distintas temporalidades - elementos da ordem do residual, do dominante e do emergente convivem no presente em disputa pela hegemonia. É esse processo que caracteriza as continuidades e rupturas convivem na nossa estrutura social e que só o processo histórico pode revelar. Esta interação é que nos permite ver, em um mesmo momento, como presente, passado e futuro se articulam (SILVA, 2013).

É a partir então deste raciocínio, que considera a dinâmica das categorias, que Williams formula a hipótese da Estrutura de Sentimento. Nesta expressão, Williams quer entender, numa perspectiva teórico-metodologica, como uma estrutura – as convenções, os elementos engendrados e firmes na nossa cultura – é tensionada pelos constrangimentos do mundo vivido, pela força dos elementos que conceitualmente são menos palpáveis, como ideologia, consciência, visão de mundo, experiências,

42 que é o que ele vai abrigar da expressão “sentimento” (GOMES, 2011). O conceito nos habilita a olhar, dentro do processo cultural, o que é da ordem do instituído e o que é da ordem do vivido. Em termos práticos, significa pensar nas instituições (na Língua, na Economia, no Jornalismo...) e nos modos como vivemos com elas. Então, o termo estrutura permite ver o que está culturalmente consolidado e “sentimento” ver o que está em fluxo, em transformação.

De todo modo, estrutura de sentimento se refere a uma experiência social que está em processo ou em solução, com frequência ainda não reconhecida como social. Com ele, Williams pensa poder acessar a emergência de novas características que ainda não se cristalizaram em ideologias, convenções, normas, gêneros. (GOMES, 2007, p. 16 - grifo da autora)

Em relação ao nosso trabalho, pensamos o gênero como o lugar do reconhecimento, da partilha de convenções, de práticas e códigos que definem um conjunto. A proposta de Williams ajuda-nos a pensar nos elementos que cristalizam essas suas formas, como configuram-se hegemônicas e como interagem com elementos de ordem residual, ou emergente, alternativa, inovadora. Nossa proposta, à luz da hipótese cultural da Estrutura de Sentimento, é a partir do processo histórico – que é por onde podemos ver essa interação passado-presente-futuro –, vermos como o programa se vincula historicamente a essas marcas convencionadas do gênero e como se dá a sua partilha de sentido, observando os elementos que o padronizam e quais os que escapam a esta condição - já que a hegemonia, da forma como entendemos aqui, está sempre em disputa. “Se concordamos que os gêneros são um elemento fundamental para a compreensão da relação televisão e cultura, devemos analisar os gêneros em relação com as suas transformações culturais na história” (GOMES, 2010, p. 38). Os gêneros midiáticos (televisivos, no nosso caso), operam sob condição contextual e por isso, fundamental considerar este processo para entender sua forma contemporânea.

Também não podemos prescindir desta abordagem para pensar o telejornalismo, de acordo com o nosso objeto empírico. É na análise das tensões estabelecidas entre as normas e as práticas culturais em torno do jornalismo e da cultura televisiva que vamos perceber como a obra atualiza as suas questões de gênero.

No âmbito da nossa proposta de considerar o gênero como categoria cultural, entendemos que a hipótese da Estrutura de Sentimento se vincula tanto ao mapa metodológico de Martín-Barbero quanto à proposta metodológica de Jason Mittell.

43 Quando propõe uma análise que considere eixos sincrônicos e diacrônicos, Martín- Barbero também chama para a importância da interação entre os elementos em distintas temporalidades na configuração do processo cultural. Jason Mittell, quando sugere que os gêneros operam em uma “estabilidade em fluxo”, convida-nos a pensar nos limites textuais que se conformam a partir de implicações contextuais e históricas.