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Ao terminar a exposição dos eixos teóricos e dos eixos empíricos sobre os quais está organizada esta tese, buscamos concluí-la estabelecendo as relações entre essas duas formas de abordagem da mesma realidade.

A realização de um curso universitário é um processo epistêmico, identitário e social. Esse processo se inicia antes mesmo da entrada na universidade, quando os estudantes decidem investir no ensino superior seu dinheiro e seu tempo, decisão guiada pela necessidade (mercado de trabalho) e pelo desejo. A necessidade expressa aspectos perversos do modo de produção capitalista, pois a universidade apresenta-se como obrigação a ser cumprida pelos trabalhadores da área da educação ou pelos jovens das camadas populares que buscam uma possibilidade de trabalho, com seus próprios recursos financeiros. O desejo expressa a capacidade de resistência do sujeito, a possibilidade do estabelecimento de relações não-instrumentais com os outros, com o saber e consigo próprios. Necessidade e desejo estão juntos, influenciam-se mutuamente, uma vez que são construídos em uma história pessoal inseparável da história coletiva, como propõem Silveira (1989), Sève (1989), Duarte (1993). A imagem da universidade e as expectativas de suas possibilidades de pertencimento a esse espaço são produto da origem de classe. A decisão de fazer o curso é o resultado da atividade do sujeito, da relação entre o desejo, a necessidade e as limitações objetivas. (Charlot, 1997, 1999, 2001).

Uma vez na universidade, o estudante deparar-se-á com a demanda de um novo tipo de relação com o saber, que denominamos relação acadêmica com

o saber. A inserção nesse novo tipo de relação convive com a relação prática

construída no senso comum. O sucesso no estabelecimento da relação acadêmica com o saber está associado, por um lado, às relações de saber estabelecidas com os professores e, por outro, à relação com o saber construída pelo estudante em sua trajetória escolar anterior; e depende de seu engajamento nas atividades relacionadas a essa forma de relação com o saber. É bastante útil para a compreensão da relação com o saber dos estudantes universitários prestar atenção ao desenvolvimento de sua relação com o saber-objeto. Ele consegue entrar nesse tipo de relação ou permanece mobilizado apenas em relação às possibilidades de inserção profissional representadas pela universidade? Essa parece ser uma chave para a compreensão da presença do estudante na escola. (Charlot, 1997, 1999, 2001).

A realização de um curso universitário pode significar ou não o estabelecimento de uma relação mais consciente com o mundo, com o conhecimento, com o trabalho, com os outros e consigo. Isso dependerá das condições objetivas da universidade e das possibilidades do estudante para transformar as informações recebidas em novas maneiras de olhar a realidade. Tal capacidade é inibida pelo atual contexto de valorização da educação como moeda de competição no mercado e pode ser estimulada pelas relações estabelecidas com os professores. (Duarte, 1993).

A realização do curso universitário implica a reconstrução identitária. Não sendo um elemento fixo nem completamente coerente (Charlot, 1999; Lahire, 1998, 2003), a identidade apresenta dominantes (Charlot, 1999; Ciampa, 1994; Codo,1994; Lane, 1994) que configurarão a postura do estudante que chega à universidade e suas reações às atividades propostas. O desenvolvimento do curso, o estabelecimento de relações e a realização de atividades vão servir para desenvolver e alterar a maneira como o estudante vê a si mesmo: o que é capaz de aprender, quem é como aluno (Charlot, 1997). Nesse processo identitário, é impossível separar objetividade e subjetividade, desejo e necessidade, história pessoal e história social. A construção da relação com o saber e sua expressão na universidade representam a atividade do sujeito a

partir dos limites e possibilidades de sua origem social. (Silveira, 1989; Sève, 1989; Duarte, 1993; Charlot, 1997).

O fato de estudar em uma universidade particular no interior tem implicações importantes no desenvolvimento da relação com o saber dos estudantes. Por um lado, é uma oportunidade - a universidade que está ali e na qual ele encontra seus pares (professores e colegas oriundos das classes populares). Por outro lado, é a negação de um direito, e o impedimento, em função do custo financeiro, do acesso a outras oportunidades educativas, como a compra de livros e a participação em congressos fora da cidade.

As questões de etnia e gênero acompanham as questões de classe na definição da trajetória dos estudantes e nos aspectos identitário, social e epistêmico de sua relação com o saber. Tal relação é sexuada (Charlot, 1999) e étnica.

No caso do município de Governador Valadares, a realidade de um importante fenômeno migratório influencia a construção, pelos estudantes, dos sentidos que atribuem à universidade e de sua atuação nesse espaço. Migrar para trabalhar ou fazer um curso superior são as duas possibilidades, no contexto do município e da região (que oferece poucas oportunidades de trabalho e renda) de prosseguir buscando uma vida melhor. Levantamos a hipótese do estabelecimento, pelos sujeitos da pesquisa, de uma relação de oposição entre essas duas opções.

Os aspectos acima levam-nos a concluir que a relação com o saber dos estudantes do ensino superior privado comunitário do município de Governador Valadares pode ser compreendida através da metáfora do viajante que conhece o mar, desconhecido de sua família, daqueles de seu meio. Na universidade, é necessário aprender uma nova língua e reformular posturas. Desenvolve-se um processo de inserção no espaço universitário e o domínio da relação acadêmica com o saber (em diferentes graus, dependendo da relação anteriormente estabelecida com o saber e com a escola). Nesse processo, a família (que não domina a relação acadêmica com o saber

adquirida na universidade) é importante como apoio, objetiva e subjetivamente. A instituição universitária e os professores são também importantes, estimulando ou limitando esse desenvolvimento. Esse processo é o resultado da interação das forças do desejo, da necessidade e das limitações objetivas.

Metodologicamente, propusemos a realização de uma pesquisa da qual a pesquisadora fosse parte integrante. Assim, assumimos que minha experiência profissional foi a origem da constituição do objeto de pesquisa – minha necessidade de compreender melhor o que me acontecia. Mostramos em alguns pontos da tese como minha própria relação com o saber influenciou a escolha dos entrevistados e minhas intervenções na entrevista. Voltando o olhar para a análise dos dados coletados, percebo que essa influência permanece – a simpatia por certos alunos e por certos tipos de relação com o saber parece ter influenciado o espaço que dediquei a cada um dos entrevistados, o quanto deixei que cada um deles falasse na tese. Da mesma maneira, minha atuação como professora em uma universidade privada do interior dificulta a tomada de posição em relação a uma das duas formas diferentes de analisar esse setor. Na verdade, também para mim essa universidade é oportunidade e limite.

Finalmente, a analogia da viagem aplica-se também à atividade de pesquisa. A pesquisa exigiu que eu partisse (no sentido de deixar) de algum lugar e significou, para mim, um processo de reconstrução identitária. Eu também experimentei, no doutorado, a experiência de não possuir e de buscar adquirir uma relação diferente com o saber, através das relações com minha orientadora, com meus alunos, com os sujeitos da pesquisa e com os autores consultados. Enfim, também a pesquisa (e esta pesquisa) é o resultado da interação das forças do desejo, da necessidade e das limitações objetivas.

Esses três aspectos já estavam presentes no poema de Adélia Prado, que empresta um de seus versos para a epígrafe desta tese. Em reconhecimento à autora do poema, aos leitores da tese, e atendendo a meu próprio desejo, transcrevo a seguir todo o poema.

Desenredo

Adélia Prado

Grande admiração me causam os navios e a letra de certas pessoas esforço por imitar. Dos meus, só eu conheço o mar.

Conto e reconto, eles dizem 'anh'.

E continuam cercando o galinheiro de tela.

Falo da espuma, do tamanho cansativo das águas, eles nem lembram que tem o Quênia,

nem de leve adivinham que estou pensando em Tanzânia. Afainosos me mostram o lote: aqui vai ser a cozinha, logo ali a horta de couve.

Não sei o que fazer com o litoral.

Fazia tarde bonita quando me inseri na janela, entre meus tios, Horas e horas conversamos inconscientemente em português como se fora esta a única língua do mundo.

Saberemos viver uma vida melhor do que esta, quando mesmo chorando é tão bom estarmos juntos? Sofrer não é em língua nenhuma.

Sofri e sofro em Minas Gerais e na beira do oceano. Estarreço de estar viva.

Ó luar do sertão,

ó matas que não preciso ver pra me perder,

ó cidades grandes, Estados do Brasil que amo como se os tivesse inventado. Ser brasileira me determina de modo emocionante

e isto, que posso chamar de destino sem pecar, descansa meu bem-querer.

Tudo junto é inteligível demais e eu não suporto. Valha-me noite que me cobre de sono.

Estremecerei de susto até dormir. E no entanto é tudo tão pequeno. Para o desejo do meu coração o mar é uma gota.