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UM ESTUDO DOS GÊNEROS TEXTUAIS: GÊNEROS COMO EVENTOS SÓCIOCOMUNICATIVOS

2.2 A ESCOLARIZAÇÃO DA LEITURA E ESCRITA

2.3 UM ESTUDO DOS GÊNEROS TEXTUAIS: GÊNEROS COMO EVENTOS SÓCIOCOMUNICATIVOS

Os gêneros textuais não se caracterizam como formas estruturais estáticas, cristalizadas e totalmente definidas. Segundo Marcuschi (2002) são muito mais famílias de textos que se caracterizam enquanto atividades sócio-discursivas. Bronckart (2003), ao definir os textos como produtos da atividade humana que estão articulados às necessidades, aos interesses e às condições de funcionamento das formações sociais nas quais são produzidos, diz que foram elaborados, ao longo da história, diferentes espécies de texto. Essa diversidade vem suscitando, desde a antiguidade grega, uma preocupação com sua

delimitação ou nomeação, que são centradas, na maioria dos casos, na noção de gênero de texto.

Segundo Bronckart (2003) para Diomedes e Aristóteles, a noção de gênero aplicava-se apenas aos textos com valor social ou literário reconhecido. Foi a partir de Bakhtin (2000) que essa noção passou a ser progressivamente aplicada ao conjunto das produções verbais organizadas, sejam escrita ou orais. Para ele:

A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa. (Bakhtin, 2000, p. 279)

Ao fazer um estudo do enunciado, entendido por ele como unidade real da comunicação verbal esse autor questiona os estudos que buscam segmentar a língua em unidades fracionadas como as fônicas - o fonema a sílaba, o grupo acentuado -; e as significantes - a oração e a palavra -, dizendo que esses são problemas marcados por um conhecimento fragmentário e que se explicam devido ao fato das questões do enunciado e dos gêneros do discurso terem ficado, até então, quase intocados. Para Bakhtin (opus cit) :

A fala só existe na realidade, na forma concreta dos enunciados de um indíviduo: do sujeito de um discurso – fala. O discurso se molda sempre à forma do enunciado que pertence a um sujeito falante e não pode existir fora dessa forma. Quaisquer que sejam o volume, o conteúdo, a composição, os enunciados sempre possuem, como unidades da comunicação verbal, características estruturais que lhes são comuns e, acima de tudo fronteiras claramente delimitadas.(BAKHTIN, 2000, p. 295)

Essas fronteiras são marcadas pela alternância dos locutores, uma vez que todo enunciado comporta um começo e um fim absoluto. É no diálogo real, considerado como forma clássica da comunicação verbal, que se observa com mais clareza essa alternância dos sujeitos falantes. Esta relação entre enunciados é diferente da natureza das relações existentes entre as unidades da língua como palavras e orações por isso não se prestam a uma gramaticalização.(BAKHTIN, opus cit).Essa totalidade do enunciado é determinada por três fatores que estão ligados de forma indissociável ao todo orgânico do enunciado. São eles: o tratamento exaustivo do objeto do sentido; as intenções do locutor e as formas típicas de estruturação do gênero do acabamento.

Detendo-me apenas no terceiro fator, que está estreitamente relacionado com a discussão aqui proposta, o que se percebe é que as intenções de fala do locutor se realizam a partir da escolha de um gênero do discurso. Escolha essa que, como explica o autor, é determinada pelas características específicas de uma dada esfera da comunicação verbal, das necessidades de uma temática e da imagem que se faz dos interlocutores. Essa discussão aponta então para o fato de que no processo de comunicação verbal temos sempre de lançar mão dos gêneros do discurso que têm uma forma padrão relativamente estável de estruturação de um todo.

Em outras palavras, podemos dizer que em todos os eventos de uso da fala moldamos a nossa atuação às formas dos gêneros que podem ser mais plásticos, maleáveis e criativos ou padronizados e estereotipados, de acordo com o contexto da interação verbal. Nesse sentido Bakhtin ressalta que os gêneros nos são dados da mesma forma que a língua materna, que dominamos, intuitivamente, mesmo sem ter realizado um estudo formal desta. Assim, entendo, como o autor, que:

As formas da Língua e as formas típicas de enunciados, isto é, os gêneros do discurso, introduzem-se em nossa experiência e em nossa consciência conjuntamente e sem que sua estreita correlação seja rompida. [...]Os gêneros do discurso organizam nossa fala da mesma maneira que a organizam as formas gramaticais (sintáticas). (BAKHTIN, 2000, p. 301,302)

Em seu estudo dos gêneros, Bakhtin (2000) propõe a distinção entre o gênero de discurso primário (simples) e o gênero de discurso secundário (complexo), ressaltando a heterogeneidade existente entre eles, uma vez que abarcam, desde uma curta réplica do diálogo cotidiano até um romance de vários volumes. Os gêneros primários se constituem em circunstâncias de comunicações orais mais espontâneas, e pertencem ao cotidiano, à vida privada. E os segundos, seriam transformações dos gêneros primários que aparecem principalmente na linguagem escrita fazendo parte das instituições públicas. A diferença essencial entre os dois, conforme Bakhtin (opus cit.) está nas circunstâncias em que aparecem. Os gêneros secundários do discurso como o romance, o discurso científico e outros são próprios de situações de comunicação mais complexas e relativamente mais evoluídas. No processo de formação esses gêneros, segundo o autor, absorvem e transformam os gêneros primários que, por sua vez, ao se tornarem componentes dos gêneros secundários, perdem sua relação imediata com o contexto em que foram formulados. É o caso dos diálogos cotidianos ou das cartas, que, inseridos em um romance, passam a fazer parte do todo do romance, concebido como fenômeno da vida literário- artística e não do cotidiano.

A importância da distinção entre essas duas famílias de gêneros na visão de Bakhtin (opus cit) está em elucidar e definir a natureza do enunciado. Assim, é a inter-relação entre os gêneros primários e secundários, e o processo histórico de formação dos gêneros secundários, que leva à constituição do gênero do enunciado.

Os enunciados e o tipo a que pertencem, ou seja, os gêneros do discurso, são as correias de transmissão que levam da história da sociedade à história da língua. Nenhum fenômeno novo (fonético, lexical e gramatical) pode entrar no sistema da língua sem ter sido longamente testado e ter passado pelo acabamento do estilo gênero. (BAKHTIN, 2000, p. 285)

Com essa afirmação, o autor mostra como a língua escrita é marcada pelos gêneros do discurso tanto os secundários (literários, científicos, ideológicos), como os primários (aqueles que caracterizam as interações cotidianas dos círculos familiares, reuniões sociais,etc.).O que ocorre é uma incorporação da língua popular pela escrita, acarretando modificações e transformações em todos os gêneros que se renovam e possibilitam a compreensão melhor da natureza das unidades da língua.Com isso, pode-se afirmar que os gêneros do discurso organizam tanto as nossas produções discursivas como as formas gramaticais e que, todos os usos linguísticos são situados no espaço e no tempo, e resultados de práticas sociais testadas e desenvolvidas que se realizam nos gêneros.

O que Bakhtin (opus cit) frisa ainda é que um texto está sempre se relacionando com os outros textos que o precederam e que o sucederão, constituindo-se assim um elo na cadeia de comunicação verbal. O significado de um texto não se limita apenas ao que está nele, mas advém das relações que mantém com os outros, podendo incorporar modelos, vestígios ou estilos de outros textos e de outros gêneros. Segundo Kleiman (1999), como membros de uma sociedade, o conhecimento dessas relações é que vai compor o nosso conhecimento intertextual que permite que o texto funcione para o leitor, como um mosaico de outros textos que possibilitam a compreensão.

Para Bakhtin, o que vai ser preponderante na determinação do gênero do texto é o fato de dirigir-se a um destinatário que pode ser tanto o interlocutor direto do autor quanto

totalmente indeterminado. De todo modo, a forma como o locutor percebe e imagina seu interlocutor e a força da influência deste sobre o enunciado é que vão determinar a composição e o estilo do enunciado. Segundo ele:

Cada um dos gêneros do discurso, em cada uma das áreas da comunicação verbal, tem sua concepção padrão do destinatário que o determina como gênero. Enquanto falo, sempre levo em conta o fundo aperceptivo sobre o qual minha fala será recebida pelo destinatário: o grau de informação que ele tem da situação, seus conhecimentos especializados na área de determinada comunicação cultural, suas opiniões e suas convicções seus preconceitos(do meu ponto de vista), suas simpatias e antipatias. Pois é isso que condicionará sua compreensão responsiva de meu enunciado. Esses fatores determinarão a escolha do gênero do enunciado, a escolha dos procedimentos composicionais e, por fim a escolha dos recursos lingüísticos, ou seja o estilo do meu enunciado”.(BAKHTIN, 2000, p. 321)

Nesse sentido, podemos afirmar, como Koch e Elias (2006) que:

A noção de gêneros textuais é respaldada em práticas sociais e em saberes socioculturais, porém os gêneros podem sofrer variações em sua unidade temática, forma composicional e estilo;

Todo e qualquer gênero textual possui estilo; em alguns deles, há condições mais favoráveis(gêneros literários), em outros, menos favoráveis (documentos oficiais, notas fiscais) para a manifestação do estilo individual;

Os gêneros não são instrumentos rígidos e estanques, o quer dizer que a plasticidade e dinamicidade não são características intrínsecas ou inatas dos gêneros, mas decorrem da dinâmica da vida social e cultural e do trabalho dos autores.( KOCH E ELIAS, 2006, p .131)

Sobre a plasticidade dos gêneros, Marcuschi (2002) ressalta que, muitas vezes, podemos encontrar um determinado gênero com uma configuração típica de outro, ou seja,

uma estrutura inter-gêneros. É o que ele chama de hibridização ou mescla de gêneros. Para ele essa “intertextualidade inter-gêneros evidencia-se como uma mescla de funções e formas de gêneros diversos num dado gênero” (MARCUSCHI, 2002, p. 31)

Uma vez que todo texto está sempre estruturado em um determinado gênero textual, o conhecimento da diversidade e do funcionamento dos gêneros é fundamental tanto para a produção quanto para a compreensão, uma vez que a identificação do gênero de um texto é o ponto de partida para a sua compreensão. Essa identificação só será possível na medida em que o leitor adquire experiência de leitura e sabe o que buscar em cada texto lido.

Uma distinção que se faz importante no interior deste trabalho é a que existe entre gênero de texto e tipo de texto que, muitas vezes, é confundida pela maioria dos professores. Os gêneros, como explica Bronckart (2003), são múltiplos e em número que se pode dizer infinito, já os segmentos que entram em sua composição, que ele denomina de tipo de discurso,(segmentos de relato, de argumentação, de descrição,etc.) são em número limitado, e podem ser identificados por suas características lingüísticas específicas. Marcuschi (2002), ao explicar essa distinção ressalta que a expressão tipo textual, é utilizada para designar uma espécie de sequência teoricamente definida pela natureza lingüística de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas). E a expressão gênero textual se refere aos textos materializados que encontramos no nosso cotidiano e que apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica.

Se os tipos textuais são apenas meia dúzia, os gêneros são inúmeros. Alguns exemplos de gêneros textuais seriam: telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhete, reportagem jornalística, horóscopo, receita culinária, bula de remédio, lista de compras, cardápio

de restaurante, instruções de uso, outdoor, inquérito policial, resenha, edital de concurso, piada, conversação espontânea, conferência, carta eletrônica, bate-papo por computador, aulas virtuais e assim por diante. (MARCUSCHI, 2002, p. 23)

Diferentemente dos gêneros que se caracterizam por suas características sócio- discursivas, os tipos textuais são definidos essencialmente por suas características linguísticas predominantes, assim, como explica Marcuschi (opus cit) a narrativa, por exemplo, terá como elemento central a sequência de tempo, enquanto o texto descritivo tem o predomínio das sequências de localização e os argumentativos têm como elemento central sequências contrastivas explícitas. Em um mesmo gênero realizam-se várias sequências de tipos textuais, no que Marcuschi (2000) denomina heterogeneidade tipológica do gênero.

Para Bakhtin, em qualquer área dos estudos linguísticos há que se considerar a natureza do enunciado e as particularidades de gêneros que marcam a diversidade do discurso. Segundo ele, qualquer estudo que ignore estes aspectos “leva ao formalismo e à abstração, desvirtua a historicidade do estudo, enfraquece o vínculo existente entre a língua e a vida. A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua.”(Bakhtin, 2000, p. 282)

Dessa forma, pode-se perceber a importância do estudo dos gêneros textuais que, na qualidade de unidade real da comunicação verbal, possibilitam também uma compreensão mais ampla das unidades da língua como palavras e orações.

No item seguinte, procuro mostrar a contribuição de autores como Bazerman (2005), Swales (1990) e Fairclough (2003) que discutem os gêneros conectados com os eventos sociais nos quais se realizam, ressaltando o caráter social dos gêneros.

2.4 O CONCEITO DE GÊNERO RELACIONADO À NATUREZA SOCIAL