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Estudos Culturais e Análise de Discurso como referências analíticas

A conversão de conceitos teóricos relacionados aos campos epistêmicos dos EC e da AD em procedimentos metodológicos sempre se constitui como uma dificuldade, uma vez que não há procedimentos considerados padrões e cada empreendimento analítico imprime as marcas do analista. Desta forma, uma premissa básica deve ser a admissão de que uma análise consiste na construção de outros discursos sobre aqueles que se pretende analisar, bem como

na impossibilidade de descartar o próprio posicionamento do analista desde a escolha do

corpus até a sua articulação com os conceitos e instrumentos analíticos.

Até aqui, esboçamos alguns conceitos e noções que podem ser utilizados de forma operacional e nos permitiram trabalhar na articulação temática – identidade e discurso – explorada pelos EC e pela AD. A relação entre os campos políticos e midiáticos, a ser explorada mais à frente, também pôde ser refletida a partir das suas interseções e dos contextos de produção de efeitos de sentido por meio dos discursos, e não apenas como enunciações independentes. Trata-se de ressaltar o potencial metodológico das categorias teóricas levantadas acima, advindas desses dois campos epistêmicos, segundo suas respectivas constituições interdisciplinares. Os conceitos forjados por estes campos epistêmicos não expressam apenas teorias sobre o sujeito, a identidade, a linguagem e a ideologia; oferecem- nos um percurso investigativo sobre os diversos modos de construção dos sentidos nos discursos.

As análises que levam em conta os estudos sobre as questões culturais não podem ignorar as formas de organização e produção discursiva como instrumentos de investigação, sobretudo porque o sentido mesmo da noção de cultura passou a ser considerado também em suas dimensões discursivas. “Com a extensão do significado de cultura – de textos e representações para práticas vividas –, considera-se em foco toda produção de sentido” (ESCOSTEGUY, 2006, p. 143).

Os EC não se preocupam em se estabelecer como um suporte metodológico e doutrinário a ser seguido; antes, em favorecer um olhar pragmático, estratégico e auto- reflexivo. Caracteriza-se por centrar suas análises nos aspectos contextuais e destaca-se por ser variável, flexível e crítico (JAMESON, 1994; SHULMAN, 2006).

Os métodos de raízes sociológicas, antropológicas e sócio-históricas, além da tradição da crítica literária, permitiram aos EC não se fixar apenas nas descrições dos fenômenos culturais como forma de entender os seus sentidos, como também apreender os sistemas de significação como decorrentes de modos de produção que ocorrem através dos processos da linguagem (JOHNSON, 2006). Nesse contexto, tornam-se oportunos como aportes metodológicos o trabalho etnográfico, a entrevista e as análises de texto e discurso para

verificar a produção cultural, sobretudo, atrelada à comunicação midiatizada7 (SHULMAN, 2006).

Retomaremos algumas categorias que se relacionam de forma mais direta às escolhas metodológicas que empreenderemos. Uma delas se refere à relevância que alcança a noção de

contexto, pois é a partir deste que podemos compreender os mecanismos de produção dos sentidos inscritos em uma configuração histórica e social. Torna-se pertinente entendê-lo como aquilo que a AD denomina de condições sociais de produção, mapeando as construções discursivas em suas emergências situacionais, o intradiscurso, e por meio da recuperação dos significados na memória discursiva. O contexto inclui, portanto, as situações imediatas e a conjuntura história mais ampla (JOHNSON, 2006).

Ao abordar o conceito de condições sociais de produção, consideramos que a exigência para o procedimento de análise é torná-la produto da investigação dos contextos que produzem os sentidos dos discursos; caso contrário, estaríamos fazendo uma abordagem coercitiva na atribuição dos sentidos aos enunciados que compõem o corpus (MAINGUENEAU, 2008). Sobre a relevância em se estabelecer uma compreensão decorrente de uma análise pautada no contexto, Milton Pinto (2002) afirma que a contextualização pode ser utilizada de acordo com três níveis analíticos: o situacional imediato, o institucional e o sociocultural, que é mais amplo e comporta diversas condições que definem um evento comunicacional.

Para abordar a efetividade da AD como instrumento de investigação dos discursos sobre as identidades a partir da articulação entre mídia e política, cabe-nos tecer duas breves considerações sobre o discurso midiático como ponto de partida. Primeiro, a mídia funciona como suporte que altera as condições de produção ao criar cenografias por articular elementos responsáveis pela composição destas. “O suporte não é um suporte, ele não é exterior ao que ele supostamente veicula (MAINGUENEAU, 2008b, p. 48). Segundo, a mídia é capaz de desenvolver o que Charaudeau (2006) denomina como processo evenemencial8, ou seja, a transformação dos fatos em acontecimentos midiáticos. Nesta ação de transformação, há a mobilização de noções relevantes para pensar em efeitos de sentido como as possibilidades de fazer saber, o ato de informar e fazer sentir, o ato de captar o público, conduzindo-o à

7 No capítulo 3, discutimos de mais cuidadosamente alguns aspectos acerca da comunicação midiatizada,

sobretudo a partir das suas relações com o campo político.

8 No capítulo 3, aprofundamos esta noção. Preferimos utilizar o termo evenemencial, não dicionarizado nas

referências de língua portuguesa, ao termo eventual, que seria literalmente mais próximo de evento, mas reúne outras conotações, mostrando-se assim inadequado.

emoção. Trata-se de um entendimento que guarda semelhanças com as noções de modos de

mostrar e modos de seduzir aportadas por Milton Pinto (2002). Diversos destes aspectos são

observáveis, de formas explícitas ou tácitas, no funcionamento dos discursos políticos inscritos nos suportes midiáticos e são tratadas, mais a frente, quando discutimos as relações entre a mídia e a política, bem como as estratégias de construção das imagens públicas e os processos de midiatização.

A análise dos discursos veiculados pelas mídias, a partir de categorias como a de ethos discursivo, nos colocou uma dificuldade metodológica, sobretudo quando o corpus faz parte da mídia impressa. Em oposição à mídia audiovisual, em que se pode visualizar a presença de um ethos oral, uma fala imediata, e a construção de uma cenografia mais facilmente; na mídia impressa temos à disposição basicamente um ethos escritural, que exigiu um trabalho de elaboração imaginária a partir de indícios textuais diversificados.

Ao articular a análise dos discursos veiculados pelas mídias, ratificamos a ideia dos meios de comunicação como um “sistema de relações sociais” (SHULMAN, 2006) intimamente ligado às instâncias do poder e da ideologia, numa relação complexa que produz discursos cujos sentidos, muitas vezes, não se deixam ler, devido à falta de transparência inerente ao texto midiático (HALL, 2009). Nesta perspectiva,

[...] os meios de comunicação de massa sustentam e reproduzem a estabilidade social e cultural. Entretanto, isso não se produz de forma mecânica, senão se adaptando continuamente às pressões e às contradições que emergem da sociedade e englobando-as e integrando-as no próprio sistema cultural (ESCOSTEGUY, 2006, p. 147).

Já o discurso político funciona como importante referência para entender como o discurso de modo geral pode servir como instrumento para viabilizar estratégias e definir cenários políticos, funcionando como uma das premissas da ação política9. A AD auxilia, portanto, na compreensão sobre os discursos que tornam possíveis a emergência de uma racionalidade política enquanto forma de regulação dos fatos políticos. Ao mostrar a adequação da AD ao campo da política, Charaudeau afirma que “o discurso político não esgota, de forma alguma, todo o conceito político, mas não há política sem discurso” (2006, p. 39).

9 Quando afirmamos o discurso como instrumento de viabilização das estratégias e como premissa da ação

política, não definimos a ação como aquilo que é apenas decorrência do discurso, como um efeito deste, pois esta concepção implica na criação equivocada da dicotomia entre o discurso e prática, ou seja, da criação discursiva como aquilo que antecede uma ação material. A ação política é entendida aqui, sobretudo, como uma prática discursiva, como local de produção de sentidos por meio das diversas formas de manifestação discursiva.

O contexto que articula mídia e política evoca necessariamente duas noções bastante exploradas pela AD: o poder e à ideologia em suas relações com os discursos. A noção de poder, em AD, funciona como uma dimensão analítica na qual este não é visto como concreto, único e monolítico, e tampouco emerge como ferramenta de dominação utilizada, exclusivamente, por esferas privilegiadas como o Estado, a Igreja ou as instituições militares. Trata-se, ao contrário, de uma concepção do poder que ocupa diversos lugares sociais e se relaciona diretamente com os discursos por elegê-los como o lugar de articulação entre o saber e o poder (FOUCAULT, 1995).

Já o aspecto ideológico, presente no conceito de formação ideológica – fruto de muitas discussões, inclusive sobre sua validade – funciona como uma dimensão necessária de todos os discursos na medida em que estes produzem sentidos que situam os sujeitos socialmente, e, portanto, define a ideologia como um mecanismo formal de investimentos de sentidos em matérias significantes que funciona como um “repertório de conteúdos, opiniões, atitudes ou representações” (PINTO, 2002, p. 46).

Estas considerações pretendem, dessa forma, evidenciar alguns dos potenciais analíticos que a interseção entre os dois campos epistêmicos apresentados oferece. Decerto, as diversas dimensões presentes nas discussões subsequentes possuem estreitas relações com o quadro teórico aqui exposto. Isto porque a investigação dos processos de constituição de uma identidade cultural, defendida aqui como uma narrativa, depende da organização de elementos culturais em função de construções semânticas obtidas através de procedimentos discursivos. Estes, por sua vez, decorrem de condições sociais de produção em que as esferas da política e da mídia se articulam numa relação complexa e dinâmica de interdependência.

2 A NARRATIVA DA BAIANIDADE

Abordamos, neste capítulo, a identidade cultural a partir das suas imbricadas relações com as práticas discursivas, sobretudo, no que diz respeito a sua constituição como a narrativa sobre um povo. Esta discussão tem como uma das suas premissas a consideração da construção das narrativas identitárias como um processo cujo funcionamento associa-se diretamente com a utilização dos estereótipos, enquanto recurso de fixação de características e estratégia de diferenciação. Nesse sentido, a baianidade é apresentada de acordo com diversas contribuições teóricas acerca dos seus aspectos históricos e dos elementos emblemáticos que a constituem. Por fim, discutimos algumas dimensões ideológicas da baianidade, devido à relevância em refletir sobre a sua utilização no contexto político como estratégia de legitimação de grupos sociais.