2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1. ESTUDOS DA TRADUÇÃO BASEADOS EM CORPUS
O presente trabalho baseia-se no arcabouço teórico lançado por Baker (1993,
1995, 1996), o qual se vale do uso de corpora como metodologia para a proposta de
Estudos da Tradução Baseados em Corpus. A autora entende por corpus “um conjunto
de textos naturais” em oposição a exemplos/sentenças criados com o propósito
específico de mostrar um fenômeno linguístico, “organizados em formato eletrônico,
passíveis de serem analisados, preferencialmente, de forma automática ou
semi-automática (em vez de manualmente)
1” (BAKER, 1995, p.226).
A autora se alicerçou em duas linhas de pensamento distintas para gerar sua
proposta. Um desses alicerces foram os Estudos Descritivos da Tradução. Gideon Toury
(1978/2000), da Universidade de Tel-Aviv, propõe o conceito de normas, abandona a
análise de desvios em traduções isoladas e muda o enfoque para a cultura de chegada,
passando a privilegiar o estudo de padrões que regem o sistema da tradução literária em
interação com os demais sistemas de produção textual de uma dada cultura. Para isso,
retoma o conceito de mudança num modelo triplo (tripartite): entre as opções oferecidas
pela competência e desempenho do tradutor em contato com o texto fonte, admite um
terceiro conjunto de opções determinadas pelas normas sócio-históricas da cultura de
chegada, responsáveis pelas mudanças na tradução.
Toury teria sido um dos primeiros estudiosos a lançar as futuras bases para os
estudos da tradução a partir de corpora, bem como a antever e defender a importância de
um estudo descritivo-comparativo da natureza das normas que regem os textos
traduzidos e daquelas que regem os textos não traduzidos, a fim de se chegar a uma
contextualização adequada do ato tradutório e da tradução (CAMARGO, 2007, p.28).
Por influência de Toury, Baker considera os textos traduzidos como registros de eventos
comunicativos genuínos que devem ser vistos em pé de igualdade com outros eventos
comunicativos de qualquer língua.
A segunda corrente de pensamento que alicerça esta proposta é a do linguista
John Sinclair (1991). Por meio de uma coleção de corpora computadorizados e do
desenvolvimento de uma metodologia de pesquisa, Sinclair defendeu investigações
dessa natureza por possibilitarem superar as limitações humanas e minimizar sua
1
Corpus mean[s] any collection of running texts (as opposed to examples/sentences), held in electronic form and analysable automatically or semi-automatically (rather than manually) (BAKER, 1995, p.226). [Tradução nossa]
dependência da intuição. Hoje em dia, por meio da utilização dos corpora
computadorizados, temos à nossa disposição, bancos de dados contendo milhões, ou até
bilhões de palavras, que podem ser percorridos em questão de minutos.
A união dessas duas linhas, a dos Estudos Descritivos da Tradução e a da
Linguística de Corpus, permitiu a Baker consolidar sua proposta de estabelecimento do
fenômeno da tradução como objeto de pesquisa em si. Devido à mudança de uma
perspectiva conceitual e semântica (com estudos baseados na introspecção) para uma
perspectiva situacional e de uso da linguagem (com estudos voltados para o contexto), a
autora propõe que os métodos de investigação dos estudos linguísticos passem a
solicitar o acesso a dados reais e em grande quantidade para observações sobre o uso da
língua (CAMARGO, 2007, p.30). Desta forma, ela postula a criação de uma disciplina
que tenha o fenômeno da tradução como principal objeto de pesquisa, elegendo, para
isso, a abordagem da Linguística de Corpus como quadro metodológico. O acesso a
grandes corpora de textos originais e traduzidos possibilitou o desenvolvimento de
métodos específicos e ferramentas para investigação desses corpora de forma adequada
para os pesquisadores da área (MAGALHÃES, 2001).
Em virtude de a utilização de corpora eletrônicos, paralelos ou comparáveis,
possibilitar maior amplitude e funcionalidade para estudos da natureza da tradução,
dentre as possíveis generalizações propostas por Baker estão as características ou traços
recorrentes que não são resultado da interferência de sistemas linguísticos específicos, e
que se apresentam tipicamente nos textos traduzidos, mas não em textos originais. Estes
traços são os seguintes:
Simplificação: tendência em tornar mais simples e de mais fácil compreensão a linguagem empregada na tradução. Evidências podem ser encontradas nos textos traduzidos em relação aos textos originais, como repetição de palavras e mudança na pontuação para trazer maior clareza ao enunciado (mas, não necessariamente, empregar uma linguagem mais explícita). A simplificação também envolve o menor comprimento
das frases nos textos traduzidos; e a substituição de ambiguidades existentes nos textos originais, de modo a torná-las mais precisas nos textos traduzidos. Duas medidas possíveis de traços de simplificação são fornecidas pela razão forma/item (type/token ratio) e pela densidade lexical. A razão forma/item é uma medida da variação vocabular presente num texto ou corpus. Outra maneira de se considerar a densidade lexical é possível, ao obter-se a proporção de palavras de conteúdo em oposição a palavras gramaticais de um corpus: em ocorrendo, no modo de construir os textos traduzidos, o emprego de mais redundância, por meio do maior número de palavras gramaticais e menor de palavras lexicais, haveria uma indicação do uso de traços de simplificação para tornar os textos traduzidos mais compreensíveis para o leitor da língua de chegada.
Explicitação: tendência geral em explicar e expandir dados do texto original, por meio de uma linguagem mais explícita, mais clara para o leitor do texto traduzido. Manifestações dessa tendência podem ser expressas sintática e lexicalmente, e podem ser observadas habitualmente, em relação aos textos originais, como a maior extensão dos textos traduzidos, o emprego exagerado de vocabulário e de conjunções coordenativas explicativas.
Normalização ou conservacionismo: tendência para exagerar características da língua alvo e para adequar-se aos seus padrões típicos. Pode ser observada no nível de palavras individuais ou de colocações (normalização lexical) como na pontuação e no uso de clichês e estruturas gramaticais convencionais nos textos traduzidos.
Estabilização: tendência para a tradução localizar-se no centro de um contínuo, evitando-se os extremos. Diferentemente da normalização, que é dependente da língua alvo ao exagerar suas características nos textos traduzidos, o processo de estabilização não é dependente nem da língua alvo nem da língua fonte. Manifestações podem ser encontradas, por exemplo, na tendência de os tradutores empregarem a linguagem culta nas marcas da linguagem oral utilizadas pelo autor do texto original para caracterizar determinados personagens (BAKER, 1996, p.180-18; tradução de Camargo, 2007, p.31-2).