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Na área farmacêutica, os estudos que abordam o medicamento em suas diversas nuances ganharam destaque ao longo dos anos com estudiosos interessados não apenas em quantificar fatores e tendências, mas sim em compreender o medicamento como objeto complexo de estudo.

Nesse sentido, a farmacoepidemiologia é um campo de pesquisa relevante, pois se dedica ao conhecimento do estudo dos medicamentos e seus aspectos, englobando a prescrição, regulação, consumo e perfis de utilização nas populações de acordo com faixa etária e local de estudo. Surgiu da cooperação entre farmacologia clínica e epidemiologia unindo esforços para compreender mecanismos de ação dos fármacos e perfis de utilização nas populações (CABRITA; MARTINS, 2017).

O objetivo da farmacoepidemiologia consiste em descrever, controlar e explicar os efeitos dos tratamentos farmacológicos em uma determinada população, permitindo uma melhor compreensão da utilização do medicamento nos indivíduos (GOMES; REIS, 2000).

Um acontecimento marcante para o desenvolvimento da farmacoepidemiologia no Brasil foi a criação da Sobrevime (Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos), em 1990, entidade essa que desde sua criação investe em estudos sobre os medicamentos. Criou-se ainda o GPUIM (Grupo de Prevenção ao Uso Indevido de Medicamentos), além de

vários Centros de Informação de Medicamentos (CIM) que colaboram ainda hoje para o conhecimento dos perfis de utilização e caracterização da população que utiliza medicamentos (CASTRO, 1999).

Laporte e Tognoni (1993) destacam que a Farmacoepidemiologia compreende duas áreas de atuação: a Farmacovigilância e os Estudos de Utilização de Medicamentos (EUM). A primeira dedica-se ao estudo das reações adversas e do monitoramento farmacoterapêutico, enquanto os EUM compreendem o uso dos medicamentos em uma sociedade.

Dessa forma, a farmacoepidemiologia está fortemente ligada a regulação sanitária de medicamentos e tem origem na farmacovigilância, que se dedica ao conhecimento das reações adversas aos tratamentos medicamentosos (CASTRO, 2009).

Em 2002, a OMS ampliou o conceito de farmacovigilância, que passou a ser a ciência capaz de detectar, avaliar e compreender os efeitos adversos aos medicamentos, além de efetivar ações de prevenção, incluindo ainda problemas decorrentes de queixas técnicas e interações medicamentosas (OMS, 2005).

Consta na Política de Assistência Farmacêutica destaque para a promoção do uso racional de medicamentos com ações que disciplinem a prescrição, a dispensação e o consumo (BRASIL, 2004).

Com efeito, a promoção do uso racional de medicamentos envolve além da adoção da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), outras medidas, a saber: campanhas educativas, registro e uso de medicamentos genéricos, formulário terapêutico nacional, farmacoepidemiologia e farmacovigilância, além de recursos humanos (BRASIL, 2001).

Diante dessa lógica, o monitoramento farmacoterapêutico e o conhecimento dos determinantes na utilização dos medicamentos em diferentes grupos populacionais contribuirá para a promoção do uso racional, trazendo benefícios clínicos, econômicos e humanísticos para todos os envolvidos no processo de utilização dos medicamentos (CAPUCHO, 2016). Tais estudos devolvem ao usuário, gestores e profissionais uma resposta aos tratamentos medicamentosos e consequentemente uma maior

corresponsabilização dos envolvidos em todo ciclo da Assistência Farmacêutica (COSTA et al., 2011).

Nesse contexto, os principais determinantes envolvidos na utilização de medicamentos são: estrutura demográfica, fatores socioeconômicos, comportamentais, culturais, perfil de morbidade, além das características do mercado farmacêutico e das políticas governamentais dirigidas ao setor (COSTA et al., 2011).

Consentâneo ao exposto, podemos inferir que a utilização de medicamentos envolve um processo social complexo controlado por inúmeras forças, estando fortemente ligados à influência dos padrões culturais e comportamentais que resultam no aumento do uso (BERTOLDI, 2004)

A própria OMS define de forma abrangente a utilização de medicamentos como a prescrição, distribuição e uso dos medicamentos na sociedade, com ênfase nas consequências médicas e sociais resultantes dessa utilização, sem abandonar o marketing propagandístico que permeia o sentido de usar ou não o medicamento (WHO, 1977).

Enquanto isso, no Ciclo da Assistência Farmacêutica, a utilização abrange a prescrição, a dispensação e o uso do medicamento, envolvendo aspectos legais, técnicos, clínicos e socioculturais que precisam estar alinhados para a obtenção de bons resultados farmacoterapêuticos (OSORIO- DE-CASTRO et al., 2014).

Nesses caminhos cotidianos, registramos esforços dos pesquisadores para investigar aspectos relativos ao uso dos medicamentos e seu acesso, uma vez que nos sistemas informatizados do Ministério da Saúde não existem dados sobre o consumo de medicamentos, sendo necessário conhecer aspectos como: medicamento mais utilizado para aquele grupo de interesse, acesso, como utiliza e para que finalidade o medicamento foi prescrito. Tais estudos devolvem ao usuário, gestores e profissionais uma resposta aos tratamentos medicamentosos e consequentemente uma maior corresponsabilização dos envolvidos em todo ciclo da Assistência Farmacêutica (COSTA et al., 2011).

No Brasil, o primeiro grande estudo realizado no país foi feito por Arrais

et al (1997) como inquérito multicêntrico em três grandes centros urbanos

perfil da automedicação por meio da investigação da qualidade dos produtos, de vendas com prescrição antiga ou sem prescrição médica, ou ainda orientados por balconistas ou pelo farmacêutico (CASTRO, 2000).

Capucho (2016) pontua que os estudos farmacoepidemiológicos contribuem para que os benefícios clínicos sejam alcançados. Enquanto que a OMS considera que os estudos farmacoepidemiológicos devem ser objeto de estudo na pesquisa científica para auxiliar gestores, profissionais e usuários dos serviços de saúde no estabelecimento de políticas resolutivas e responsáveis (OLIVEIRA; XAVIER; ARAÚJO, 2012).

Quanto à metodologia abordada, a maioria dos estudos que avaliam a utilização dos medicamentos incluem aspectos relativos ao perfil de uso e padrões de prescrição, limitando-se a fazer pequenas indicações a profissionais e pacientes. Utilizam predominantemente a metodologia quantitativa, mas a OMS tem se esforçado para que os estudos com metodologia qualitativa sejam utilizados por estudiosos que procuram entender a completitude que circunda o uso dos medicamentos (LEITE; VIEIRA; VEBER, 2008). Utilizam ainda predominantemente o sistema Anatomical Therapeutic-

Chemical (ATC) de classificação dos fármacos, que juntamente com a Dose

Diária Definida (DDD) é recomendada pela OMS desde 1981 para uso em estudos de utilização de medicamentos (CASTRO, 2000).

Dessa maneira, Estudos de Utilização de Medicamentos possuem função sanitária bem definida e se sobressaem como campo de destaque para profissão farmacêutica no momento em que permitem compreender os contextos que envolvem o consumo de medicamentos.

Por meio dessas assertivas podemos mencionar que tais estudos são ferramentas indispensáveis nas políticas públicas de acesso aos medicamentos por permitir reconhecer fragilidades e avanços nos serviços de saúde, além de identificar singularidades dos usuários de medicamentos muitas vezes reduzidos a diagnósticos incompreensivos (MAFRA et al, 2018).

Vale destacar ainda que os EUM contribuem para a formulação de políticas governamentais na área da saúde ao incorporar o medicamento como objeto científico ao mesmo tempo que o alinha a várias outras vertentes, como a demográfica, social e econômica, constituindo uma estratégia de racionalização do uso dos fármacos por fornecerem informações sobre os

medicamentos, bem como a qualidade do consumo destes, a prevalência da prescrição médica, os custos comparados e outros fatores indispensáveis para o conhecimento do perfil de uso dos medicamentos na sociedade (CASTRO, 2000).

3.8 Polifarmácia: a complexa “arte de prescrever”

Na saúde mental, a utilização dos psicotrópicos representa a instituição terapêutica comumente utilizada para o tratamento das manifestações clínicas. Acrescenta-se o fato de que muitos pacientes com doenças psiquiátricas apresentam comorbidades associadas como hipertensão e diabetes, sugerindo múltiplos manejos terapêuticos.

Os psicotrópicos devem ser utilizados de forma racional, considerando que o uso de forma indiscriminada leva ao aparecimento de reações adversas desconfortantes aos pacientes, podendo ocasionar a interrupção abrupta da farmacoterapia (ROCHA; WERLANG, 2013).

A sua utilização tem sido relatada com maior prevalência para indivíduos do sexo feminino, tendo destaque para a prescrição de benzodiazepínicos e antidepressivos. Tal fato decorre de fatores como: maior utilização dos serviços de saúde pelas mulheres e maior preocupação com a saúde, bem como maior prevalência de depressão e ansiedade, além da sobrecarga familiar (FIRMINO

et al., 2011).

A definição de polifarmácia não é bem definida e de forma geral refere- se ao uso de vários medicamentos para o tratamento da condição médica de um paciente. Tal definição não considera a pertinência clínica para o uso desses medicamentos, favorecendo uma conduta irracional que desprivilegia a medicina baseada em evidências. Sendo assim, considera-se a existência da polifarmácia utilizando apenas critérios quantitativos por vezes não padronizados. O fenômeno da polifarmácia psiquiátrica ganhou destaque ao longo dos anos com estudiosos interessados em examinar a ocorrência dessa variedade de prescrições nos cenários mundiais (KUKREJA SANJAY et al., 2013).

De forma conceitual, a National Association of State mental Health program Directors, 2011 em seu relatório, subdivide a polifarmácia em:

polifarmácia de mesma classe, polifarmácia multiclasse, polifarmácia adjunta, polifarmácia de aumento e polifarmácia total (KUKREJA SANJAY et al., 2013).

Na prática psiquiátrica de rotina, os pacientes se utilizam de diversas combinações medicamentosas, em especial a polifarmácia antipsicótica para o tratamento de condições como esquizofrenia e transtornos de humor (COSTA

et al., 2017).

A definição comumente utilizada de polifarmácia psiquiátrica condiz com o uso de dois ou mais medicamentos psiquiátricos no mesmo paciente ou o uso de dois ou mais medicamentos da mesma classe ou ações farmacológicas para o tratamento de determinada condição patológica (KUKREJA SANJAY et

al., 2013).

Segundo Kukreja Sanjay et al (2013 APUD GHAEMI, 2002), existem cinco fatores associados à polifarmácia psiquiátrica: científica, clínica, econômica, política e cultural. O fator científico favoreceu a polifarmácia ao introduzir medicamentos psicotrópicos decorrentes de estudos sobre aminas biogênicas; o fator clínico permitiu que ocorresse uma ampla padronização e disseminação dos diagnósticos, orientados pelos manuais, onde a polifarmácia e a polinosologia estão correlacionadas. Enquanto que o fator econômico favoreceu a produção em larga escala dos medicamentos, impulsionando a indústria farmacêutica; já o fator político era evidente pelo FDA dos EUA, responsabilizando-se por diretrizes mínimas para a aprovação dos medicamentos. O último fator associado à polifarmácia consiste no aspecto cultural, atribuído ao uso dos tratamentos farmacoterápicos, o que favoreceu a disseminação da polifarmácia psiquiátrica em outros lugares.

Acrescenta-se o fato de que atributos etiológicos como: fatores da doença ou biológicos; fatores do paciente ou psicológico I; fatores médicos ou psicológico II e os fatores sociológicos tem sido enfatizados como aspectos que contribuem para a polifarmácia (KUKREJA SANJAY et al., 2013 APUD FREUDENREICH et al., 2012).

Dessa forma, tem destaque os méritos e as preocupações que existem na prescrição de dois ou mais fármacos, pois é conhecida que interações farmacocinéticas e/ou farmacodinâmicas respondem pelo sucesso ou insucesso de uma farmacoterapia. Avoluma-se o fato de que a falta de estratégias baseadas em evidências e os custos para os pacientes podem

limitar a evolução dos tratamentos medicamentosos (KUKREJA SANJAY et al., 2013)

Para isso, faz-se necessário o conhecimento das classes de psicotrópicos mais utilizadas pelos grupos populacionais, os padrões de uso, e a existência de reações e interações medicamentosas potencialmente prejudiciais para um melhor redirecionamento das condutas terapêuticas que disciplinem o uso desses fármacos (NALOTO et al., 2016).

Na Austrália a maioria dos estudos investigam a polifarmácia psicotrópica com dados que desconsideram a prática clínica em serviços de saúde mental para jovens. Estudo realizado em New South Wales realizado durante o período de 1 ano obteve que os principais diagnósticos foram os transtornos de ansiedade (35,18%), onde 10,28% utilizavam polifarmácia psicotrópica para essas condições. Nesse estudo, foram prescritos medicamentos psicotrópicos para cerca de 60% dos jovens, com um total de 155 medicamentos (DHARNI; COATES, 2018).

No Brasil, alguns estudos investigam o uso dos psicofármacos nas populações, a fim de verificar a prevalência e o padrão de consumo desses medicamentos (ROCHA; WERLANG, 2013; ALVARENGA et al, 2009). Estudo realizado no Brasil, como parte de estudo multicêntrico buscou avaliar a polifarmácia psicotrópica e fatores associados (COSTA et al., 2017)

Nesse estudo, 51,6% dos pacientes eram mulheres e o número médio de medicamentos psicotrópicos prescritos por paciente foi de 2,98, configurando polifarmácia psicotrópica. Entre os dez psicotrópicos mais prescritos estão (haloperidol, biperideno diazepam clorpromazina carbamazepina prometazina clonazepam levomepromazina amitriptilina e fluoxetina). Combinações de antipsicóticos com a mesma classe farmacológica e com outras classes, incluindo os anti-epilépticos, anticolinérgicos, ansiolíticos, antidepressivos e em menor escala, com hipnóticos e sedativos foram observados nesse estudo (COSTA et al., 2017).

Em outros cenários também é observada a existência da polifarmácia. Estudo exploratório, de natureza avaliativa como parte da PNAUM encontrou como prevalência de polifarmácia (utilização de cinco ou mais medicamentos) no âmbito da Atenção Primária uma prevalência equivalente a 9,4%,

demonstrando ser uma realidade presente no SUS (NASCIMENTO et al., 2017).

Reflexões sobre a prática profissional contribuem para otimizar o uso do medicamento, considerando que a prescrição de psicotrópicos deve envolver além das diretrizes terapêuticas e “necessidades do paciente” os determinantes sociais de saúde, a fim de elucidar e clarificar as melhores opções terapêuticas disponíveis e atingíveis.

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