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Estudos sobre as estratégias de socialização

PARTE II – FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA PESQUISA

2.4. Desigualdade educacional no Brasil

2.4.1. A escolarização das elites

2.4.1.2. Estudos sobre as estratégias de socialização

Dentre os estudos sobre a temática da escolarização das elites, os trabalhos realizados por Nogueira (2003), Grün (2003), e Oliveira (2005) discutem a relação entre as socializações familiares e os processos de escolarização.

Nogueira (2003), partindo da constatação de uma carência quase que total de estudos, no Brasil, sobre o papel do privilégio econômico na vida e nos destinos escolares dos indivíduos, realiza uma pesquisa com 25 famílias de pequenos e grandes empresários mineiros, com pelo menos um filho residindo no domicílio e em idade de realização de estudos universitários. Utiliza, como estratégia para a coleta de dados, duas entrevistas com cada família, uma com o jovem pesquisado e outra com sua mãe, sendo essas entrevistas realizadas separadamente, em geral na mesma data, e, na grande maioria das vezes, no próprio domicílio do entrevistado, baseando-se este estudo, portanto, num corpus formado de 50 entrevistas.

A autora conclui que, de um modo geral, a trajetória verificada entre os filhos de empresários mantém uma relativa distância daquilo que se convencionou chamar de “excelência escolar”, tomando esta última em seus indicadores clássicos: fluxo,

velocidade, longevidade, opções, carreiras e instituições escolares, distinções acadêmicas. Grande parte dos jovens privilegiados do ponto de vista econômico parece se inserir com mais intensidade no mundo do trabalho do que no da escola, desenvolvendo certo desinteresse pelos estudos e uma relação com o conhecimento escolar do tipo “utilitarista”, onde só fazem sentido e têm valor os saberes que possibilitam enfrentar situações práticas do dia-a-dia.

Quanto às estratégias familiares, a melhor forma que a autora encontrou para caracterizar a relação que essas famílias mantêm com o universo escolar é emprestada da linguagem cotidiana: “Não apostam todas as suas fichas na escola”. Os pais se utilizam de estratégias econômicas para salvaguardar ou elevar a posição do grupo familiar no espaço social. Preparam os filhos desde muito cedo para a sua sucessão nos negócios da família por meio da associação destes à empresa paterna ou à abertura de um pequeno negócio que os filhos irão gerenciar, concomitantemente ao período de sua formação universitária. Também lançam mão de uma rede de relacionamentos sociais passíveis de serem mobilizados em momentos importantes do percurso escolar dos filhos: ingresso ou transferências de estabelecimento.

Nogueira (2003) também aponta que a preocupação da escolha de estabelecimentos de ensino que propiciem a constituição de uma rede de sociabilidade predisposta a funcionar, no presente e no futuro, como capital social, faz parte da preocupação das famílias, preponderando no ato de escolha da instituição escolar, menos o valor “acadêmico” de um estabelecimento, e mais o seu valor “social”.

Outro aspecto ressaltado por Nogueira (2003) é o ceticismo dos empresários quanto à eficácia social da escolarização. Este ceticismo é expresso apenas na esfera privada, pois, na esfera pública, a autora lembra que o discurso das elites empresariais brasileiras é contraditório a essa posição privada, conforme aponta Reis em pesquisa realizada com líderes empresariais brasileiros. Para esse grupo “a educação é percebida primordialmente como instrumento de mobilidade social, por significar maiores oportunidades no mercado” (Reis, 2000, p.150 apud Nogueira, 2003, p.64)

A autora conclui que essas ambiguidades, tensões e contradições encontradas na postura dos pais frente à escola não facilitam em nada a

predisposição do jovem a responder positivamente às exigências, pressupostos e critérios que estruturam o sistema escolar, com suas hierarquias internas e escala de valores.

Outro estudo que desvela as estratégias de socialização de famílias de empresários foi o realizado por Grün (2003) com famílias de imigrantes armênios no Estado de São Paulo, que teve como objetivo chamar a atenção para a necessidade de se levar em conta

[...] os múltiplos critérios de hierarquização social vigentes na sociedade brasileira, e as maneiras como o sistema escolar acaba sendo relativizado ou controlado na busca de opções para as famílias conduzirem suas estratégias de reprodução social para encaminhar as novas gerações em direção a destinos por elas desejados, ainda que considerados pouco legítimos na sociedade inclusiva. (GRÜN, 2003, p.74-75)

Assim como os estudos de Nogueira (2003), os estudos de Grün (2005) também apontam para uma maior inserção dos jovens no mundo do trabalho, estabelecendo com a escola e o saber escolar uma relação do tipo “utilitarista”. O autor observou que um dos objetivos centrais dos investimentos em educação por essas famílias é o “desenvolvimento da capacidade do jovem em operar no circuito comercial de seus ancestrais ou em outro análogo, porém num nível de atuação mais elevado”. (GRÜN, 2005, p.66) Ou seja, nessas famílias o anseio em relação à educação é que esses jovens sejam instruídos nas questões práticas que possam aparecer no cotidiano dos negócios familiares e não nas “áridas questões teóricas”, como expressado por um dos entrevistados.

Oliveira (2005), em sua dissertação de mestrado, focaliza o processo de escolha do estabelecimento de ensino vivenciado por famílias pertencentes às elites econômicas e culturais. Tendo como objeto de estudo 81 famílias cujos filhos estavam ingressando em uma tradicional escola confessional da rede privada, situada na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, a autora procura identificar os critérios e aspectos socioculturais embutidos nesse processo de escolha.

Em relação aos critérios de escolha do estabelecimento de ensino utilizados pelas famílias pesquisadas, a autora destaca três: a formação humanística, a

excelência escolar e a distinção por meio do prestígio escolar e social. São, também, três os aspectos socioculturais embutidos nessa escolha, apontados pela pesquisadora. O primeiro aspecto é a “intensificação de transmissão da ‘herança escolar’ adquirida pela família” (OLIVEIRA, 2005, p.118), ou seja, os pais procuram garantir que os filhos perpetuem a aparente trajetória escolar de sucesso percorrida por eles. O segundo aspecto ressaltado é “a influência do alto capital informacional familiar (background) na escolha de escola” (IDEM, 2005, p.119). A aparente familiaridade dos pais pesquisados com o cotidiano e as regras escolares foi um fator decisivo para a escolha da escola, transformando o processo de escolha em um processo “tranquilo e rápido”, apesar da grande opção de estabelecimentos e serviços ofertados pelo mercado escolar. Já o terceiro aspecto sociocultural embutido na escolha da escola, destacado por Oliveira, é o “estabelecimento (ou preservação) da Rede de Relações Sociais” (IDEM, 2005, p.120). Apesar de não aparecerem de forma explícita nos questionários respondidos pelas famílias, a rede de relações e o ambiente escolar foram aspectos valorizados nas práticas de escolha das escolas.

Oliveira (2005) conclui que o processo de escolha de escola como estratégia de distinção, no universo das famílias pesquisadas

[...] é favorecido pelo capital econômico característico das elites, associado, sobretudo, ao alto capital cultural e informacional que possuem e parece funcionar, de certa forma, como uma espécie de consumação da distinção escolar e da posição social a ser ocupada por seus filhos. (OLIVEIRA, 2005, p.121)

Quanto à instituição de ensino escolhida pelas famílias pesquisadas, a autora ressalta que, apesar do conturbado mercado escolar e das propagandas de divulgação dos serviços oferecidos pelas escolas, a instituição

[...] garante-se na idéia de que a imagem do colégio é construída através dos próprios alunos, dos resultados obtidos no seu processo de escolarização, da hexis corporal adquirida através do habitus e do ethos escolar. (IDEM, 2005, p.121)

Em artigo publicado recentemente, Aguiar, Nogueira & Ramos (2008) discutem as experiências internacionais de escolarização dos jovens oriundos das camadas sociais favorecidas. Como afirmado pelas autoras, essas estratégias se inserem em uma lógica de distinção, utilizada pelas camadas médias da população, “que vêem na dimensão internacional do capital cultural um ingrediente indispensável à reconversão de seu patrimônio”. (p. 355)

As autoras atribuem o crescimento do fenômeno da internacionalização das experiências escolares nos setores médios da população à intensificação das trocas internacionais e à relativa democratização do acesso aos meios de transporte. Porém, chamam a atenção para o fato de que

Como sugerido por Bauman (1999), a anulação tecnológica das distâncias espaço-temporais tenderia a polarizar as diferentes condições sociais da humanidade do que a homogeneizá-las, na medida em que, ao proporcionar uma mobilidade sem precedentes a uma parcela da população mundial, agrava e aprofunda a condição de privação daqueles que não podem vivenciar e se beneficiar dessa experiência. (AGUIAR, NOGUEIRA & RAMOS, 2008, p. 357)

A partir dessa constatação, as autoras apresentam algumas faces desse fenômeno da internacionalização das experiências escolares. O primeiro aspecto abordado é o crescimento numérico do fenômeno, que, embora quase não se dispondo de dados estatísticos nacionais sobre a questão, pode-se, a partir dos dados internacionais e dos poucos e incipientes dados nacionais, perceber um aumento nos últimos anos. Esse aumento pode ser observado tanto no ensino superior, o mais internacionalizado dos graus de ensino, quanto no ensino médio. Segundo estimativas feitas no ano de 2002, pela Brazilian Educacional Language

Travel Association (BELTA), o número de estudantes brasileiros no exterior tenderia

a crescer fortemente. Saindo de um patamar de 34 mil estudantes em 2003, para 71 mil em 2006, sendo que essa estimativa abarcava os cursos de idiomas de curta duração, seguidos pelos programas de intercâmbio de ensino médio (high school), pelos programas que oferecem estágio/trabalho e, por último, pelos programas de nível universitário. (AGUIAR, NOGUEIRA & RAMOS, 2008)

Outra face do fenômeno, apresentada pelas autoras, foi o destino escolhido pelos estudantes, constatando que a circulação pelo exterior não apresenta um

caráter homogêneo, o que sinalizaria para uma variação do valor da experiência educacional internacional segundo o país de origem e destino. No caso brasileiro, pode-se perceber uma predileção dos estudantes pelos países desenvolvidos. Segundo Wagner (WAGNER, 1998, apud AGUIAR, NOGUEIRA & RAMOS, 2008) essa predileção teria sua explicação na relação simbólica desigual existente entre as nações.

O terceiro aspecto do fenômeno, apresentado pelas autoras, diz respeito ao idioma do país de destino, ressaltando que, apesar dos idiomas apresentarem-se equivalentes, segundo os linguistas, essa equivalência não é percebida no plano social, sendo atribuídos valores distintos a línguas distintas, havendo uma forte hierarquia social entre elas, proporcionando diferentes rentabilidades material e simbólica aos seus detentores.

Entre os estudantes brasileiros, pode-se observar uma grande procura pelos países anglofônicos, sendo a aprendizagem da língua inglesa apontada pelos pais como uma das vantagens de uma educação internacional.

A forma de aquisição de uma a língua estrangeira é também outro fator que justifica a crescente utilização pelas famílias, especialmente no segmento do ensino médio, dessa estratégia de escolarização. As autoras mencionam os estudos de Nogueira (2006), que ao entrevistar famílias cujos filhos estudaram fora do Brasil, constatou, no discurso dos pais, uma forte ênfase nas supostas vantagens dessa aprendizagem “por imersão”, destacando dois grandes benefícios dessa estratégia: propiciar uma assimilação mais ampla do contexto cultural do país e proporcionar a excelência no plano da oralidade.

Assim, por suposto, aqueles que beneficiaram da oportunidade de aprender/praticar uma língua in loco acabam por se distinguir daqueles que não puderam senão aprendê-la em seu próprio país de origem, de maneira escolar, formal (livresca) e, portanto, imperfeita. A imersão lingüística estabelece assim uma clivagem entre uns e outros. (AGUIAR, NOGUEIRA & RAMOS, 2008, p.365- 366)

Aguiar, Nogueira & Ramos (2008) também apresentam algumas “contribuições e pistas de análises” que as pesquisas de Nogueira (1998, 2004 e

2006), Prado (2002), Aguiar (2007) e Ramos (2007), desenvolvidas no Observatório Sociológico Família-Escola11 (OSFE), da FAE/UFMG, vêm produzindo, a partir de

interrogação direta de famílias brasileiras que se utilizam dessas práticas de escolarização.

Essas autoras concluem que os resultados da pesquisa nacional apontam para uma forte expansão da demanda por esse bem cultural, bem como a urgência com que vem sendo perseguido pelas camadas médias da população, o que se justifica pelas características de estilo de vida desse grupo social. De maneira especial pela importância em seus investimentos no mercado escolar, como consequência de manutenção de seu lugar assegurado nas estruturas sociais com base em suas credenciais escolares, ou seja, formação e diploma. O

cosmopolitismo é apresentado pelas autoras como uma tendência presente nas estratégias de escolarização de que lançam mão as famílias brasileiras que

“percebem, nessa oportunidade de reconversão/atualização de seu patrimônio

cultural, boas chances de manutenção ou incremento da posição social de relativo privilégio que ocupam.” (IDEM, p.370-371)

Contudo, alertam que a compreensão dessas práticas de busca pelo internacional requer ainda que se leve em conta o fenômeno derivado do acirramento da concorrência entre os grupos sociais pela posse do capital escolar e cultural, detectado por Bourdieu. Quanto maior for o crescimento da taxa de escolarização e acesso da população aos níveis mais elevados do sistema de ensino, maior será a desvalorização dos certificados escolares, impulsionando as camadas privilegiadas em direção a níveis cada vez mais altos desse sistema, ou seja, em direção a instituições, ramos de ensino ou tipos de escolarização mais seletivos ou mais raros, como escolas internacionais ou bilíngues, estudos no exterior ou estabelecimentos de excelência, dos quais procurarão deter a exclusividade.

Desse modo, as distâncias que separam os diferentes grupos sociais, em termos culturais e escolares, manter-se-iam e reconstituir-se-iam permanentemente, embora em patamares cada vez mais altos. De tal forma que a ampliação do acesso à escola (e mesmo a probabilidade de sucesso escolar) dos grupos mais

despossuídos tenderia a ser acompanhada por modificações quantitativas e qualitativas na escolarização dos favorecidos. (IDEM, 2008, p.371)

Aguiar, Nogueira & Ramos (2008) levantam a hipótese de que a internacionalização das escolaridades é dominada por uma lógica de distinção, estabelecendo uma clivagem entre os que se beneficiam dos estudos internacionais e os que se limitam a recursos nacionais.