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O conceito de ethos discursivo tem sua origem nos estudos de retórica de Aristóteles. Termo grego, ethos “designa a imagem de si que o locutor constrói em seu discurso para exercer uma influência sobre seu alocutário” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004 p. 220). Mediante a construção de fala, é possível fazer inferências a respeito do locutor, pressupondo sua identidade. Assim, no ato de fala, o

sujeito falante apresenta a seus destinatários uma imagem de si, que pode se mostrar de modo proposital ou não.

Por meio do discurso, pode-se levantar hipóteses acerca da imagem desse sujeito da fala que pode ser verdadeira ou construída como efeito de verdade, pois essa representação não é do autor empírico do texto, mas sim do enunciador. O enunciador, por seu estilo, valores, crenças, competências (linguísticas e enciclopédicas), deixa indícios textuais que remetem a uma particularidade. Desses indícios podemos depreender o ethos.

Maingueneau afirma: “Um texto não é um conjunto de signos inertes, mas o rastro deixado por um discurso em que a fala é encenada” (MAINGUENEAU, 2011, p. 85). Entendemos, com Maingueneau, que essa fala encenada é a voz do enunciador, e ela se apresenta em um “comportamento global” que se engendra no discurso.

Vê-se que o ethos é distinto dos atributos “reais” do locutor. Embora seja associado ao locutor, na medida em que ele é a fonte da enunciação, é do exterior que o ethos caracteriza esse locutor. O destinatário atribui ao um locutor inscrito no mundo extradiscursivo traços que são em realidade intradiscursivos, já que soa associados a uma forma de dizer. [...] Não se trata de uma representação estática e bem delimitada, mas, antes, de uma forma dinâmica, construída pelo destinatário através do movimento da própria fala do locutor. O ethos não age em primeiro plano, mas de maneira lateral, ele implica uma experiência sensível do discurso, mobiliza a afetividade do destinatário. (MAINGUENEAU, 2008, p. 16)

Embasado na retórica aristotélica que compreende o ethos como força persuasiva, Eggs (2005) também aponta que o ethos é “mostrado”, inscrito na fala do orador, não havendo a necessidade de uma explicitação qualitativa dessa imagem gerada. Retomando os estudos aristotélicos, Eggs propõe que existem dois campos semânticos ligados ao termo ethos. O primeiro apresentado por ele é epieíkeia, que ele denomina “honestidade”. Conforme o autor, o orador de caráter honesto “parecerá mais digno de crédito aos olhos de seu auditório” (ibid., p. 29). O sentido de epieíkeia abrangeria atitudes e virtudes morais: honestidade, benevolência e equidade.

Em oposição a esse sentido moral, há o sentido neutro, hexis, de caráter mais social, designando hábitos, modos e costumes ou caráter. O convencimento da fala do orador se faz na argumentação adequada a seu caráter e a seu tipo social, como também

ao seu habitus. Para elucidar, Eggs cita a frase de Aristóteles: “um homem rude não poderia dizer as mesmas coisas nem dizê-las da mesma maneira que um homem culto” (ibid., p. 29).

Na perspectiva da análise do discurso, o ethos retórico de Aristóteles foi retomado nos trabalhos de Maingueneau. Em seus estudos, o autor, citando o grego, explicita as três qualidades fundamentais de que inspiram a confiança do orador e promovem uma imagem positiva de si mesmo: razoabilidade dos argumentos (phrónesis); sinceridade e honestidade dos argumentos (areté); solidariedade e amabilidade na argumentação do orador com seu auditório (eúnoia).

Para Aristóteles, o homem é um “animal (→pathos) político (→ethos) que tem a capacidade de falar e de pensar (→logos)” (ibid., p. 42). O ethos é a expressão dessas três dimensões comuns ao ser humano, contemplando: a phrónesis, que diz respeito ao logos; e a areté seria a virtude do ethos propagando os habitus e comportamentos positivos; a eúnoia compete ao pathos, manifestando a boa intenção do locutor para com seu auditório (ibid., p. 33).

Assim, o enunciador, é uma “entidade semiótica”, que por sua fala marca seu modo de presença no mundo, atribuindo sua posição enquanto sujeito. Entre o intra e o extradiscursivo, o enunciador se apresenta em um contexto de enquadramento social, construindo e mostrando o seu modo de presença no mundo, estabelecendo uma imagem de “fiador”, como uma identidade dada a partir do mundo que emerge do próprio discurso.

A instância subjetiva que se manifesta no discurso não se deixa conceber apenas como um estatuto (professor, profeta, amigo…) associado a uma cena genérica ou uma cenografia, mas como uma “voz” indissociável de um corpo enunciaste historicamente enunciado. […] Mais além o ethos implica uma maneira de se mover no espaço social, uma disciplina tácita do corpo apreendida através de um comportamento. O destinatário a identifica apoiando-se num conjunto difuso de representações sociais avaliadas positiva ou negativamente, em estereótipos que a enunciação contribui para confrontar ou transformar: o velho sábio, o jovem executivo dinâmico, a mocinha romântica… (Ibid., p. 17-18)

O ethos discursivo demonstra uma “vocalidade específica”, um “tom” que se “desenvolve em relação à noção de cena de enunciação”25 (CHARAUDEAU, MAINGUENEAU, 2004, p. 221). A produção de sentido de um discurso não existe descontextualizada. Portanto, a cena enunciativa — como cena englobante em que se inscreve o tipo de discurso — revela uma ideologia. Em busca de adesão, as imagens construídas de enunciador e leitor-ideal (o enunciatário) são mostradas e podem ser aceitas (ou não) pelos atores do discurso, assim como a cena englobante à qual se apresenta. A esse universo simbólico em que se concentram essas projeções dos atores do discurso, abarcando comportamentos e virtudes, Maingueneau (2008) denomina de “mundo ético”.

O fiador, como uma instância subjetiva, é a entidade discursiva construída pelo enunciatário a partir de índices liberados na enunciação. A figura de autoridade, desempenhada pelo fiador, subsume um “mundo ético” que ancora situações estereotípicas associadas a comportamentos. O “mundo ético” do qual o fiador é “parte pregnante” dá acesso a um universo simbólico particular. Para se inserir nesse mundo, compartilhando valores, o leitor deve “incorporar” o ethos.

Esse processo de incorporação, segundo Maingueneau, ocorre em três etapas: a enunciação da obra atribui uma “corporalidade” ao fiador, dando-lhe corpo; o destinatário incorpora, assimilando “um conjunto de esquemas que correspondem a uma maneira específica de se remeter ao mundo habitando seu próprio corpo”; essas duas primeiras etapas permitem a constituição de um corpo de uma “comunidade imaginária” em que enunciador e enunciatário confirmam a aderência a um mesmo discurso. O enunciador, amparado em seu ethos, é reconhecido pelo enunciatário, que apreende o que o “fiador” deixou transparecer. A imagem de si construída pelo enunciador é implicada nos enunciadores-leitores, numa corporalidade firmada pela “incorporação”, nome dado a adesão do auditório ao ethos discursivo. Sobre o ethos discursivo, Maingueneau elenca o que ele denomina “princípios mínimos”, e finaliza enfatizando que essa noção é determinada por uma conjuntura específica.

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Maingueneau (1997) diferencia três instancias da cena de enunciação: I - o que ele denomina como “cena englobante”, se inscreve o tipo de discurso ao qual pertence o texto (discurso político, filosófico, etc.). Também ao universo semântico ao qual o destinatário deve estar para conseguir interpretar o discurso; II - a segunda instancia seria a “cena genérica”, cena da especificidade dos gêneros do discurso (discurso das revistas de negócios, por exemplo); III - por fim, a “cenografia”, que é instituída no e pelo discurso, quando o enunciador propõe o cenário em que ser realiza a enunciação.

- o ethos é uma noção discursiva, ele se constrói através do discurso, não é uma “imagem” do locutor exterior a sua fala;

- o ethos é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o outro;

- é uma noção fundamentalmente híbrida (sociodiscursiva), um comportamento socialmente avaliado, que não pode ser apreendido fora de uma situação de comunicação precisa, integrada ela mesma numa determinada conjuntura sócio-histórica. (MAINGUENEAU, 2008, p. 17)

A construção discursiva de uma imagem pode influenciar as opiniões dos leitores, convocá-los a ações e, assim, modelar atitudes. Entre o “dito” e o “mostrado”, é notória, no Guia Exame, a constituição da corporeidade do fiador e as convocações à adesão ao “mundo ético” do ethos discursivo pelo processo de incorporação. O regime cognitivo, como antes visto, modaliza o sujeito leitor-executivo-empresa (modelo) — posto que em muitos momentos não há distinção entre o executivo (representante da empresa) e a própria empresa —, mapeando o campo simbólico que permeia a voz do enunciatário.

O “mundo ético” é apresentado ao leitor como modo de presença no mundo, como discurso estabilizado e apresentado nos textos como “natural”. A aderência ao mesmo discurso, exposta no acordo do contrato de comunicação, promove uma comunidade imaginária de partilha de sentidos, como se o leitor afirmasse sua concordância com o posicionamento ideológico participando do mundo configurado da enunciação.

A problemática do ethos pede que não se reduza a interpretação dos enunciados a uma simples decodificarão; alguma coisa da ordem da experiência sensível se põe na comunicação verbal. As “ideias” suscitam a adesão por meio de uma maneira de dizer que é também uma maneira de ser. Apanhando num ethos envolvente e invisível, o coenunciador faz mais que decifrar conteúdos: ele participa do mundo configurado pela enunciação, ele acede a uma identidade de algum modo encarna, permitindo ele próprio que um fiador encarne. O poder de persuasão de um discurso deve-se, em parte, ao fato de ele constranger o destinatário a se identificar com o movimento de um corpo, seja ele esquemático ou investido de valores historicamente especificados. […] Afinal, cremos que a adesão do destinatário se opera por um escoramento recíproco entre a cena de enunciação, da qual o ethos participa, e o conteúdo nela desdobrado. (MAINGUENEAU, 2008, 28-29)

No Guia Exame, a constituição dessa comunidade não se reserva ao imaginário, mas é presentificada na comunidade conclamada pelo Guia quando ele se apresenta: “Somos uma comunidade formada por pessoas interessadas no desenvolvimento dos negócios do Brasil e da sociedade. Queremos agir no pensar” (MÍDIA KIT EXAME, 2014).

Para além do que é depreendido das opções sintático-semânticas do enunciador, o ethos, nesse exemplo, é dito explicitamente. No caso, o enunciador compartilha sua posição como sujeito com o enunciatário, apresentando na primeira pessoa do plural a ideia de paridade: “Somos líderes, empresários de diversos gestores, governantes, investidores, empreendedores” (ibid.). O sentido de comunidade é construído para persuadir a um modo agir que é compartilhado. O fiador é corporificado como um figura de sucesso, valor projetado no enunciatário, que por sua vez o enxerga como grande líder, dotado de prudência (phrónesis), virtude (areté) e benevolência (eunoia).

A argumentação desenvolvida na enunciação tende a assumir estratégias que variam entre logos, ethos e pathos. O “mundo ético” do Guia contém valores da ideologia liberal-capitalista, tematizando a crise ambiental como obstáculo a ser superado pelo evangelho da ecoeficiência. No campo do social, a noção de boa cidadania corporativa é apresentada como meio de lidar de forma benevolente com as figuras antagonistas (ONGs, governo, comunidades), suplantando diferenças para alcançar um bem comum. A boa e eficiente empresa, como vimos, é o modelo a ser buscado pelo enunciatário.