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2 ANÁLISE DO DISCURSO: PROPOSTA DE DOMINIQUE

2.3 Noção de posicionamento

2.3.2 Ethos

Nesta seção, veremos de que forma a categoria ethos é concebida inicialmente pela retórica e posteriormente pela Análise do Discurso e de que maneira podemos analisar a transformação que se dá em torno dela na transposição de canções para o público infantil. A noção de ethos é discutida, no âmbito da oratória, desde Aristóteles em Arte retórica, que a concebia a partir da impressão gerada pela imagem do locutor frente ao seu dizer pelo auditório. A persuasão resultaria da adesão, por parte do ouvinte, à fala do locutor através da atribuição de características que lhe transmitiriam credibilidade, materializadas por tom de voz, escolha das palavras e dos argumentos, gestos, olhar, postura etc. No entanto, apesar de aspectos como vestimentas e mímica também estarem presentes na construção ética, vale destacar que os atributos associados ao locutor não devem ser confundidos com os do locutor empírico, ou seja, da figura de “carne e osso”

que fala ou escreve, uma vez que a imagem do locutor seria construída pelo auditório no momento da execução de sua fala, fazendo com que o ethos apresente-se, indiscutivelmente, como uma categoria ligada ao ato de enunciação (MAINGUENEAU, 2008a).

A respeito do ethos retórico, esclarece-nos o autor que:

Não se trata de uma representação estática e bem delimitada, mas, antes, de uma forma dinâmica, construída pelo destinatário por meio do próprio movimento da fala do locutor. O ethos não age no primeiro plano, mas de forma lateral. Ele implica uma experiência sensível do discurso, mobiliza a afetividade do destinatário. Para retomar uma fórmula de Gibert (séculoXVIII), que resume o

triângulo da retórica antiga, “instruímos com argumentos; movemos pelas paixões; insinuamos com os costumes”: os “argumentos” correspondem ao

logos, as “paixões”, ao pathos, os “costumes” ao ethos. [...] Compreendemos que, na tradição retórica, o ethos tenha sido frequentemente considerado com suspeição: apresentado como tão eficaz, ou, às vezes, como mais eficaz que o logos – os argumentos propriamente ditos -, ele se torna suspeito de inverter a hierarquia moral entre o inteligível e o sensível. (p. 57)

Estendendo a ideia de ethos ao texto escrito, uma vez que o conceito aristotélico limitava-se a textos orais, a concepção desenvolvida por Maingueneau (2008a) implica um tom que garante autoridade ao que é dito, constituindo uma representação de um corpo do enunciador, que com a leitura ou audição faz emergir uma instância subjetiva que

desempenha o papel de fiador do que é dito, ou seja, aquele que assume o que é dito. De

acordo com essa perspectiva discursiva, mesmo os textos escritos seriam dotados de uma “voz”, um “tom”. O autor apresenta duas diferentes possibilidades de sentidos para o termo tom, relacionando, como dito, tanto ao oral como ao escrito, além de tomá-lo como a voz física.

Além dessa dimensão vocal, o ethos mobilizaria aspectos relacionados a um conjunto de traços físicos e psicológicos, atribuindo a ele, respectivamente, um caráter e uma corporalidade articulados a uma memória coletiva composta por estereótipos valorizados ou não, correntes em determinada sociedade. A respeito dessas relações, o autor pontua que:

De fato, a incorporação do leitor ultrapassa a simples identificação a uma

personagem fiadora. Ela implica um “mundo ético” do qual o fiador é parte pregnante e ao qual ele dá acesso. Esse “mundo ético”, ativado por meio da

estereotípicas associadas a comportamentos: a publicidade contemporânea apóia-se maciçamente em tais estereótipos (o mundo ético dos executivos, dos esnobes, das estrelas de cinema etc.). No campo musical, por exemplo, notaremos que a passagem da simples inclusão de um cantor em um clip teve o efeito de inserir o fiador em um mundo ético específico. (p.65)

Quando se opera a ação do ethos sobre o enunciador, tem-se o que Maingueneau (2002) chama de incorporação. Essa dinâmica revela que o coenunciador, através da enunciação, confere um ethos ao seu fiador, assimilando o conjunto de traços que marcaria sua maneira de dizer, e, dessa forma, identifica-se com a forma de ser manifestada pelo conjunto de valores evocados, “formando corpo” com uma possível comunidade imaginária que também se identificaria com esse fiador. Essa forma de conceber o ethos remete à questão da eficácia do discurso, do poder em suscitar a crença, na medida em que o coenunciador interpelado não se apresenta apenas como um indivíduo para quem se lançam “ideias” que corresponderiam a seus interesses; é também alguém que tem acesso ao “dito” por uma “maneira de dizer”, que está articulada a uma “maneira de ser”, o imaginário de um vivido.

Contrariamente à atitude tradicional que aborda forma e conteúdo dissociadamente, Maingueneau (2002) enfatiza que o tratamento do ethos deve considerar como imbricada a relação entre as “ideias” veiculadas nos enunciados e a cena de enunciação que as legitima. Com isso, o que se diz (conteúdo) mostra-se, necessariamente, arraigado ao como se diz (forma).

Pensar o ethos é analisar de que forma o conteúdo veiculado é expresso. Dessa forma, Maingueneau (2008a) considera haver uma instância abrangente em torno da noção de ethos. O ethos efetivo seria o que tal ou qual o destinatário constrói, que resultaria da interação de determinados tipos de ethos.

Como vimos, a noção de ethos está necessariamente relacionada ao ato de enunciação. Todavia, para Maingueneau (2008a), não se pode negligenciar que o público também constrói representações do ethos em um momento anterior à fala. Trata-se do ethos

pré-discursivo, que é-nos apresentado como uma representação ética construída pelo

coenunciador anterior ao momento da enunciação: “De qualquer forma, mesmo que o destinatário não saiba nada antecipadamente sobre o ethos do locutor, o simples fato de um texto pertencer a um gênero de discurso ou a certo posicionamento ideológico induz expectativas em matéria de ethos”(p. 60). Apesar de reconhecer a existência de um ethos

pré-discursivo, a questão de que se ocupa o teórico diz respeito ao ethos discursivo, ou seja, o ethos que se constitui no ato da enunciação.

Além da presença do ethos pré-discursivo e do ethos discursivo, aquele mostrado na enunciação, o ethos de um discurso também resulta da ação em que o enunciador automenciona, direta (“é um amigo que lhes fala”) ou indiretamente (através de metáforas ou de alusões a outras cenas de fala), sua própria enunciação: ethos dito. O ethos efetivo, portanto, resulta da interação das diversas instâncias assinaladas (MAINGUENEAU, 2008a):

Ethos efetivo

Ethos pré-discursivo Ethos discursivo

Ethos dito Ethos mostrado

Estereótipos ligados a mundos éticos

Quadro 2 - Relação entre os diversos tipos de ethos. Fonte: MAINGUENEAU, 2008a, p.71.

A despeito da complexidade existente em torno da noção de ethos, Maingueneau (2008a) adverte-nos:

Se cada conjuntura histórica se caracteriza por um regime específico dos ethé, a leitura de numerosos textos que não pertencem a nossa esfera cultural (no tempo e no espaço) é frequentemente dificultada não por lacunas graves em nosso saber enciclopédico, mas pela perda dos ethé que sustentam tacitamente sua

enunciação. Quando vemos as coplas da Canção de Roland dispostas sobre uma folha de papel, é difícil restituir o ethos que as sustentava. Ora, o que é uma epopeia senão um gênero de desempenho oral? Sem ir tão longe, a prosa política do século XIX é indissociável dos ethé ligados a práticas discursivas, a situações de comunicação desaparecidas. (p. 72)

Outro aspecto pertinente em torno da categoria em estudo diz respeito ao fato de que elementos de diversas ordens atuam durante a sua elaboração: a escolha do registro da língua e das palavras até o planejamento textual, além do ritmo e da modulação. Além disso, Maingueneau (2008a) alerta-nos para as contingências existentes em todo e qualquer ato comunicativo, em relação às quais nem sempre é clara a percepção se tais elementos fazem ou não parte do discurso, mas que de uma forma ou outra acabam por influenciar a construção do ethos por parte dos destinatários. Para o autor, isso é mais uma decisão teórica do que saber se se deve delimitar a ideia de ethos ao aspecto estritamente verbal ou se se deve agregar a ele elementos de outra natureza.

Para os fins de nossa pesquisa, partimos da hipótese geral de que o arranjo apresenta-se como o principal elemento retextualizador, seguido por outros elementos contextuais – que também iremos estudar no capítulo destinado à análise propriamente dita das canções – (encarte do CD, videoclips disponibilizados na internet, performance nos shows, classificação e localização diferenciada na loja em que o álbum é comercializado, dentre outros aspectos que apontam para a situação de comunicação), responsáveis pelo trânsito de uma canção destinada ao público em geral para uma esfera cultural infantil. Esses atuariam, portanto, como modificadores capazes de alterar, por vezes, a construção cenografia e ética das canções retextualizadas para crianças, que, por sua vez, implicaria a produção de diferentes efeitos de sentido em relação à versão original das canções em estudo.

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