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2.3ETNOLINGUÍSTICA: A RELAÇÃO ENTRE LÉXICO E CULTURA

A Etnolinguística é uma ciência interdisciplinar que estabelece a relação entre língua e cultura. Para Lima Barreto (2010, p.5),“a linguagem, característica universal do homem, é eminentemente social, estando intimamente relacionada com a cultura. Através dela, todas as concepções do mundo são levadas ao homem”. Assim posto, a autora chama a atenção para o aspecto de que a linguagem evidencia a maneira como o ser humano conceitua e compreende a sua realidade. Um dos conceitos de cultura relacionada com a língua é o proposto por Baylon (1999, p. 47), “a cultura é o conjunto das práticas e de comportamentos sociais que são inventados e transmitidos pelos grupos [...]”. Todo o modo como se compreende o mundo está explícito na linguagem, através das convenções, formalidades e conceitos sobre o mundo. Um dos precursores dos estudos de cunho etnolinguístico foi o antropólogo Franz Boas. Em 1911, este professor da Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos, ao estudar as sociedades indígenas amErickyanas, correlacionou os fenômenos linguísticos aos culturais, na contramão da visão dos linguistas funcionalistas da sua época que viam a cultura como algo limitado pela herança biológica e pelo meio ambiente. Para ele, fenômenos similares

poderiam ter como origem caminhos diversos, e que os mesmos fenômenos têm sentidos variados em cada cultura.

De acordo com Lima Barreto (2010, p. 4), Boas (1911) mudou o enfoque dos estudos linguísticos, com a percepção de que as línguas podem ser elucidadas pela difusão do contato com o homem. Sapir (1969), nessa mesma linha de pensamento, prosseguiu nos estudos etnolinguísticos das línguas indígenas, propondo que é possível estabelecer relações entre a Linguística e a Etnologia, uma vez que a linguagem influencia a forma como os indivíduos vivem. Os estudos de Sapir foram aprimorados por Whorf, resultando na proposta de inter-relação entre língua e cultura, conhecida como Hipótese de Sapir-Whorf (1969).

Outros estudiosos enveredam-se nos estudos etnolinguísticos e buscaram relacionar a linguagem e o fenômeno social, como fez Malinowski (1986) que, de acordo com Lima Barreto (2010), ao estudar um texto primitivo evidenciou que a língua está vinculada à realidade cultural, no que se referem aos costumes, à tradição de sua população. A autora cita ainda os estudos de Lévi-Strauss (1976), ao analisar as relações de parentescos com forma de comunicação, ressaltando a inter-relação da sociedade com a linguagem que utiliza, uma vez que a cultura é compartilhada e difundida através da linguagem.

Trabalhos importantes também com viés etnolinguístico foram realizados na

Amazônia, no Alto Rio Negro, como o de Martins (2004), cujo estudo Fonologia e

Gramática Dâw13, que apresenta uma visão do sistema linguístico e cultural dessa população tradicionalmente nômade, constituída por um pouco mais de 100 pessoas. A análise teve

como objeto de estudo os corpora constituídos por textos coletados com os falantes nativos,

os quais retratam sua mitologia, sua história, seus costumes. Esse trabalho foi resultado do contato de duas décadas da autora com os Dâw. A documentação da língua dessa etnia minoritária contribui para o conhecimento linguístico e para o reconhecimento social étnico, uma vez que promove a valorização da língua dessa etnia e a preservação de sua história.

No escopo dos estudos etnolinguísticos, as línguas naturais são analisadas ligadas aos seus contextos socioculturais de utilização, são consideradas como veículo da cultura, ao mesmo tempo em que representam as culturas que as utilizam. Elas trazem em si mesmas a história dos povos que as empregam, de seus contatos com outros, de suas memórias, de suas tradições.

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São povos de tradição nômades, vivem atualmente no Alto Rio Negro, no Amazonas. A língua Dâw pertence à família linguística Maku.

Esse aspecto eminente da inter-relação língua e cultura se evidencia na análise das letras das toadas de Boi-Bumbá do Festival de Parintins que são objeto deste estudo. Essas composições enfatizam, por meio do seu léxico, o hibridismo cultural e linguístico que compõe seus traços identitários, os quais revelam aspectos etnográficos da sociedade parintinense, que remetem à história da cidade, à constituição de sua população desde seus primeiros habitantes, de sua cultura material, como a típica culinária; do universo mitológico que povoam seu imaginário, como suas crenças, lendas; de sua toponímia, enfim, que retratam sua história de vida.

Portanto, no estudo de um sistema linguístico, em particular de seu léxico, é imprescindível analisar o fato linguístico sob o aspecto etnolinguístico, ou seja, relacionar sua realização com a cultura do povo que fala essa determinada língua ou variedade linguística, pois é ela que influencia a forma como a sociedade conduz a sua história, como seus membros ampliam seu léxico mental, como por exemplo, as opções que fazem quanto aos empréstimos que integram ao seu vocabulário.

Entende-se por léxico o conjunto de palavras que determinada população utiliza-se para se comunicar. É através dele que cada nação eterniza suas crenças, costumes e mitos. Para Biderman (2001, p.179):

Qualquer sistema léxico é a somatória de toda experiência acumulada de uma sociedade e do acervo da sua cultura através das idades. Os membros dessa mesma sociedade funcionam como sujeitos - agentes no processo de perpetuação e reelaboração contínua do léxico de sua língua. Sem dúvida, é inegável o caráter social da linguagem.

Na década de 50, o estudo do léxico ganhou visibilidade com os estudos de Matoré (1953) que defende as relações sociais, culturais com a língua. Essa visão etnolinguística contribuiu para a valorização da diversidade linguística, uma vez que ela realça que cada língua representa em seu léxico sua memória, sua trajetória, sua concepção de mundo e a maneira particular de categorizar a realidade, especificando ainda, variações culturais, geográficas, sociais, etárias, etc. Um exemplo clássico é o dos esquimós que possuem uma variedade de cores brancas para designar diferentes nuances que a neve apresenta, demonstrando uma categorização própria da maneira de ver o mundo, a qual não se encontra em outras línguas.

Para fornecer outro exemplo, remete-se à realidade do estado do Amazonas, onde as águas tem uma função importante como vias de transporte fluvial e fonte de alimentação da população. Assim, observa-se que no léxico do amazonense há uma diversidade de palavras

para identificar os vários tipos de cursos de água encontrados na região: rio, lago, furo, igarapé, paraná, igapó, inclusive as três últimas palavras são oriundas do Tupi. O Atlas Linguístico do Amazonas mostra essa diversidade vocabular, (Cruz, 2004).

Nesse sentido, afirma-se que o léxico de uma língua possui uma ligação com elementos sociais e culturais de cada povo.

Para Sapir (1969, p.49):

O léxico da língua é que mais nitidamente reflete o ambiente físico e social dos falantes. O léxico completo de uma língua pode se considerar, na verdade, como o complexo inventário de todas as ideias, interesses e ocupações que açambarcam a atenção da comunidade; e, por isso, se houvesse à nossa disposição um tesouro assim cabal da língua de uma dada tribo, poderíamos daí inferir, em grande parte caráter do ambiente físico e as características culturais do povo considerado.

O léxico é a parte do sistema linguístico que envolve tanto um processo de mudança quanto de conservação da língua, o qual opera de acordo com os seus falantes. Uma das funções do léxico é dar nome ao que antes era desconhecido, acompanhando as mudanças socioculturais de uma comunidade. À medida que o mundo se modifica, a língua – como um organismo vivo – precisa acompanhar essa mudança. Surgem, então, palavras novas, ao passo que outras entram em desuso. Mas, de forma organizada, o léxico se estrutura.

Nesta perspectiva teórica, este estudo busca verificar em que medida ocorre e como se dá a presença do léxico indígena nas toadas de Bois-Bumbás de Parintins, fato que põe em evidência as relações entre línguas e culturas na formação da cultura parintinense, considerando as composições das toadas de Bois-Bumbás que é um elemento de grande importância na formação da cultura local.