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Evolução da Responsabilidade Civil do Médico

3 RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO

3.1 Evolução da Responsabilidade Civil do Médico

A discussão sobre erro médico remonta ao Código de Hamurábi. Segundo Nehemias Domingos de Melo54:

Embora se possam encontrar registros de práticas médicas na mais remota antiguidade, o primeiro documento histórico que tratou especificamente do erro médico e, portanto, da responsabilização do profissional foi o Código de Hamurabi. Alguns artigos tratam de normas gerais com relação à atividade médica, outros são mais específicos. Esse Código

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poderia o profissional sofrer severas penas que podiam significar, inclusive, a amputação de sua mão, caso fosse imperito. Tais penas eram aplicadas quando ocorria morte ou lesões graves aos pacientes homens livres, pois, quando se referisse a escravo ou a animal, a previsão era de ressarcimento do dano.

Como se pode observar, no atinente à responsabilidade civil do médico, também vigorava na antiguidade o conceito de Nexum, ou seja, a reparação de danos se resolvia no próprio corpo do devedor, quando, por exemplo, o cirurgião que incorresse em erro médico teria suas mãos amputadas. A ideia não era, pois, de buscar a reparação do dano, mas sim de punição, ou de retribuição pelo dano causado.

O conceito de vingança privada perdurou durante algum tempo, até que no Período Romano, com o advento da Lex Poetelia Papiria, o causador do dano passou a responder com seu próprio patrimônio e não mais com o seu corpo.55

No começo do século XIX, na França, quase desapareceu a responsabilidade jurídica do médico, com uma decisão da Academia de Medicina de Paris em 1829, que consagrou a exclusiva responsabilidade moral dos profissionais de saúde. De acordo com tal corrente, as questões médicas

54 MELO, Nehemias Domingos de. Responsabilidade Civil por Erro Médico: Doutrina e Jurisprudência. 3ª Ed. São

Paulo:.Atlas, 2014, p. 4.

55 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro V.2 - teoria geral das obrigações. 8ª Ed. São Paulo:

envolviam um conjunto de variáveis, a saber, diagnóstico, prognóstico, tratamento, cirurgia, e o médico só poderia ser responsabilizado caso ficasse provado que houve erro grosseiro, grave e inescusável. 56

Contudo, houve uma reviravolta na jurisprudência francesa, com um leading case de 1832, relativo à conduta praticada por um médico durante um trabalho de parto, que desencadeou um processo onde, à época, ficou famosa a atuação do procurador francês Dupin.

Nehemias Domingos de Melo57 faz um relato do caso, que consistiu no seguinte:

...o médico Helie de Domfront foi chamado às seis horas da manhã para dar assistência ao parto da Sra. Foucault. Somente lá se apresentou às nove horas. Constatou, ao primeiro exame, que o feto se apresentava de ombros, com a mão direita no trajeto vaginal. Encontrando dificuldade de manobra na versão, resolveu amputar o membro em apresentação, para facilitar o trabalho de parto. A seguir notou que o membro esquerdo também se apresentava em análoga circunstância, e, com o mesmo objetivo inicial, amputou o outro membro. Como consequência, a criança nasceu e sobreviveu ao tocotraumatismo. Diante de tal situação, a família Foucault ingressa em juízo contra o médico.

O Procurador Geral Dupin acabou por rebater todos os argumentos da defesa e seu parecer é dotado de extraordinário valor histórico e jurídico, conforme ensina Genival Veloso França58, que transcreve os principais trechos do referido parecer:

O médico e o cirurgião não são indefinidamente responsáveis, porém o são às vezes; não o são sempre, mas não se pode dizer que não o sejam jamais. Fica a cargo do juiz determinar cada caso, sem afastar-se desta noção fundamental: para que um homem seja considerado responsável por um ato cometido no exercício profissional, é necessário que haja cometido uma falta nesse ato; tenha sido possível agir com mais vigilância sobre si mesmo ou sobre seus atos e que a ignorância sobre esse ponto não seja admissível em sua profissão.

Para que haja responsabilidade civil, não é necessário precisar se existiu intenção; basta que tenha havido negligência, imprudência, imperícia grosseira e, portanto, inescusáveis. Em circunstâncias raras, que podem, porém, apresentar-se às vezes, se o médico é levado ante os tribunais, não se deve dizer que sua reputação está sem garantias. Somente seus atos são submetidos à sua equânime apreciação, como são as ações de todos os outros cidadãos, quaisquer que sejam os seus estados ou as suas condições.

O Tribunal Francês acabou por condenar o Doutor Helie ao pagamento de uma pensão anual de duzentos francos. Na época moderna, foi no Direito Francês, portanto, que se estabeleceram as primeiras normas sobre responsabilidade médica, servindo de parâmetro, inclusive para o Direito Brasileiro.

56 NETO, Miguel Kfouri. Responsabilidade Civil do Médico. 5ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

57 MELO, Nehemias Domingos de. Responsabilidade Civil por Erro Médico: Doutrina e Jurisprudência. 3ª Ed. São

Paulo:.Atlas, 2014, p. 5.

Conclui-se que houve notória evolução da responsabilidade civil do médico, desde uma responsabilidade baseada na máxima “olho por olho e dente por dente”, com fortes requintes de vingança privada, evoluindo para uma responsabilidade onde a reparação do dano, passou a ser o objetivo maior, sendo que tal responsabilidade passou a se resolver no patrimônio do autor. Acrescente-se ainda a grande contribuição do Direito Francês, onde a responsabilidade médica passou, inicialmente, de uma quase irresponsabilidade total do médico, até uma responsabilidade baseada na demonstração de imperícia, imprudência e negligência, tal como é vista nos dias atuais.