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A EXCEÇÃO É A REGRA: DOCUMENTO DE CULTURA, DOCUMENTO DE BARBÁRIE.

3 CULTURA E EXCEÇÃO

3.2 A EXCEÇÃO É A REGRA: DOCUMENTO DE CULTURA, DOCUMENTO DE BARBÁRIE.

As produções artísticas do século XX se tornaram essenciais para a compreensão dos bastidores e, de alguma forma, o registro irrevogável da barbárie. As narrativas da catástrofe em suas mais diversas formas de expressão artística buscam elucidar e significam, de certo modo, um documento importante contra o esquecimento. Nesse sentido, observamos em algumas manifestações do século XX, o que passou a ser denominado de arte da resistência, visto que, em sua grande parte, essa vertente trouxe para o público um discurso novo, ou seja, a voz dos vencidos.

No que tange à “tradição dos oprimidos”, enlevada por Benjamin, ressaltamos que a literatura de testemunho, gênero referente à produção literária alçada nas memórias dos sobreviventes dos campos de concentração nazistas, se torna, sobretudo a partir de Primo Levi, um elemento importante para se entender o drama da existência e da condição humana, quando se tem a vida constantemente assombrada pela morte em doses homeopáticas de desumanização.

O novo modo de olhar a História, como propõe Benjamin, está imbuído pela atmosfera destruidora da Segunda Guerra Mundial. Como se sabe, nesse contexto, o nazismo se fortalecia enquanto ideologia e procurava consolidar um ideal de ser humano puro, para que a história da humanidade pudesse ser reescrita às tintas de homens da raça ariana. Ou seja, de maneira equivocada e ingênua, a cultura como produto humano, era reduzida à ideia de raça e, assim, almejava-se a superioridade e homogeneidade racial.

Esse pensamento, por exemplo, rejeita a afirmação do historiador Edward Said (1935 - 2003), de que nenhuma cultura é monolítica, de que todas estão envolvidas umas com as outras, ou seja, são híbridas. Esta premissa se tornara uma constatação amedrontadora para aqueles que buscavam, como na Alemanha nazista, um modelo genuíno de cultura na crença de que a miscigenação e a degeneração da pureza seriam as principais responsáveis pelos problemas e deformidades sociais. Tal sentimento foi o ponto de deflagração do maior genocídio da História, a Shoah. Por isso, esse evento catastrófico que atingiu o ápice do que podemos chamar de um modelo de “cultura do aniquilamento”, é fonte incontestável e profícua enquanto objeto de análise, pois nos incita a refletir não só no que é cultura e nos preceitos que ela envolve, mas nos

conflitos em que o anseio em perpetrá-la como elemento essencial e diferenciador na vida humana podem resultar.

É necessário esclarecer que a ideia de cultura que se pretende pensar para esse contexto é no sentido de problematizá-la trazendo à tona suas variadas concepções que se apresentarão diluídas nessa parte do trabalho. Sabe-se que é um conceito que possui diversas possibilidades de interpretação e, por ter sido teorizado em vários âmbitos da ciência, resvala em riscos e equívocos no uso que dele se faz para conduzir e até mesmo compreender as transformações humanas e os conflitos sociais. A visualização desse problema no seio das discussões sobre cultura é importante posto que, ao longo da história da humanidade, buscou-se estabelecer um modelo cultural padrão e correto para o adequado crescimento intelectual e civilizacional dos povos. Esse objetivo acabou se tornando e sendo visto enquanto um processo natural em que a eliminação do outro que não se insere na intencionada homogeneidade, seja aceita e justificada mediante uma relação de poder.

Portanto, após as duas Guerras Mundiais ocidentais, tornou-se indispensável recorrer a uma releitura da dicotomia cultura e barbárie. Estes termos passam a ser entendidos não como contrapontos, mas enquanto um paradoxo da modernidade que nos conduz a pensar na gênese do pensamento de Walter Benjamin quando se refere à expressão “Documento de cultura, documento de barbárie”, que se mostra, nessa conjuntura, como o esteio para a compreensão das catástrofes da “Era dos extremos”, como denominou o historiador Eric Hobsbawm (1917-2012) ou, mais precisamente, do século XX. Ou seja, tais acontecimentos proporcionaram a revisão dos conceitos de História e cultura, bem como uma reflexão sobre os espaços contemporâneos que se tornam provas incontestáveis de uma espécie de geografia da dor. Consequentemente, tais lugares de construção de memórias constituíram, ao longo do referente século, um irrevogável legado que referenda as comunidades neles envolvidas.

Nesse sentido, o campo de concentração nazista, enquanto um espaço físico, vai se perenizar como legitimidade cultural da catástrofe, e os seus sobreviventes, ao darem testemunho da barbárie, constroem, de algum modo, uma memória coletiva pautada na esfera da sobrevivência evidenciada no corpo que, por sua vez, exala a resistência responsável, ao mesmo tempo, pela sobrevivência da cultura do grupo ao qual ele representa.

À propósito, Michael Pollak observa que, até então, o discurso oficial era o responsável pela construção da memória nacional representativa dos acontecimentos inerentes a cada sociedade. As memórias subterrâneas, como ele denominou, foram o ponto de contato para que o próprio sentido de coletividade nesse entreposto fosse pensado com mais cuidado. Segundo a historiadora Annette Wieivorka (apud Prstojevic, 2012, p. 24), a era dos testemunhos provenientes da Shoah faz parte de uma etapa importante para o que ela chama de evolução da memória coletiva.

Um dos motivos impulsionadores para a formação de campos de extermínio durante a Segunda Guerra envolve uma visão dominante sobre a cultura. Por isso, o século XX também foi cenário importantíssimo para o entendimento de que não deve existir um conceito ou um modelo que atenda à humanidade em um mesmo tempo e em um mesmo espaço. Portanto, a tarefa tornou-se árdua e pretensiosa, pois por acompanhar o fluxo da vida, a cultura se torna mutável, se transforma, recria e reproduz. Adquire novos símbolos e significados, ou seja, nos mostra que sempre é possível agregar ou contrastar novas visões ao que seria basilar e aparentemente sólido, como cultura enquanto culto, formas de vida, identidades.

Quanto a isso, o sociólogo Zygmunt Bauman (1925), um dos mais importantes pensadores contemporâneos sobre os fenômenos da modernidade, nos oferece uma reflexão sobre o conceito de identidade que redescobre a existência de um “eu-pessoal” no processo de constituição identitária, que se encontra submerso em um universo simbólico diversificado. O reconhecimento desse “eu” no ensejo da construção de uma identidade cultural é importante para que o indivíduo se integre na sociedade da forma mais confortável possível.

Essa dialética humana para com o meio pode ser construtiva e agregadora, mas a rejeição a um dos símbolos desse universo pode ser erroneamente interpretada como ameaça à ética da cultura que se pretende expandir. Nesse momento, nasce o sentimento de intolerância para com o outro e é nessa fronteira porosa que surge o ambiente propício ao nascimento das raízes da barbárie.

Ao nos destacar a valorização da autonomia do homem no anseio pelo pertencimento, Bauman (2005) nos mostra, de alguma forma, que é justamente na fresta que resulta da busca incessante de uma teorização para o conceito de identidade, o espaço ínfimo, mas habitável do perigo, pois, quando se coloca a cultura no alvo de variados olhares periféricos advindos dos diferentes campos do saber, estes nos

revelam, de certo modo, pelas lentes do pesquisador, que a visão do indivíduo em direção ao que se torna importante para sua constituição enquanto um ser cultural, que transforma a natureza e necessita interagir socialmente, pode entrar em conflito com juízos de valor, com o certo e o errado, com o necessário e o desnecessário.

Essas relações que envolvem povos e sociedades de todas as partes nos instigam a refletir e tentar responder o questionamento oferecido pelo filósofo Tzvetan Todorov (1939), na sua obra “O medo dos bárbaros: para além do Choque das Civilizações” (2010): “Será que se pode utilizar os mesmos critérios para julgar atos que têm a ver com culturas diferentes? ” (TODOROV, 2010, p. 23). Nesse intento, pode-se questionar, a priori, a presença incômoda do vocábulo ‘julgamento’. Partindo do pressuposto que quando se julga algo atribuímos ou descartamos valores, no campo da cultura não se trata de questão de gosto. Se observada nesse viés, eliminam-se indivíduos, extirpa-se um legado cultural. Os massacres de limpeza étnica elucidam muito bem essa relação.

Matthew Arnold (2011 apud Eagleton, 2011) ressalta que a palavra se desligou de adjetivos como “moral” e “intelectual” e tornou-se apenas “cultura”, uma abstração em si mesma. No entanto, essa relação ainda é muito controversa, pois, o processo civilizatório no mundo ocidental, com o apoio da Igreja católica, acabou atribuindo na disseminação da cultura os valores e dogmas religiosos pautados no cristianismo. Ou seja, por um lado, embora a religião seja um dos símbolos culturais de uma sociedade, a questão moralizante inerente às suas concepções não deve limitar a riqueza de significados advindos de outros símbolos.

A resposta que talvez requeira Todorov para essa difícil questão, é que os Estados, na tentativa de fortalecer a identidade nacional, não podem estabelecer a ordem social, escolhendo o que considera culturalmente melhor para a sua sociedade ou criar padrões de referência, e muito menos responsabilizar o caráter da própria cultura do outro, pelo fracasso no entendimento das relações humanas, políticas, econômicas e sociais.

Nesse sentido, se consideramos que o fio condutor da cultura é o homem que produz e dá sentido ao campo simbólico oferecido pela natureza, esta poderia explicar de alguma forma o desenvolvimento da humanidade. Em princípio, o termo “desenvolvimento” não recebe uma conotação de progresso, como o mundo capitalista nos ensinou a pensar. O que se procura entender é que quanto mais uma sociedade

produz, mais símbolos culturais ela fortalece enquanto memória, identidade cultural e História. Esse preceito, aliado à universalidade e a superioridade da cultura ocidental, tornou-se, erroneamente, palco de referência hegemônica e dominante.

Considerando ainda que a cultura é uma construção histórica que dinamiza o processo social, como disse o antropólogo brasileiro José Luis dos Santos (2006), as influências das transformações oriundas da Revolução Industrial inglesa do início do século XVIII, por exemplo, alavancaram a ideia de civilização à concepção materializada do poder, nas construções imponentes, no ensejo do fortalecimento econômico. Nesse sentido, o futuro enquanto um tempo da prosperidade possibilitado pela expectativa de progresso, se tornaria um “amontoado de ruínas”, como afirmara Benjamin. A Segunda Guerra Mundial, portanto, se revelou a mansão onde sua arquitetura destruidora e destruída representa a arena conflitante da cultura e da barbárie.

A ideia de civilização se torna, assim, atrelada ao conhecimento científico e erudito, concepção resultante da herança cultural do pensamento Iluminista do ocidente no século XVIII que, mediante a pregação da igualdade entre os homens, proporcionaria um convívio pacífico e produtivo para o meio social e melhoraria a espécie humana.

Esses fatores, no entanto, deturpando-se na fragilidade que normalmente recaem as utopias quando confrontadas com a realidade e com o tempo, transmutaram o valor humano da cultura ao igualá-la aos conceitos de civilização e evolução, relação que, mesmo abalada, parece persistir incólume no imaginário ocidentalizante até os dias atuais. Ou seja, mesmo no século XXI, os povos chamados tradicionais, como os indígenas, ainda são considerados não evoluídos e não civilizados, e o que é ainda mais preocupante, são ‘os que não têm cultura’, pois se encontram na periferia do caráter homogeneizante e hegemônico às regras da cultura dominante que seria a mola propulsora do progresso. Assim como, as comunidades tradicionais representadas pelos ribeirinhos na Amazônia, que habitam em palafitas, por exemplo, são vistas como alheias ao crescimento e ao desenvolvimento.

Percebe-se que, nesse contexto, a cultura recebe um caráter citadino, nos mostrando que só na cidade, em meio à urbanização, marca do avanço, seria possível encontrar o modelo adequado de vida. Portanto, a idealização do progresso e da civilização, nesses termos, é o embrião gerado silenciosamente por sentimentos disformes que dão origem ao monstro da barbárie. Então se os governos democráticos

aderiram, de alguma forma, a esses modelos de pensamento para organizar a sociedade e proporcioná-la o bem-estar, é claro que nem todas elas, mesmos as que, em princípio são uma só nação em termos de identidade cultural, vão ser contempladas por essa intenção. Desta forma, eis uma das contradições da soberania: quanto mais longe da ordem e do progresso, mais perto da Exceção.

3.3 MONUMENTO DA BARBÁRIE: O GROTESCO COMO ESTÉTICA DA