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O que é normalidade? Como saber o que é normal ou anormal se a classificação depende inclusive do que é socialmente aceito? É fato que os conceitos de normalidade e de deficiência serão definidos por meio das relações sociais e interpessoais (Freud, 1930), e, portanto, a escola, ao avaliar um aluno e considerá-lo especial, deve levar em conta não só as características do indivíduo, mas também a sua audiência, o ambiente escolar e o contexto familiar.

Para Vilhena (2006, 2003), é necessário entender o que leva o homem a conceber como inferior o que dele difere. Em situação análoga ao que ocorre na recriação do significado de perigo em relação ao favelado, a negros e homossexuais, o relacionamento com a deficiência representa um perigo em potencial da quebra de ilusão de norma e ordem.

“(...) a própria Psicologia parece supor que os deficientes integram categorias especiais de pessoas (...) A mesma característica pode ter sentido de vantagem ou de desvantagem dependendo de quem é o portador ou ator e de quem são os seus 'outros', isto é a sua audiência, assim como de outros fatores circunstanciais definidos pelo contexto no qual ocorre o encontro. O encontro entre o estigmatizado (ou estigmatizável) e seus 'outros' (a audiência) ocorre no cenário de relações sociais que parecem confirmar o status distintivo de um e a normalidade dos outros.” (Omote, 1999, pág. 5)

Os estudos sobre exclusão são sempre muito abrangentes e podem suscitar reflexões sobre a segregação social vivida pelos deficientes. Falar em exclusão é rotular com uma qualificação puramente negativa que designa a falta, sem dizer, muitas vezes, no que ela consiste nem de onde provém. Os traços constitutivos essenciais das situações de exclusão não se encontram nas situações em si, mas na audiência delas. (Lasch, 1983) Ou seja, o conceito de deficiência é socialmente construído.

Muito já foi dito sobre a necessidade de a sociedade classificar as pessoas em padrões estabelecidos por esta, de seguir paradigmas, modelos. É considerado anormalidade tudo o que não se adequar a esses padrões sociais e paradigmas. Neste cenário, podem-se incluir os procedimentos da sociedade em relação ao sujeito portador de deficiência. Ainda hoje, há uma parcela insignificante do

orçamento destinado à educação e à saúde mental. A visão assistencialista em detrimento da profissional, que ainda assombra a atuação em Educação Especial, também pode ser encontrada na sociedade com facilidade.

Segundo Lobo (1997), nunca houve no Brasil muita correspondência entre os discursos e as práticas de inclusão, a não ser nos casos extremos que envolviam um perigo iminente e em que as instituições recebedoras de crianças e jovens fossem prisões, hospícios e reformatórios. Para a autora, a classificação sempre esteve presente nas escolas, e a medicina fazia prestação de serviços de inspeção limitada à seleção de doenças físicas e mentais, assim como os serviços de psicologia eram organizados para selecionar crianças de acordo com a sua aptidão para a aprendizagem e para o trabalho.

Omote (1999) nos alerta para o fato de as diferenças entre as pessoas estarem sempre presentes nas investigações psicológicas e que, portanto, a existência dessas diferenças criariam inúmeras dificuldades aos estudiosos do comportamento, ao mesmo tempo em que se constitui maior razão para a necessidade de se realizarem estudos psicológicos do homem. As diferenças e os interesses individuais dos seres humanos, bem como os aspectos sociais, não são levados em consideração nos diagnósticos e, muitas vezes, nas avaliações pedagógicas.

Prossegue ainda Omote (1999) nos alertando para a ambiguidade que ocorre na relação entre deficiência e não deficiência, e que essa ambiguidade surgirá no momento da adoção de critérios e padrões para se definir o que é deficiente e não deficiente. Além da definição dos critérios, há a aplicação com a definição de expectativas prévias, e aí temos, mais uma vez, o diagnóstico como rótulo, sendo uma questão política, além de lógica e científica.

Qualquer comportamento que se diferencie incomoda e pode ser visto como uma manifestação da deficiência. Um exemplo claro dessa afirmação é o comportamento da maioria das escolas frente às dificuldades de aprendizagem de algumas crianças. Quando o grupo não segue todo da mesma forma, obtendo o mesmo sucesso, é comum encontrarmos encaminhamentos de alunos a serviços especiais, ainda que, na maioria das vezes, a causa da não aprendizagem não resida exatamente no aluno. Pouco se questiona a metodologia, a atuação do professor, o clima da instituição. Para Vilhena (2006), “é o desprezo pelo diferente, considerado inferior. Populações primitivas, atrasadas,

subdesenvolvidas e certas etnias compõem essa categoria do 'diferente', recusada pelo olhar daquele que se diz dotado de uma Razão superior (pág. 3)”. O problema e a deficiência estão sempre localizados no sujeito e nunca no ambiente. “Para criar uma estrutura psíquica harmoniosa, é necessário que o corpo seja vivido como local e fonte de prazer, e, quando isso não acontece, é um corpo odiado e ameaçador.” (Vilhena, 2007. pág. 6) Qualquer escolha levada ao extremo condena o indivíduo a ser exposto, o que ocorre caso uma técnica de viver, escolhida como exclusiva, se mostre inadequada. (Freud, 1930) Portanto, tanto a decisão radical da segregação como das propostas inclusivas podem representar escolhas inadequadas se forem formas únicas de educação, sem as devidas adaptações. Quando a questão é a inclusão de crianças com necessidades educativas especiais, a situação torna-se ainda mais complexa.

“Almeida (1984), buscando descrever e analisar os motivos de encaminhamento de alunos de classes comuns para as classes especiais de escolas públicas de primeiro grau da capital de um estado do Norte do país, entrevistou 15 professores de diferentes séries e unidades escolares e os 10 orientadores atuantes educacionais na ocasião. Os resultados indicaram que os professores das classes regulares encaminhavam alunos por apresentarem problemas relacionados à aprendizagem, saúde, indisciplina e repetência, que tais julgamentos eram precários e subjetivos e que nada era feito para intervir no problema antes de proceder o encaminhamento para a classe especial. Orientadores educacionais, em serie, relataram insegurança quanto à decisão sobre o encaminhamento para as classes especiais.” (Nunes e Glat, 1998)

Analisando os critérios sociais de classificação e enquadramento, vimos que a deficiência não é algo que vem com o nascimento, e sim algo socialmente construído.

Vejamos, então, quais seriam as principais questões psicossociais que devem ser levadas em consideração na análise dos portadores de deficiência.

A primeira delas pode estar relacionada à referência que o deficiente recebe da sociedade, ou seja, quando citado, é denominado como “deficiente” e não como pessoa humana. O mesmo acontece com seus familiares: “a irmã do deficiente mental”, “o pai do menino surdo”, “a mãe do aluno autista”. (Glat, 2002) O portador de necessidades especiais é, antes de tudo, um cidadão e como tal deve ser tratado. Deve ter direito ao bem comum. Mas como respeitar a individualidade e a especificidade do indivíduo deficiente no grupo, se quando ele é inserido, perde a sua identidade? (Freud, 1930) Em Vilhena (2007), é possível

verificar que a desumanização envolve categorizar um grupo como não humano, e, para isso, a sociedade se utiliza de categorias, sempre com conotações negativas, que inferiorizam o indivíduo.

No entanto, o conceito de cidadania pode variar de sociedade para sociedade. Nas mais diversas delas, por exemplo, a tônica é a exclusão dos que não produzem economicamente, e a condição de consumidor define o nível de participação e de utilização dos recursos na sociedade. Logo, na sociedade de consumo, os conceitos de cidadão e consumidor se confundem, e o portador de necessidades especiais está longe de ser um cidadão, haja vista que a própria sociedade se ressente da sua improdutividade. (Bauman, 2002) É estigmatizado e impedido de usufruir de oportunidades que vão desde o acesso a locais até o desenvolvimento pleno do ser humano.

O papel social nada mais é do que o comportamento adequado para determinada ocasião, um processo interacionista entre o homem e o ambiente. (Sennett, 1988) Para Vilhena (2003), a busca da cura do impuro e da construção do indivíduo como parâmetro do mundo é uma construção da modernidade que resultou em segregações e exclusões violentas.

“A história mostra-nos, através do racismo, do preconceito sexual e da indiferença face aos miseráveis, a facilidade com que se desumaniza o 'diferente' ou 'inferior' sem que nos sintamos minimamente responsáveis. Acreditando que este não é o sujeito moral como 'nós', toda crueldade pode ser cometida.” (Vilhena, 2006. pág. 3)

Há pelo menos uma grande barreira a vencer: a de atitude dos pares, pois é na convivência que a deficiência se constitui falta, falha, carência, defeito ou característica, peculiaridade. De acordo com Omote, trata-se de construção social da deficiência e, portanto, dependerá principalmente da interpretação dada a ela, e não das características que se apresentam. Essas pessoas não constituem exceções, mas são parte integrante de sociedade. A forma como as pessoas lidam com as diferenças (Lasch, 1983) define as suas concepções acerca da deficiência.

Complementando, Omote esclarece que a pessoa identificada como deficiente pode estar desempenhando um papel social previsto, fazendo-se necessária uma ressignificação social acerca das concepções de deficiência.

Algumas experiências encontradas na literatura e no dia a dia da escola inclusiva são ilustrativas para as discussões até aqui apresentadas. Na rede pública

de ensino, é bastante comum encontrarmos a total falta de estrutura das escolas para receber os alunos. Muitas vezes, este é um problema da construção e da manutenção das escolas. Uma criança autista pode ser avaliada pela equipe pedagógica e considerada apta para ingressar na sala inclusiva, mas é provável que esta sala não possa recebê-la em razão dos vidros quebrados na janela e do risco oferecido à integridade física da criança. O grande número de alunos também costuma ser um obstáculo para a inclusão, bem como a falta de preparo do professor para o trabalho com crianças autistas.

Os espaços físicos destinados à educação dos alunos especiais configuram um dado que merece análise. Certa vez, foi possível ouvir na Secretaria de Educação um recado deixado por uma diretora para a chefia do setor de Educação Especial. A mensagem dizia que a direção poderia abrir a sala solicitada para receber os alunos deficientes, mas a única sala disponível era um galpão utilizado para guardar sobras de matérias e cadeiras quebradas, e ele precisaria ser limpo antes. A escolha do espaço, pode-se dizer, refletia a importância dada ao trabalho e aos seus sujeitos.

“O espaço é um campo de construção da vida social onde se entrecruzam, ao tempo plural do cotidiano, os fluxos dos acontecimentos, o mundo e as condições singulares de constituição.” (Smith apud Vilhena, 2003, pág. 2)

Portanto, os espaços destinados aos alunos especiais em cada escola podem falar por si do que a sua audiência pensa sobre eles.

O homem que a educação deve realizar em cada um de nós não é o homem que a natureza fez, mas o homem que a sociedade quer que ele seja: e ela o quer conforme o reclame a sua economia interna, o seu equilíbrio.

A educação é indispensável porque organiza as experiências dos indivíduos, pelo desenvolvimento da personalidade e garantia da sobrevivência e das próprias coletividades humanas. (Fernandes, 1998) As práticas educacionais estão ligadas às técnicas, às normas e aos valores compartilhados por uma determinada cultura, e, portanto, não há técnica pedagógica neutra. Ensinar e aprender é uma questão de sobrevivência. Sem educação, a sobrevivência é inviável. A educação pode ser também transformadora, chave de um mundo melhor. Para Durkheim (1968), toda a vida social se dá no reino moral, pois a

sociedade possui leis próprias e precisa ser conhecida e os fatos sociais fazem uma coerção exterior.

As representações coletivas, assim, são exteriores às consciências individuais. Elas não derivam dos indivíduos considerados isoladamente, mas de sua cooperação. Os conteúdos são produzidos na sociedade e passados de geração em geração, e o meio moral é produzido pela cooperação entre os indivíduos por meio da divisão do trabalho social.

Educação é também socialização. É a forma pela qual o indivíduo aprende a ser membro da sociedade. É ilusão acreditar que podemos educar como queremos. Para cada parte da história, existe um tipo adequado de educação correspondente aos ideais dominantes, e, portanto, educação adequada é a educação própria ao meio moral.

“A educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio moral a que a criança particularmente se destine.” (Tosi, 2006, pág.101)

Para Sawaia (1999), a dialética inclusão/exclusão gesta subjetividades específicas que vão desde o sentir-se incluído até o sentir-se discriminado. É uma sensação sutil e multifacetada. Não é um estado, mas envolve o homem inteiro e suas relações, e alguém só é incluído ou excluído em comparação a outrem ou a um sistema. Portanto, a exclusão pode ser concebida como um descompromisso político com o sofrimento do outro. As categorias que incluem ou excluem alguém não são apenas econômicas, mas são determinadas pela legitimação social e individual e manifestam-se no cotidiano como identidade, sociabilidade, afetividade, consciência e inconsciência.

A realidade nossa de cada dia e os diversos olhares sobre