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Sartre procede o exame minucioso das diversas condutas de má-fé por meio de numerosas descrições fenomenológicas que ocupam muitas páginas do SN. Não exploraremos essas análises, tendo em vista a proposta desse trabalho e nossos objetivos. Em contrapartida, nos limitaremos apenas a abordar o exemplo do garçom do café, que é tido como o mais célebre utilizado pelo filósofo para ilustrar as condutas de má-fé.

[...] Vejamos esse garçom. Tem gestos vivos e marcados, um tanto precisos demais, um pouco rápidos demais, e se inclina com presteza algo excessiva. Sua voz e seus olhos exprimem interesse talvez demasiado solícito pelo pedido do freguês. Afinal volta-se, tentando imitar o rigor inflexível de sabe- se lá que autômato, segurando a bandeja com uma espécie de temeridade de funâmbulo, mantendo-a em equilíbrio perpetuamente instável, perpetuamente interrompido, perpetuamente restabelecido por ligeiro movimento do braço e da mão. Toda sua conduta parece uma

brincadeira. Empenha-se em encadear seus movimentos como mecanismos

regidos uns pelos outros. Sua mímica e voz parecem mecanismos, e ele assume a presteza e rapidez inexorável das coisas. Brinca e se diverte. Mas brinca de quê? Não é preciso muito para descobrir: brinca de ser garçom. Nada de surpreendente: a brincadeira é uma espécie de demarcação e

investigação. A criança brinca com seu corpo para explorá-lo e inventariá-

lo, o garçom brinca com sua condição para realizá-la. (SARTRE, 1997, p. 105-106, grifo nosso)159.

O garçom se comporta, com gestos e movimentos rápidos, precisos, com uma presteza e um interesse excessivos diante dos clientes, como num jogo tal como se representasse, mecanicamente, um papel de coisa. Seu comportamento assemelha-se ao de uma criança, totalmente envolvida numa brincadeira. Enquanto vivencia o ser garçom, o sujeito parece não se preocupar com mais nada, a não ser com sua representação. Sua existência parece se esgotar totalmente na realização desse projeto. Contudo, adverte Sartre, seu projeto de ser garçom, enquanto uma atitude que tenta fazer um ser-para-si tornar-se um em-si (no caso, um garçom agir como se fosse uma coisa), é ilusório e terminará, inevitavelmente, malogrado.

[...] o garçom não pode ser garçom, de imediato e por dentro, à maneira que esse tinteiro é tinteiro, esse copo é copo. Não que não possa formar juízos reflexivos ou conceitos sobre sua condição. Sabe muito bem o que esta "significa": a obrigação de levantar-se às cinco, varrer o chão do café antes de abrir, ligar a cafeteira, etc. [...] E é exatamente o sujeito que devo ser e não sou. Não porque não o queira ou seja outro. Sobretudo, não há medida

comum entre o ser da condição e o meu. A condição é uma 'representação'

para os outros e para mim, o que significa que só posso sê-la em representação. [...] Tento realizar o ser-em-si do garçom, com risco de ser despedido do emprego. [...] Todavia, não resta dúvida que, em certo sentido, sou um garçom [...] porém se o sou, não pode ser à maneira do ser-em-si, e

159 "[...] Considérons ce garçon de café. Il a le geste vif et appuyé, un peu trop précis, un peu trop rapide, il vient

vers les consommateurs d‘un pas un peu trop vif, il s‘incline avec un peu trop d‘empressement, sa voix, ses yeux expriment un intérêt un peu trop plein de sollicitude pour la commande du client, enfin le voilà qui revient, en essayant d‘imiter dans sa démarche la rigueur infléxible d‘on ne sait quel automate, tout en portant son plateau avec une sorte de témérité de funambule, en le mettant dans un équilibre perpétuellement instable et perpétuellement rompu, qu‘il rétablit perpétuellement d‘un mouvement léger du bras et de la main. Toute sa conduite nous semble un jeu. Il s‘applique à enchaîner ses mouvements comme s‘ils étaient des mécanismes se commandant les uns les autres, sa mimique et sa voix même semblent des mécanismes ; il se donne la prestesse et la rapidité impitoyable des choses . Il joue, il s‘amuse. Mais à quoi donc joue-t-il ? Il ne faut pas l‘observer longtemps pour s‘en rendre compte: il joue à être garçon de café. Il n‘y a rien là qui puisse nous surprendre : le jeu est une sorte de repérage et d‘investigation. L‘enfant joue avec son corps pour l‘explorer, pour en dresser l‘inventaire ; le garçon de café joue avec sa condition pour la réaliser." (SARTRE, 2004, p. 94).

sim sendo o que não sou. [...] Por toda a parte, escapo o ser - e, não obstante, sou. (SARTRE, 1997, p. 107, grifo nosso)160.

De fato, essa conduta da atitude de má-fé de ver-se como coisa está, desde seu princípio, fadada ao fracasso. Trata-se de uma tentativa de disfarçar o fato de que ser garçom e continuá-lo a sê-lo é uma escolha feita e reafirmada a cada instante pelo próprio sujeito. Na verdade, o ofício de garçom deve ser considerado um projeto consciente de representação, poderíamos dizer, de um papel, formado e definido previamente. Sou um garçom, na medida em que busco atuar nesse papel, o mais perfeito possível161. Contudo sou um garçom, necessariamente, de um modo diferente do ser-em-si. Como diz Sartre, na condição de para- si, inevitavelmente escapo o ser, tentando ser algo, e, ainda assim, sou. Esse é o modo de ser do homem, enquanto liberdade, um ser-projeto que busca ser algo e busca ainda ser consciência de si, enquanto ser, ou seja, um Em-si-Para-si, mesmo sabendo que, ontologicamente, existe, enquanto escapa ao ser162.

A discussão sobre a má-fé é longa e demandaria ainda muitas páginas se quiséssemos explicitá-la satisfatoriamente. Contudo, em vista de nossa proposta, não faremos isso163.

De qualquer forma, é preciso compreender que, segundo o pensamento sartreano, o fenômeno da má-fé é uma noção, tal como a liberdade e a escolha, que remetem, originariamente, à ontologia fenomenológica, e, ao mesmo tempo, à dimensão moral do

160 ―[...] le garçon de café ne peut être immédiatement garçon de café, au sens où cet encrier est encrier, où le

verre est verre. Ce n‘est point qu‘il puísse former dês jugements réflexifs ou des concepts sur sa condition. Il sait bien ce qu‘ elle « signifie » : l‘obligation de se lever à cinq heures, de balayer le sol du débit avant l‘ouverture des salles, de mettre le percolateur en train, etc. [...] Et c‘est précisément ce sujet que j’ai à être et que je ne suis point. Ce n‘est pas que je ne veuille pas l‘être ni qu‘il soit un autre. Mais plutôt il n‘y a pas de commune mesure entre son être et le mien. Il est une « représentation » pour les autres et pour moi-même, cela signifie que je ne puis l‘être qu‘en représentation. [...] Ce que je tente de réaliser, c‘est un être-en-soi du garçon de café, comme s‘il n‘était pas justement en mon pouvoir de conférer leur valeur et leur urgence à mes devoirs d‘état. [...] Pourtant il ne fait pas de doute que je suis en un sens garçon de café [...] Mais si je le suis, ce ne peut-être sur le mode de l‘être en soi. Je le suis sur le mode d’être ce que je ne suis pas. [...] De toute part j‘échappe à l‘être et pourtant je suis.‖ (SARTRE, 2004, p. 94-95).

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Poderíamos dizer, buscando ir além do ofício do garçom, segundo Bornheim (2005, p. 49), que parece fazer parte da condição humana a representação de papéis. Na verdade, o para-si esforça-se para assumir ou viver uma condição que não é a sua. A situação do exemplo do garçom do café assemelha-se, por exemplo, a de um médico que se esforça para representar esse papel, visando conquistar a confiança de seus pacientes. E assim, poderíamos pensar num vendedor, num soldado, num pai, num marido etc.

162 Essa carência ontológica e a constante busca por sua superação marcam a existência do Para-si. O homem

busca ser algo e ser consciência de si, enquanto algo, mesmo sabendo que não poderá sê-lo. A má-fé é, pois, a tentativa de disfarçar essa impotência. É preciso dizer ainda que, negativamente, o homem consegue realizar-se enquanto Em-si, somente enquanto "modo de ser o que não sou" (SARTRE, 1997, p. 118; EN, 2004, p. 100).

163 Quem quiser ler mais sobre a má-fé, pode encontrar uma excelente abordagem feita por Cox (2007, pp 119-

168), além das dissertações de Castro (2005) e Póvoa (2005) que tratam especificamente dessa noção. Infelizmente não desenvolveremos aqui a reflexão sartreana da crença no tocante à má-fé, discutida pelo filósofo a partir do tema que trata da fé na má-fé.

sujeito. Por isso ela, a liberdade, e a noção de autenticidade, enquanto esforço para fugir da má-fé, ajudam a corroborar a necessária relação entre ontologia e moral164.

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