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3.3 EXEMPLOS DE TRADUÇÕES QUÍMICAS NA LITERATURA

A análise dos experimentos alquímicos

3.3 EXEMPLOS DE TRADUÇÕES QUÍMICAS NA LITERATURA

Alguns exemplos de tradução química já foram citados nessa tese, como por exemplo, a redução ao estado pristine, de Daniel Sennert citada por Newman214, foi traduzida no item 1.7 dessa tese. Também no item 1.2 foi apresentada uma tradução de um trecho dos Workdiaries de Robert Boyle.

Outros exemplos são igualmente interessantes como o dado por Lawrence Principe no seu livro The Aspiring Adept215. Ele reproduziu em laboratório um experimento químico e com isso conseguiu estabelecer uma ponte entre George

213

Para saber mais veja: PRINCIPE, 1987, p. 21-33.

214

NEWMAN, 2006.

215

Starkey e Robert Boyle que seria impossível sem conhecimento de química contemporânea. Boyle admitiu na revista Philosophical Transactions que sabia obter mercúrio sófico, porém omitiu o modo de preparação e não mencionou fonte alguma216. Na revista, Boyle fez referência aos efeitos do material sem citar o modo de preparação, enquanto Starkey tinha em seu caderno a preparação de um material que se supunha ser o mercúrio incalescente, mas não mencionava nada sobre as suas propriedades.

Graças a um experimento realizado em um laboratório, seguindo o procedimento dos cadernos de Starkey217, Principe obteve o mercúrio incalescente, um material que dissolve ouro como gelo jogado em água morna. O material absorve sua cor, cresce e esquenta muito, formando uma figura parecida com uma árvore. Newman tenta seguir todos os passos para obter o famoso mercúrio sófico218, uma mistura de prata, antimônio e mercúrio, que cresce e esquenta com a adição de ouro e é uma etapa extremamente importante para conseguir a pedra filosofal. Os resultados obtidos do experimento em laboratório confirmaram George Starkey como fonte do mercúrio incalescente, citado por Boyle na Philosophical Transactions, como declara abaixo Newman:

Esses sinais textuais da identidade do mercúrio antimonial filosófico de Starkey com o mercúrio incalescente de Boyle pode ser confirmado pela química experimental. O procedimento de Starkey é suficientemente claro de forma que eu podia realizá-lo em laboratório. Com pequenos ajustes, eu obtive (seguindo um preciso processo laborioso descrito) um mercúrio que, quando misturado com cal de ouro, realmente esquenta, exatamente como Boyle descreveu. Eu lembrei em outras ocasiões como o conhecimento químico e a replicação de experimentos históricos, corretamente e sensivelmente aplicados, podem auxiliar pesquisas históricas. O fato experimental de que o mercúrio de Starkey esquenta como o outro (propriedade

216

BOYLE, 2000, v.8, p. 553-567.

217

Para saber mais ver especificamente sobre o caderno de laboratório de George Starkey, veja: NEWMAN; PRINCIPE, 2004.

218

Para saber mais sobre o mercúrio sófico e o seu procedimento, assim como alterações realizadas desde Van Suchten até Boyle, veja o livro: NEWMAN; PRINCIPE, 2002.

não descrita por ele) confirma Starkey como fonte do mercúrio incalescente de Boyle.219

Nessa pesquisa, a identificação de George Starkey como fonte do mercúrio incalescente de Boyle seria impossível sem a ajuda de experimentos químicos, exemplificando o tipo de auxílio que essa abordagem pode trazer para a história da ciência.

Algumas vezes Newman dá outras reações para explicar em termos modernos o que o alquimista está fazendo. A Offa Alba é outro exemplo digno de nota: Starkey descreve um material obtido da coagulação do espírito da urina humana em espírito do vinho. Em termos contemporâneos isso corresponderia a uma mistura de etanol com amônia aquosa impura. O provável produto identificado seria carbonato de amônio (NH4)2CO3. O carbonato é insolúvel em álcool etílico, então, quando a amônia e o álcool são misturados, o carbonato precipita na forma de uma massa branca, como descreve Newman:

Starkey diz: „o espírito do vinho é anexado com o espírito da urina humana, em virtude e causa pelo qual, ele coagula o espírito do vinho‟. O coágulo de Starkey é idêntico a Offa Alba produzida por Van Helmont da mesma forma que Starkey produziu – misturando etanol e amônia aquosa impura. O produto desta combinação foi identificado pela química moderna: é basicamente carbonato de amônio, (NH4)2CO3 [...] O carbonato é insolúvel em álcool, então

quando a amônia dissolvida em água e o álcool são misturados, o carbonato precipita na forma de uma massa branca – daí o nome dado por Van Helmont de Offa Alba.220

Starkey acreditava que a Offa Alba não se tornava um material diferente nas reações com espíritos, mas, apenas alterava certas propriedades devido a presença de algumas impurezas. Para provar isso, ele reagiu a Offa Alba com diferentes espíritos, obtendo diferentes materiais e depois fixou os mesmos com óleo de tártaro, obtendo novamente o material inicial. Para Starkey, esse material continuou o mesmo, porém com algumas propriedades modificadas. Sua

219

NEWMAN; PRINCIPE, 2002, p. 161.

220

insistência na identidade desse material é baseada na sua aderência nos textos alquímicos de Van Helmont. A Offa Alba seria o produto de um casamento helmontiano perfeito e o ponto de partida para o alkahest, o solvente universal. Do ponto de vista da química contemporânea, o carbonato de amônio foi colocado para reagir com diversos ácidos, formando diferentes sais. Posteriormente, a reação dos mesmos sais com carbonato de potássio formou novamente o carbonato de amônio. As reações detalhadas seguem no trecho abaixo:

Em outras palavras, Starkey misturou o carbonato de amônio com ácido acético, ácido sulfúrico, ácido nítrico e ácido clorídrico nos respectivos testes. Em cada caso ele descobriu que o produto era o mesmo ou pelo menos similar. As reações envolvidas podem ser sumarizadas na ordem dada por Starkey, como segue:

(NH4)2CO3 + 2 CH3COOH → 2 CH3COONH4 + H2O + CO2

(NH4)2CO3+ H2SO4 → (NH4)2SO4 + H2O + CO2

(NH4)2CO3+ 2 HNO3 → 2 NH4NO3 + H2O + CO2

(NH4)2CO3+ 2 HCl → 2 NH4Cl + H2O + CO2

O que Starkey produziu nessas reações foi acetato de amônio, sulfato de amônio, nitrato de amônio e cloreto de amônio. Apesar de estar ciente do fato de que esses produtos não eram completamente idênticos ele assumiu que suas diferenças eram devidas a impurezas [...] Porque ele estava tão disposto a atribuir as diferenças dessas substâncias a meros acidentes? Porque Starkey já tinha se comprometido com a crença de que a sua Offa era o produto de um casamento helmontiano perfeito. Dessa forma sua homogeneidade e sutileza deveriam impedir sua decomposição por meio de sublimação [...] Para confirmar sua teoria, Starkey então misturou, separadamente, os respectivos produtos ácidos com uma solução de alcalina. Ele sabia por meio de seus técnicos contemporâneos que uma mistura de sal amoníaco e álcali deveria libertar amônia. Então ele supôs que poderia provar a identidade de todos os seus quatro produtos com sal amoníaco se pudesse ser demonstrado que eles liberam a mesma quantidade de espírito urinoso pela exposição ao material alcalino [...] Ele tinha o habito de pesar ingredientes iniciais e produtos finais, uma prática herdada por Alexander von Suchten. As reações envolvidas podem ser facilmente sumarizadas:

(NH4)2SO4 + K2CO3 → (NH4)2CO3 + K2SO4

2 NH4NO3 + K2CO3 → (NH4)2CO3 + 2 KNO3

2 NH4Cl + K2CO3 (NH4)2CO3 + 2 KCl

Foi a própria Offa que serviu a Starkey como ponto de partida para o seu alkahest.221

Starkey teve a preocupação de pesar corretamente os materiais, tentando provar sua teoria por experimentos e utilizando aparatos apropriados em seu laboratório que, como visto no item 1.1, não era incomum entre os alquimistas. Todas estas preocupações técnicas podem ser encontradas em trabalhos alquímicos relacionados com crisopéia ou o alkahest. Principe argumentou em outros trabalhos que a alquimia não se distingue do trabalho prático de um laboratório e que alguns alquimistas foram extremamente cuidadosos no seu trabalho químico:

Conseqüentemente nós podemos ver hoje que a alquimia como um todo não está distante do trabalho prático de laboratório. Alguns alquimistas, incluindo os que trabalhavam com crisopéia, foram altamente solícitos em seus trabalhos manuais, cuidadosamente empregando ou desenvolvendo aparatos especiais para propósitos específicos […] Além disso, algumas das imagens centrais da tradição alquímica têm se mostrado explicáveis ou mesmo racionais […] apresentados em termos de reais fenômenos físicos a luz de operações laboratoriais empíricas e experimentais.222

Principe, discutindo problemas sobre tradução química com relação a impurezas, dá outro exemplo de equação química moderna: a reação de combustão do trisulfeto de antimônio (chamado pelos alquimistas apenas de antimônio), formando oxido de antimônio. Segue-se o trecho abaixo:

A simples tradução química dessa preparação deve envolver apenas nosso conhecimento de que os termos químicos corretos para o antimônio de Valentine ou Spiessglass não é antimônio metálico, mas o seu trisulfeto. O produto da receita

221

NEWMAN, 1994b, p.183-185.

222

parece claro [...] Quando o trisulfeto de antimônio é lentamente aquecido e exposto ao ar são formados óxidos de antimônio e é liberado o dióxido de enxofre. O material o qual Valentine se refere é o dióxido de enxofre misturado com os fumos brancos do volátil trióxido de antimônio. Os óxidos de antimônio juntos com algum trisulfeto residual compõem a cinza. 2 Sb2S3 + 10 O2 → 6 SO2 + Sb2O3 . Sb2O5.

223

A reintegração do nitro (presente no ensaio do nitro) é outro bom exemplo de como essa nova abordagem da história da química tem aparecido no meio acadêmico. Salitre (KNO3) é queimado com carvão (C), produzindo dois nitros, um fixo (K2CO3) e outro volátil (HNO3). A reação do nitro fixo com o volátil restaura o salitre inicial. A reintegração do nitro é discutida por muitos estudiosos, alguns chegando até mesmo a arriscar os mecanismos de reação224.

A mesma reação de reintegração do nitro é apresentada por Newman e Principe no livro Alchemy tried in the fire: Starkey, Boyle and the fate of helmontian Chemistry. Os autores explicam a reação em termos modernos e também porque Glauber pensou que o salitre poderia ser o solvente universal, pela sua natureza dupla:

Em termos da química moderna, nitrato de potássio queima vividamente com carvão para produzir carbonato de potássio (K2CO3), um “sal cáustico e detergente” [...] Tem se sabido

por séculos que uma substância espirituosa poderia ser obtida por meio da destilação do nitro [...] fazendo o espírito do nitro, nosso ácido nítrico. Então Glauber concluiu que o salitre era uma substância dual, um sal hermafrodita que continha ambas: uma substância ácida e volátil que ele chamou de nitro volátil (ácido nítrico) e uma substância sólida e cáustica que ele chamou de nitro fixo (carbonato de potássio). Devido ao fato de que esses dois componentes do nitro podiam dissolver uma grande gama de substâncias (ácido nítrico sendo um poderoso corrosivo e carbonato de potássio uma base saponificante), Glauber pensou que tinha descoberto o alkahest de Van Helmont, o solvente universal. Porém, Glauber também recombinou seu nitro fixo e volátil e

223

PRINCIPE, 1987, p. 23.

224

ZATERKA, 2003, p. 132-133. O Mecanismo de reação é a seqüência específica de etapas pela qual os reagentes passam para se tornarem produtos em uma reação química.

reconheceu que o produto era mais uma vez um sal dual – nitro simples – reconstituído.225

Provavelmente, seria extremamente útil essa nova abordagem, possibilitando a tradução química de textos alquímicos históricos. Mesmo sem a inicial possibilidade de fazer experimentos, a interpretação de velhos textos alquímicos descritos em termos químicos modernos permitiria aumentar as informações disponíveis a respeito dessas reações.