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4. SUBINDO A ESCADA: ASPECTOS SOCIOCOGNITIVOS E O

4.2. TOMANDO CONSCIÊNCIA: PONTO DE INTERSECÇÃO ENTRE TÉCNICA E

4.2.1. Exercício Diário nº4 (E.J 4)

Um dos exercícios que mais marcaram a minha trajetória no mestrado profissional foi o Exercício Diário nº4 do Método Completo de Flauta de Taffanel e Gaubert (TAFFANEL; GAUBERT, 1923). O Exercício Diário nº4, mais conhecido entre os flautistas como E.J.4, abrange todas as escalas diatônicas do sistema tonal (maiores e menores), organizadas em um intricado sistema de variações. O E.J.4 foi determinante para o meu desenvolvimento, por funcionar como uma ponte de articulação entre meu novo referencial técnico com a fluidez e musicalidade, ajudando-me a tornar natural o que passei meses tentando conscientemente reconstruir no meu tocar.

Figura 27: Recorte do E.J. 4 de Taffanel e Gaubert

Fonte: TAFFANEL, Paul; GAUBERT, Philippe. Méthode Compléte de Flûte. Paris: Alphonse Leduc, 1923.

Eu já conhecia o E.J.4 antes das aulas de Lucas, mas nunca tinha estudado-o a fundo, como Lucas me propôs. O primeiro aspecto fundamental no trabalho com o E.J.4 foi a tomada de consciência da estrutura e do funcionamento do exercício. Lucas exigia que o exercício fosse executado de memória e, para tal, chamou minha atenção para determinação de padrões presentes na estrutura do exercício que funcionavam como guia para compreensão da sua construção e desenvolvimento. Pude perceber que as escalas maiores progressivamente completavam ciclos periódicos de uma oitava, alternando a direção (ascendente ou descendente) da escala a cada grau (ver Figura 28).

Figura 28: Estrutura do E.J.4 - Escalas maiores

Fonte: Adaptado de TAFFANEL, Paul; GAUBERT, Philippe. Méthode Compléte de Flûte. Paris: Alphonse Leduc, 1923.

Nas escalas menores, a composição do exercício se torna bem mais complexa, pois, além da estrutura presente nas escalas maiores, acontecem diferentes variações entre três tipos de escalas menores: melódica, harmônica e natural (ver Figura 29).

Figura 29: Estrutura E.J.4 - Escalas menores

Fonte: Adaptado de TAFFANEL, Paul; GAUBERT, Philippe. Méthode Compléte de Flûte. Paris: Alphonse Leduc, 1923.

Compreender a construção do exercício, a partir da identificação desses padrões, foi fundamental para poder transpor essa estrutura para todas as outras tonalidades, de memória. Dessa forma, além da memória cinestésica (que se reafirmava a cada padrão de movimento dos meus dedos presentes durante a execução das escalas), o mapeamento estrutural do exercício me permitiu pensar nas escalas a partir de cada um de seus graus e conscientemente variar e transpor sua estrutura. Apesar da grande quantidade de informação, memorizar as notas e a estrutura de todas as escalas, bem como coordenar a digitação para executá-las, constituem apenas a primeira etapa desse processo.

Após a etapa de assimilação e entendimento do exercício, Lucas me apresentou o Scale

Game, que é uma espécie de bula, elaborada pelo flautista Michel Debost, para estudo do E.J.4

(cf. DEBOST, 2002). O intuito do Scale Game é estruturar uma rotina de estudo que alterna periodicamente a ordem de execução das escalas ao longo do mês e adiciona uma série de variantes na execução das escalas, levando em conta grandes variações de articulação, andamento e dinâmica em sua estrutura. Ao todo, totalizam-se 30 escalas (entre maiores, menores e escalas homônimas em diferentes registros) e 60 variações de execução dessas escalas (entre diferentes andamentos, articulações e dinâmicas). O exercício organiza um complexo de 1800 diferentes possibilidades de estudo, levando em conta que cada escala pode

ser variada de 60 formas diferentes. Desse modo, engloba quase que inteiramente os problemas e desafios do instrumento, permitindo um trabalho muito abrangente.

Para garantir que tudo isso estava sendo progressivamente assimilado, no início de cada aula, Lucas, de maneira aleatória, definia uma escala e uma variação, para que eu executasse de memória. Isso colocava à prova meu conhecimento da estrutura das escalas e minha habilidade em coordenar e executar o que estava sendo proposto, além de permitir um diagnóstico a respeito de quais eram os meus pontos fortes e fracos. Um dos aspectos que mais me marcou durante esse processo foi a exigência de Lucas com relação à condução das frases durante as escalas. Não era apenas a digitação, o ritmo e a memória que estavam em jogo, mas a coordenação de todos esses aspectos com uma boa sonoridade e uma boa articulação sem prejuízo dos aspectos intrínsecos da musicalidade presente na condução melódica. Segundo Michel Debost (2002, p. 214), “escalas são parte essencial da prática instrumental diária, tanto quanto ou até mais do que exercícios de sonoridade, porque o som está presente nelas. Para maior proveito, elas [as escalas] devem ser consideradas como música, o que, na verdade, elas são”37.

O E.J.4 representou um divisor de águas que me permitiu empregar o que havia construído no estudo de técnica com a musicalidade e fluidez. A exploração conjunta de diversos aspectos presentes no E.J.4 (mudanças de registro, controle de dedilhado, articulação, sonoridade, memória, acuidade rítmica, entre outros) foi, a princípio, muito desafiadora. No entanto, permitiu-me entender a execução da flauta enquanto um organismo e tomar consciência da relação entre os diversos aspectos da técnica com a fluidez, levando em conta as diferentes respostas do meu corpo e do instrumento.

A cada aula, escala e variação, diferentes dificuldades se apresentavam e isso me ajudava a direcionar minha atenção e organizar melhor meu estudo. Aos poucos, tudo foi ficando muito mais confortável de se executar. O mapeamento de minhas facilidades e dificuldades ia ficando mais claro, assim como as instruções iniciais de Lucas cada vez mais se encaixavam e encontravam ressonância em minha prática e resolução de problemas. À medida que Lucas me pedia para que eu variasse a condução das frases durante as escalas (encurtando e/ou alongando os arcos no fluxo de ar que indicavam seu início, meio e fim), a correlação de todos os aspectos técnicos passou a funcionar de maneira mais orgânica. Isso me permitiu entender e aplicar

37 “Scales are the essential part of daily instrumental practice, as much as or more than tone exercises, because

melhor o controle da respiração, produção sonora, mudança de registros, homogeneidade no fluxo de ar, etc.

O E.J.4 foi fundamental para que eu construísse e internalizasse os parâmetros para entender a relação entre a força do fluxo de ar e o tamanho da embocadura, a utilização dos lábios e a conformação interna da minha cavidade bucal (a fim de controlar a manutenção de timbre e fluxo de ar homogêneo, mudança de registro, ressonância e afinação funcionando de forma coordenada com o direcionamento melódico das escalas). Aos poucos, a fluidez que ia conquistando na execução das diferentes escalas e variações do Scale Game me conferiam mais coerência e segurança para lidar com o repertório da flauta de forma mais natural. O E.J.4 me ajudou a desconstruir os entraves técnicos que persistiam em minha prática (frutos da insegurança e falta de parâmetro para controlar a flauta enquanto organismo interdependente) e estabelecer mais naturalidade para explorar a expressividade de maneira mais fluida.

4.2.2. Construindo Autonomia: Aparelhamento de estratégias para amadurecimento da

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