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CAPÍTULO 3 – Aspectos burocráticos da morte em um Estado que criminaliza a

3.4 La existence versus das Dasein?

Pois, sendo a morte o fim de uma existência pessoal, a partir da visão existencialista de Sartre (1943), a complexidade da vida se resume simplesmente ao ser, seu entorno e seu fim. Sartre denomina “projeto original” à escolha que o indivíduo faz sobre si próprio. Essa é uma matriz dos demais projetos, determina as ações, sentimentos, etc. de cada um. Contudo, quanto ao “projeto original” Sartre afirma que todo projeto original, na verdade, é um reflexo de uma frustração: a de não ser Deus. Graças a esse fracasso, o indivíduo encontra sua liberdade e contingência. (VIANA, 2009)

Esta concepção de não ser Deus, ocorre em virtude da mortalidade humana. É por isso que os agentes do Biopoder desejam e articulam-se incansavelmente para ter o controle da vida e da morte dos indivíduos. O biopoder é uma (grande e eficaz) forma de controlar a existência e alongar a temporalidade finita do humano, seja este legado bom ou ruim.

Sartre (1943) e Heidegger (1989), apesar das diferentes concepções existenciais, concordam no aspecto de que a "existência" do homem é algo temporário, paira entre o seu nascimento e a morte que ele não pode evitar. A existência no sentido Sartriano está entre o passado (em suas experiências) e o futuro, sobre o qual ele não tem controle, e onde seu projeto será sempre incompleto diante da morte inevitável. (COBRA, 2001). Já Heidegger trabalha a existência a partir do termo Dasein, que muitas vezes é traduzido com ser-aí, em alusão a existência finita e o tempo em que permanecemos no mundo.

No entanto, enquanto Sartre defende que “a existência precede à essência” e o humano só existe enquanto vive, Heidegger define que o ser humano é um ser para a morte:

A morte constitui uma limitação da unidade originária do ser-aí, significa que a transcendência humana, o poder-ser, contém uma possibilidade de não-ser. Diz Heidegger: “o ‘fim’ do ser-no-mundo é a morte. Esse fim, que pertence ao poder-ser, isto é, à existência, limita e determina a totalidade cada vez possível do Dasein” (HEIDEGGER, 1989 apud WERLE, 2002)

Sartre acredita que a morte tira o sentido da vida, afirmando que é “nadificação” dos nossos projetos, é a certeza de que um “nada total nos espera” (SARTRE, 1943).

Eis o impasse filosófico da questão: Se só temos acesso a esta existência, não havendo uma certeza empírica da existência após a morte, abandonar esta vida, abrindo mão da experiência de existir, em todos os seus aspectos, inclusive nas dores da morte, não seria abrir mão de completude da existência humana?

Heidegger assume que o projeto é a angustia da vida e a morte a liberdade do ser:

Entretanto, o caráter aparentemente negativo da morte apenas se coloca quando a morte é tomada no sentido vulgar de ser o momento do término físico da vida. Mas há um lado positivo na morte, isso se o ser humano assume o seu ser-para-a-morte, isto é, leva em conta que a morte é um fenômeno da própria existência e não do término dela. A morte apenas tem sentido para quem existe e se põe como um dado fundamental da existência mesma. (WERLE, 2002)

Diante do nó existencial atado pelos autores acima, pode-se compreender que a eutanásia é “boa morte” para quem quer deixar de sofrer, para quem já acertou as contas com a vida e nada mais espera dela. Também pode ser vista como um ato de misericórdia e de garantia de dignidade, poupando o indivíduo do sofrimento da existência limitada.

Inclusive o sofrimento físico não necessariamente traz uma dor física, o estado vegetativo, segundo Varella (2011): é a mais frustrante das condições humanas. A pessoa está viva, abre os olhos, dorme, acorda, executa as funções fisiológicas, mas durante meses, anos, permanece alheia, incapaz de esboçar a menor reação.

Mas, independentemente das correntes existencialistas que nadificam a existência, é possível viver de forma digna e morrer de tal forma. A morte pode vir na forma de mistério e inspiração, tal qual Saramago (2005) brilhantemente retratou nas “Intermitências da Morte”: “Abraçou-se ao homem e sem compreender o que lhe estava a suceder, ela (a morte) que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu” (p. 207), ou como afirmou Manuel Bandeira (1886 - 1968) em poesia:

Quando o enterro passou

Os homens que se achavam no café Tiraram o chapéu maquinalmente Saudavam o morto distraídos Estavam todos postos para a vida Absortos na vida

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado Olhando o esquife longamente

Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade Que a vida é traição

E saudava a matéria que passava Liberta para sempre da alma extinta.

Mas nem sempre a morte é retratada tal qual o fascínio literário exposto. A morte também é burocrática. Só o Código Civil Brasileiro38, em seu último livro, sobre as Sucessões, dispõe de 243 artigos de lei que regulamentam as heranças, os herdeiros, testamentos, inventários, etc. E essa é só a parte que normatiza o patrimônio do falecido, fora a burocracia administrativa, quanto à baixa de documentos e ritos funerários.

Entretanto, movimentos independentes vêm trabalhado a questão da morte no sentido de desmistificação e até uma nova configuração para o tratamento dos indivíduos nesta fase final da vida. Com um objetivo de humanização no atendimento médico, assim como as doulas de partos, auxiliares no surgimento da vida, existe, desde 2003, um programa de doulas da morte39 nos Estados Unidos, no qual profissionais acompanham um doente em sua residência, de forma digna e pessoal, diferentemente do que ocorre nos hospitais tradicionais:

Alguns profissionais, principalmente aqueles que prestam assistência espiritual em hospitais tem aplicado o modelo das doulas para o nascimento também para o lidar com a morte. Apesar da maioria das pessoas desejar morrer em casa, a maior parte acaba por morrer em hospitais, longe das pessoas amadas, sem autonomia, cercado mais por tecnologias de sustentação da vida do que do cuidado direto.40

Deste ponto de vista, a dignidade de morrer é ser respeitado como ser humano pleno de corpo, alma e espírito. Se tivermos dificuldades na compreensão do direito de morrer de forma digna, é apenas necessário lembrar-nos que a morte também faz parte da vida. (MADRUGA, 2010)41

38 Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

39 Disponível em: http://www.redehumanizasus.net/89810-doulas-para-a-morte Último Acesso em 10/05/2013 40 Disponível em: http://www.redehumanizasus.net/89810-doulas-para-a-morte Último Acesso em 10/05/2016 41 Disponível em: http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=20315:morrer-com-

A existência das Doulas da Morte coloca a questão de que o aparato tecnológico dos hospitais não abarca as necessidades existenciais do fim da vida. São apenas máquinas, instrumentos que mantém um corpo com sinais vitais, números em uma tela ou exames clínicos.

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