• Nenhum resultado encontrado

1.4 Organização social e política dos Sateré-Mawé da Comunidade Indígena Beija-flor I

1.4.1 Exogamia na consolidação da identidade coletiva

Quanto à forma de casamento o povo Sateré-Mawé desenvolve a prática da exogamia, e esta regra faz das mulheres o elo de aliança com os ywania (clãs). Trata-se, então, do clã exogâmico patrilinear e patrilocal. Após o matrimônio, os cônjuges vão morar com o pai do marido ou próximo a ele, o que muitas vezes provoca desconforto entre a mulher e os parentes de seu marido. No entanto, a regra da patrilocalidade não é rígida assim como a prática da exogamia fora das aldeias. Na literatura, o casamento exogâmico é visto como uma transposição de fronteiras sociais, uma vez que envolve a aceitação de um cônjuge com características marcadamente diferenciadas, conforme dados apresentados anteriormente. Sobre a questão,

58 Teixeira (2005) se refere aos padrões de nupcialidade como parte central das análises demográficas de uma dada população.

O casamento entre os indígenas é regido por uma série de regras que, como todos os costumes, diferenciam-se grandemente de sociedade para sociedade. Há sociedades que permitem a poligamia, mas especificamente a poliginia, segundo Wagley & Galvão (1968) existe entre o povo tupinambá, o casamento de um homem com mais de uma mulher. Outros só permitem a monogamia, exemplo dos povos Timbira. Sendo assim, a exogamia não constitui um matriarcado linear, posto que cada grupo étnico residente na “comunidade”, age de acordo com a cultura que lhe foi ensinada. A liderança tem a exogamia como base na formação de uma identidade coletiva, nesse caso possui funções essenciais como a difusão da cultura de cada um dos lados daquela união, pois cada cônjuge aprende os costumes um do outro. Ao aprender com o outro, um arcabouço de conhecimento adquirido no contato diário com o cônjuge será acrescido aos seus e repassado aos filhos e filhas através da oralidade ou das práticas educativas milenares demonstradas através da arte da dança e dos rituais, dos grafismos e a variedade do artesanato, além das atividades comuns do dia a dia. Portanto, na medida em que diferentes grupos étnicos se dão em casamento, suas culturas são ressignificadas através de ações que expressam a existência de novos saberes. Há uma construção social em torno do reconhecimento da cultura do outro através das trocas de saberes. A exogamia enquanto fato social estabelece a identidade cultural da “comunidade” e influência na reconfiguração étnica, nos valores e tradição. Farias Junior menciona:

A exogamia torna-se um fator de consolidação da própria identidade coletiva. As lideranças contraem matrimonio com cônjuges de outras etnias, deixando à mostra a possibilidade de se pensar em novos atributos de chefia, bem como uma reconceituação da composição étnica – do que se define como unidade de mobilização. A construção social de uma territorialidade especifica a persistência de estabelecer fronteiras culturais e organizam a aparente dispersão étnica, evidenciando que ela é mais do que uma rede de vizinhança (Farias Junior, 2009: 8).

Logo, a exogamia como fator de consolidação entre os diferentes não significa empecilho na formação étnica e social da “comunidade”, representa o fortalecimento político de lutas em prol do reconhecimento da terra e de suas identidades nas diferentes instâncias, pública e privada. Em 2012 Sérgio Sampaio, presidente da Associação Etno-Ambiental falou a um grupo de pessoas sobre exogamia:

59 “Nós casamos com parentes - homem e mulher - de outras etnias porque queremos fortalecer nossa luta, conhecer outras culturas e também para permitir que os outros conhecerem a nossa cultura, e também porque são poucas as mulheres do nosso povo, então a gente casa com os parentes de outras etnias e até mesmo com os não indígenas né..., os que moram aqui próximo e até os de outros estados que já temos aqui”.

Esta visão tem ampliado o número de pessoas consideradas membro da ”comunidade”. Embora existam problemas de entendimento, não há cisão, cada família procura viver e conviver harmoniosamente desfrutando dos bens comuns que a natureza lhes proporciona, disse-nos Fausto Morya em 2012, enquanto falava da cultura da aldeia. Anualmente o líder procura reunir as famílias e realizar comemorações para festejar a safra da colheita ou fartura de mantimento, denominada Dabucuri e mutirões de limpeza conhecidos por Puxirum os quais descreverei posteriormente. Essas atividades são essenciais para estreitar laços. Alega o líder que frequentemente surgem animosidades entre famílias e esses momentos são cruciais para resolver querela e evitar que criem conceitos de uma cultura superior a outro. Segundo Goldman (2006) a alteridade do outro como elemento fundamental na formação do sujeito social e ético, traduz a percepção do outro como constituinte do eu, são questões trabalhadas nesses encontros. Houve um momento em que uns diziam que suas culturas eram mais vibrantes, seus rapazes eram os melhores guerreiro, o artesanato melhor era o seu por ter a cor mais bonitas e vender mais. Declaravam ser bons pescadores e caçadores e que seriam bons líderes (Farias Junior, 2009). Dizia um deles: “... ele come nossa comida, ele mora com nós aqui...” (Ibidem: 35). Fausto Morya, considera os conflitos, aprendizado, visto que produziam afinidade e respeito entre eles, a partir da aceitação do outro. Neste processo de reconfiguração étnica as ações político-organizativas proporcionam situações que agrupam as pessoas e o espaço estabelece fortes laços de solidariedade e afeto entre os diferentes.

Contudo, por ser uma aldeia regida por clãs, os laços de afetividade concernentes as relações sexuais entre um homem e uma mulher do mesmo clã são consideradas incestuosas, constituindo em ato de indignação pelos membros da “comunidade”. Casar com um membro da linhagem do clã seria, para eles, comparado ao casamento com a própria irmã. Há que considerar que as famílias indígenas da referida aldeia, não permitem casamento com a própria irmã, mãe ou filha. Nisso todas concordam, divergem, quanto aos demais parentescos. Para o líder, o casamento é uma forma de unir grupos sociais. Unem-se clãs, unem-se linhagens, unem- se aldeias. Pelo casamento, dois grupos se solidarizam e se aliam. (Quadro 4)

60 Sobre a união entre povos autodeclarados indígenas, o IBGE (2010) faz referência a escassez de trabalhos antropológicos sobre organização social que contemplem aspectos relativos a casamentos, do ponto de vista da “nupcialidade [...] e como se dão as uniões endogâmicas e exogâmicas considerando os grupos de raça/cor” (Longo, 2016: 377). Embora se saiba que “a nupcialidade é uma das componentes sociodemográficas de maior importância na constituição das sociedades modernas, [...] com os padrões de organização de famílias e, consequentemente, com a reprodução social (idem). Identificamos como prática exogâmica na Comunidade Beija-flor I, em um contingente de aproximadamente 130 pessoas, um número de casais equivalente a 7,5%, da população. Para a Tuxaua Fausto Morya, essa é uma das possibilidades de povoar o lugar. Isso porque, uma das metas da Associação Etno-Ambiental é dar resposta às políticas rio-pretenses, que as famílias indígenas vieram para ficar. Lembro que certa manhã, em 2010, fomos conhecer a construção das novas casas, durante a caminhada o líder comentou: “aqui na aldeia, as pessoas casam com quem quiser pode ser com outra etnia ou até de outro estado, não tem problema”. Teoricamente a exogamia entre os povos indígenas é vista como um corolário para demonstrar seu pertencimento ao grupo.