• Nenhum resultado encontrado

1. Da doutrinação ao processo de criação

1.5 Discipulado

1.5.2 Exorcize o seu nome

Refletindo sobre os caminhos que minha congregação tomou ao longo dos anos em que fiz parte dela, me recordo dos procedimentos de mudança de endereço e de desligamento oficial da IECLB. Creio que foi em 2006 ou 2007. Ao que tudo indicava, as lideranças luteranas começavam a tomar posturas como ordenação de pastores homossexuais, além de terem restrições quanto a manifestações mais “barulhentas” de espiritualidade, entre outras coisas. Isso não agradou a alta cúpula de minha congregação, que junto à de outras igrejas também simpatizantes, acabaram por instaurar um movimento de cisma dentro da IECLB (Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil). Era hora de fundar uma aliança de igrejas que seguia a Bíblia de forma mais rigorosa, e que deixava o Espírito de Deus se mover de forma mais livre. Eu, já acostumada àquelas pessoas, familiarizada com os dogmas (que já não eram tão derivados do luteranismo germânico, mas do protestantismo pentecostal com influências norte- americanas), e cada vez mais moldada ao sistema que vigorava entre eles, acabei seguindo para esta nova denominação. Deixei de ser luterana e virei evangélica, de fato.

Através desta teologia diferenciada, surgiram também novas estratégias, adotadas pelos líderes encarregados de tomar conta do rebanho jovem. As pequenas cartilhas foram

deixadas de lado e uma tática mais efetiva e pessoal tomou o sistema: o discipulado. Tratava-se de pequenos grupos, separados por sexo, com não mais que três adolescentes que se reuniriam semanalmente na casa do (a) líder designado. O caráter doméstico destes encontros estava justamente em proporcionar conversas íntimas demais para o grande grupo de jovens no ambiente da igreja, ou seja, éramos encorajados a trazer semanalmente ao nosso discipulador, não apenas as nossas preocupações mais “superficiais”, mas também a parcela mais secreta de nossos anseios, angústias, sentimentos e conflitos de amadurecimento.

Eu, na época com 16 anos, e mais duas colegas (uma delas, assim como eu, “desviada” e minha amiga até hoje) fomos designadas a uma jovem mulher, nove anos mais velha que nós e esposa de um dos pastores principais encarregados de coordenar o ministério de jovens. Eu e minha amiga (já que a terceira discípula quase nunca estava presente) visitávamos todas as sextas a casa de nossa líder, que, contando apenas com a sabedoria que havia coletado junto a seus próprios discipuladores e demais líderes dentro da igreja, sem possuir nenhuma noção de teologia, psicologia ou aconselhamento emocional, estava encarregada da sagrada tarefa de nos guiar pelo caminho estreito, orientando em todas as instâncias de nossas atribuladas vidas de adolescentes. Absolutamente

todas. Desde nossas dúvidas bíblicas, até nossas angústias com relação aos familiares não-convertidos à nossa crença (ou “Do Mundo”, como ela costumava chamar), passando por nossas “amizades perigosas” (isto é, com colegas não-convertidos), e chegando até os inevitáveis conflitos envolvendo sentimentos e sexualidade. Era tarefa desta jovem esposa de 25 anos, zelar pela pureza (especialmente a sexual) de adolescentes que ela conhecia a pouco mais de um ano. E ela levava tal tarefa, dada por Deus, muito a sério. E nós também levávamos a nossa.

Hoje em dia quando conversamos a esse respeito, eu e minha amiga quase sempre chegamos à pergunta “Como deixamos tais pessoas influenciarem de forma tão forte nossas vidas particulares?”. A conclusão que é que além da típica volubilidade presente na maioria dos adolescentes, também acreditávamos piamente na “autoridade espiritual” destes líderes, especialmente de nossa discipuladora: ela era “benção de Deus em nossas vidas”, um “instrumento que nos refinaria e nos aprimoraria para levar Jesus até outros jovens que também passavam por conflitos semelhantes”. Então, nada mais natural que a mesma tivesse acesso aos nossos segredos mais íntimos, e que se aceitasse sua interferência em cada aspecto de nossas vidas privadas. É a partir das “palavras sábias” de minha jovem conselheira que estabeleço este “livreto de artista” intitulado Exorcize o seu nome. A frase

surge de um dos numerosos conselhos voltados à minha pessoa, pois, meu nome, segundo minha líder, por pertencer a uma deusa pagã, estava embutido de uma “carga espiritual que poderia me afastar de Deus”. Eu deveria então orar, clamando a Deus que meu nome fosse livre de qualquer influência demoníaca, caso contrário, eu acabaria “voltando para o Mundo”. Fiz conforme o recomendado e também passei a assinar meus desenhos e pinturas com a letra inicial de meu nome, fazendo uma curva inusitada para remeter ao formato de um peixe, símbolo do cristianismo

As “palavras de sabedoria” de minha líder encontram espaço bordadas em linha preta sobre um tecido transparente, o mesmo usado em Tiago 4:4. Cada letra ocupando uma diminuta página de 6x6 centímetros. A primeira das delicadas folhas conta com um “D” em uma caligrafia arredondada, quase infantil. Já a última página possui outro “D”, porém em um formato mais “sofisticado”, inclinado para a direita. Uma das curvas da letra parece formar o contorno básico de um peixe. Abrigando as páginas, está uma capa feita de algodão branco, com acabamento em linha cor de rosa e apliques de minúsculas miçangas peroladas, tendo no centro uma flor feita de organza cristal colorida de rosa.

Figura 04 – Exorcize o seu nome, 2018. Linha, miçangas e tecido. 7x7x1cm.

Fonte: acervo pessoal.

Figuras 05,06 – Exorcize o seu nome (primeira e última páginas) 2018. Linha, miçangas e tecido. 7x7x1cm. Fonte: acervo pessoal.

Penso que a pessoalidade empregada na realização desta série, mais uma vez ecoa a poética confessional de Leonilson. Resende comenta:

Os trabalhos funcionavam, nas suas palavras, como cadernos de anotações ou, como já dito, diários. Diários de uma intimidade revelada ao não fazer distinção do que seria público ou privado na sua obra. Expunha tudo nos seus trabalhos. (RESENDE, 2012, p.22)

Uma destas peças – e também um quase cartão de visitas no que tange à produção do artista – é Voilá mon coeur (Aqui está meu coração, 1989), que continua suscitando discussões até os dias atuais a respeito da dualidade entre expressão artística e exposição pessoal. Também surge como importante referencial a obra de Louise Bourgeois, especialmente em relação ao tom de enfrentamento com que a artista tratou da condição feminina em face aos valores patriarcais. Uma obra que particularmente escolho como aporte para minha poética envolvendo o formato de livros é Ode à l'Oubli, feito em tecido e contendo em suas páginas uma série de colagens, gravuras em litografia e aplicações em materiais diversos derivados de itens domésticos e pessoais.

Figura 07 – Voilá mon coeur, Leonilson, 1990, bordado, cristais e feltro sobre lona. 22x30 cm. Fonte: Acervo pessoal.

Figura 08 – Ode à l'Oubli, Louise Bourgeois, 2002, tecido, 29 × 32.5 × 5 cm. Fonte: www.moma.org

O tamanho diminuto vem da idéia de guardar os conselhos que recebia, tanto das cartilhas de Devocional quanto da boca de minha discipuladora e demais líderes, com especial ênfase nas mulheres, em espécies de relicários, que através de uma estética delicada e “feminina”, possam passar adiante o absurdo de boa parte deles. São orientações que vão além do simples exercício da fé: eles surgem como forma de manutenção da feminilidade. Sinto que existe uma potência poética muito grande a ser explorada nas orientações religiosas que eram especificamente voltadas ao sexo feminino. Uma cartilha comportamental muito mais extensa (e mais absurda) do que aquela direcionada aos nossos colegas homens, onde maternidade, virgindade, códigos de vestimenta, modos de se portar no público e no privado acabam por ganhar uma dimensão espiritual, pois, ao contrário dos homens, aconselhados de forma genérica a viver de forma honesta e trabalhadora, nós, como mulheres éramos doutrinadas a respeito de uma série de mandamentos, quase sempre nos responsabilizando a zelar, não apenas por nossos filhos, lar e casamento, mas também pela pureza do olhar de terceiros, sempre mantendo a modéstia e os bons costumes. A salvação da alma dos homens ao redor acabava por depender de nós de formas no mínimo inusitadas...

Como mulher em ambiente religioso cristão, esta “herança de Eva”, me acompanhava, e inevitavelmente acabou marcando minha feminilidade por muitos anos. Escolho então abordar poeticamente estes “conselhos” como forma de tratar deste passado, que tenho noção, não deixará de habitar em mim, porém me possibilitará lançar novos olhares.

Documentos relacionados