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Expansão das relações sociais coletivistas e igualitárias

Já afirmamos que os exploradores existem mediante a predominância de uma dada forma de relação social subjacente ao processo de trabalho. Mas os capitalistas não limitam o seu controle ao interior dos processos de trabalho; eles pretendem modelar a sociedade como um todo e esforçam-se por expandir esta forma de inter-relacionamento à totalidade social, seja porque outras esferas passam a ser objeto da economia e, portanto, se sujeitam à organização empresarial, ou porque, os exploradores pretendam impossibilitar formas de vivência anticapitalista, no intuito de educar a classe trabalhadora num quadro social único. Lembremos que o capitalismo é um sistema totalitário.

Com esse duplo objetivo, mas principalmente, no interesse de impossibilitar aos trabalhadores o desenvolvimento de formas coletivas e ativas de luta, os exploradores se esforçam para que as relações sociais capitalistas, o inter-relacionamento hierarquizado, a fragmentação da força de trabalho, constitua a forma geral, ampla e única de organização de toda a sociedade. A fragmentação dos trabalhadores é reproduzida na fragmentação dos cidadãos e a hierarquização passa a presidir a toda forma de inter-relacionamento social.

A questão central na luta contra o capitalismo é a estruturação interna da classe trabalhadora. Mais penoso que a incapacidade de efetivar lutas autônomas contra o capitalismo é a incapacidade de iniciar um inter-relacionamento genérico próprio que constitua a negação da fragmentação e hierarquização a que os capitalistas pretendem condenar os trabalhadores. Assim, “ de um modo geral, o capitalismo lança mão de todas as tradições culturais e preconceitos, desde o racismo até ao bairrismo, capazes de acentuar a fragmentação da classe trabalhadora e o individualismo dos seus membros”. (Bernardo, 1991, p.317).

desenvolvimento de relações sociais novas, procuram também evitar ou controlar o contato externo à empresa, mantendo a fragmentação e a dispersão dos trabalhadores.

Atentemos para as características desta fragmentação: habitação dos trabalhadores de cada unidade produtiva dispersando-se por várias localidades; ausência de centros de reunião para os trabalhadores fora dos locais de trabalho; transporte individual entre a empresa e a residência; destruição de bairros populares tradicionais; criação de bairros residenciais sem praças, jardins ou outros pontos de contato; ereção de cidades dormitório; imposição de um centro, ponto único de contato, do qual os capitalistas detêm o controle e operam a vigilância; imposição de fontes únicas de conhecimento e informação mediante a difusão padronizada de rádio, televisor, ante os quais os espectadores mantêm uma relação passiva e mantêm-se fragmentados durante o processo. Em suma, a estratégia capitalista é manter os trabalhadores fragmentados, isolados para somente mediante controle e vigilância se inter-relacionarem, desenvolvendo, assim, o inter- relacionamento hierarquizado que é condição para a existência do sistema.

É por isso que, para espanto da esquerda burocrática, a um nível capilar, enquanto não assume posturas combativas no ambiente explicitamente empresarial, os trabalhadores passam já a desarticular estas formas de inter-relacionamento hierarquizado e a desenvolver formas igualitárias de inter-relacionamento social em várias esferas externas aos processos de trabalho. Com essa ação capilar e silenciosa, os trabalhadores passam a desarticular a disciplina social genérica, rompendo o isolamento e a hierarquização, tecendo redes de solidariedade em instituições religiosas, esportivas, culturais, de consumo, de habitação etc. A existência destas redes de solidariedade é de fundamental importância para a expansão das lutas coletivas e ativas, para a coesão interna da classe trabalhadora e para a expansão de espaços de vivência extracapitalista.

Os pontos de contato que a classe trabalhadora vai criando autonomamente servem para a ereção de uma cultura própria, discussão de temas e expansão das lutas sociais, mediante a solidariedade que se gesta no inter-relacionamento. Quando trabalhadores de um bairro se utilizam de uma igreja, associação cultural, de moradores, esportiva etc, para apresentar dadas reivindicações à prefeitura, por exemplo, surgem como um corpo coletivo e suplantam a prévia relação com os vereadores. Dessa forma, erigem uma estrutura política própria, pela qual negam a forma de inter-relacionamento imposto, secundarizam os intermediários políticos, os representantes profissionais, e combatem a dissolução do coletivo de trabalhadores na fragmentária individualização dos cidadãos. Aqui os trabalhadores pretendem se apresentar enquanto administradores da sociedade em contraposição ao poder exercido pelos políticos profissionais.

Foi o que ocorreu no Brasil, da década de 1970, em Portugal durante o salazarismo, na Espanha do mesmo período. Bernardo - que acompanhou a experiência francesa, portuguesa e brasileira – afirma que naquela conjuntura de acentuada repressão sobre a força de trabalho no ambiente empresarial, a classe trabalhadora constituiu mecanismo defensivos, organizando-se nas igrejas, nos bairros, nos bares, associações culturais e que foram esses pontos de contato, essas redes de solidariedade que permitiram a reconstrução da combatividade operária que deu mostras ao mundo.

Enquanto pontos de contato, discussão e organização, externos ao particularismo do ambiente empresarial - onde a força de trabalho está segmentada, disciplinada, vigiada e condicionada - e como condição para um maior coletivismo da ação da classe, os bares, associações culturais, igrejas, bairros, associações de moradores etc, podem prover aquele papel organizativo que classicamente se atribuiu ao partido e ao sindicato. Principalmente, como tem

hierárquica- das demais instituições de poder capitalista, sendo, portanto, um organismo pertencente à mecânica disciplinar do capital.

Por este e outros aspectos devemos perceber que, de forma externa aos processos de trabalho, a classe trabalhadora desenvolve uma luta silenciosa e não menos dura na qual trava uma verdadeira epopéia para construir redes de contato, formas de solidariedade básica entre a classe, e diminuir o potencial de disciplinamento e condicionamento que o sistema impõe sobre os meio social. Ao buscar romper com estas formas de fragmentação, a luta de classes inclui distintas temáticas que envolvem a sexualidade, o preconceito, o sexismo, o racismo, a clivagem entre gerações etc. Toda manifestação social que acentue a fragmentação dos trabalhadores e/ou a sua hierarquização interna, como o nacionalismo, o machismo, a homofobia, o racismo, ao impossibilitar o desenvolvimento amplo de um novo quadro de inter-relacionamento social genérico constitui um reforço da disciplina social capitalista e é, afinal, um quadro de derrota para os trabalhadores, pois impossibilita a coletivização das lutas e o seu aprofundamento mediante a extensão de redes de solidariedade.

Posto isto, embora o ponto fulcral do capitalismo seja a organização dos processos de trabalho e que, portanto, as lutas para a eliminação do poder capitalista devem tomar como objetivo a alteração das relações internas ao processo de trabalho, como a classe trabalhadora é fragmentada pela classe capitalista em uma miríade de empresas e categorias salariais, ainda em uma completa dispersão por bairros distantes, para que a contraposição ao poder se desenvolva é necessário que os trabalhadores erijam um quadro social básico de inter-relacionamento, sem o qual fica impossibilitada a coletivização dos processos de luta e contestação social.

Daí que tantos temas tidos como externos à luta de classes, são, ao contrário, pontos importantes para a combatividade operária. Hoje, a coletivização das lutas tem por condição a solidariedade entre trabalhadores de sexos distintos, sexualidades distintas, etnias distintas,

formações culturais, cor de pele, idades etc distintos. Sem que os trabalhadores consigam transpor a barreira do multiculturalismo, fazendo surgir uma cultura da classe trabalhadora que se afirme precisamente na multiplicidade harmônica de comportamentos não será possível renovar o combate ao poder capitalista. (Bernardo, 1996, p. 136).

Os conflitos sociais coletivistas e igualitários engendram relações sociais de tipo novo, passíveis de engendrarem uma remodelação de toda a sociedade. Para isso, essas relações sociais de luta devem se transformar em relações econômicas, dirigindo-se para o interior do processo produtivo e forçando a remodelação dos processos de trabalho. Entretanto, como as lutas são fragmentadas, apenas a ereção de um inter-relacionamento social básico dos trabalhadores fornece a solidariedade necessária à expansão das relações coletivistas e igualitárias por uma milharidade de processos produtivos e pelo quadro urbano em geral, forçando, por sua vez, a remodelação das instituições familiares, escolares, religiosas etc.

Para a ereção do quadro social básico de solidariedade e inter-relacionamento autônomo dos trabalhadores qualquer instituição pode ser útil, desde que ela presida ao tipo de inter- relacionamento que estamos a definir. Sejam partidos, igrejas, bares, associações culturais, de moradores etc, o nome pouco importa, o que é imprescindível é que a classe trabalhadora passe a resolver os seus problemas, saltar suas cisões, sua existência fragmentária e não dar novo curso a uma hierarquização social, produzindo, por seu turno, novos exploradores.

O conteúdo crítico das lutas esta na sua organização prática, nas suas formas administrativas. A organização coletivista e igualitária dos trabalhadores para luta no âmbito das empresas erige o quadro pratico que possibilita a eles a reorganização dos processos de trabalho e a extinção dos patrões e gestores. A sua organização coletivista e igualitária no âmbito social mais amplo erige o quadro prático que possibilita aos trabalhadores se contraporem aos políticos

sociedade. A criação de redes de contato e solidariedade é a condição para que se una a luta contra os gestores empresariais com a luta contra os gestores estatais e se expanda processos de luta que, sem isso, ficariam isolados ante uma classe capitalista coesa.