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CAPÍTULO II: “ENTRE BÁRBAROS E INIMIGOS”: DESCOBRINDO O SERTÃO DO ASSU E

2.1 Expansão territorial: homens e gados nos sertões

As entradas dos vaqueiros e suas boiadas no interior do continente ocasionaram o surgimento de novos povoados48 e toda uma bagagem de conhecimento acerca do espaço que até então era desconhecido. Na dinâmica do Império português na América, a segunda metade do século XVII foi marcada pelo desencadear de um novo anseio por parte da Coroa e dos interesses pessoais de sujeitos interessados em, por exemplo, expandir suas posses: adentrar os sertões e promover a posse efetiva do território. O avanço das atividades relacionadas com a criação de gado, que interessa, inclusive, a senhores de engenho do litoral, foi responsável pela transformação do sertão em território, este último definido como um espaço cabível de controle por parte da Coroa portuguesa, em um processo que se consolidava a partir da aplicação de valores e sentidos ao espaço. Percebe-se a transformação do sertão do Assu na capitania do Rio Grande em um território de conquista da América portuguesa na medida em que os agentes envolvidos nesta empreitada, enquanto súditos do monarca português, passaram a relatar o espaço experimentado e a colocá-lo sob a autoridade de Sua Majestade.

48 No Rio Grande do Norte, por exemplo, as atividades ligadas à criação de gado ocasionaram o surgimento de

54 Território aqui é entendido, vale relembrar, como “um produto socialmente produzido, resultado do histórico da relação de um grupo humano com o espaço que o abriga” (MORAES, 2008, p. 23), definição do geógrafo Antônio Carlos Robert de Moraes. Além disso, segundo o também geógrafo Marcelo José Lopes de Souza, o território é “fundamentalmente um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder”, sendo ele “essencialmente um instrumento do exercício do poder” (SOUZA, 2000, p. 77-116), aplicável ao Assu devido às relações e exercícios de poder, além dos conflitos ali desenvolvidos durante o processo de conquista e consolidação da posse portuguesa.

Surge, dessa noção de território, a principal mudança na composição espacial do Assu: o que antes era caracterizado como uma territorialidade de práticas e costumes indígenas, sofreu, a partir da década de 1660, um processo de territorialização49 por parte do agente invasor, com o advento das primeiras concessões de terras – ou mesmo pelos simples ocupantes/posseiros – e dos conflitos, transformando-se em um território a partir da apropriação do espaço e da aplicação de uma funcionalidade para ele, dentro dos interesses da Coroa. Posteriormente, os demais grupos sociais que ali se instalaram – conquistadores, militares dos terços, religiosos seculares e regulares e indígenas aldeados – também constituíram novas territorialidades que suplantaram as indígenas, como a de ação dos oficiais do Terço dos Paulistas entre os rios Açu e Jaguaribe.

A expansão territorial da empresa colonial nas Capitanias do Norte da América portuguesa passou a se configurar como política de Estado, promovendo o rompimento dos limites do espaço econômico restrito à cana-de-açúcar, o litoral, e seguindo nos cursos das boiadas e dos rios rumo aos sertões. Sobre o papel da pecuária na expansão territorial, para os sertões, Capistrano de Abreu explica que

O gado vacum dispensava a proximidade da praia, pois como as vítimas dos bandeirantes a si próprio transportava das maiores distâncias, e ainda com mais comodidade; dava-se bem nas regiões impróprias ao cultivo da cana, quer pela ingratidão do solo, quer pela pobreza das matas, sem as quais as fornalhas não podiam laborar; pedia pessoal diminuto [...] (ABREU, 2000, p. 151).

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A título de lembrança, como exposto na introdução, de acordo com o geógrafo Rogério Haesbaert, a

territorialização do espaço “Significa criar mediações espaciais que nos proporcionem efetivo ‘poder’ sobre

nossa reprodução enquanto grupos sociais (para alguns também enquanto indivíduos), poder este que é sempre

multiescalar e multidimensional, material e imaterial, de ‘dominação’ e ‘apropriação’ ao mesmo tempo”

55 O autor atrela, ainda, a estas características da criação do gado nos sertões, o fornecimento de alimentação constante aos conquistadores, em quantidade e qualidade superior aos mariscos e aos peixes, além de informar que o pagamento da atividade era feito com o sal, fornecido pelos numerosos “barreiros dos sertões”.

O curso tomado pela pecuária no interior da América portuguesa acompanhou os leitos dos principais rios, que ofereciam ao desbravador as condições necessárias para a sobrevivência no árduo sertão. Dessa forma, as melhores terras para o cultivo de lavouras e instalação de currais foram sendo mapeadas pelos desbravadores. Capistrano de Abreu define as entradas das boiadas a partir das ribeiras dos rios, distinguindo entre “sertões de dentro” e “sertões de fora”. O gado introduzido pela Bahia avançava pelo “sertão de dentro” ao longo do rio São Francisco, ao oeste; enquanto que, a partir de Pernambuco, o gado que avançava os rios do norte, mas mantendo-se próximo do litoral, consolidava a pecuária no que ele considera como “sertão de fora” (ABREU, 2000, p. 156).

Em Cultura e Opulência do Brasil, escrito originalmente em 1711, André João Antonil destaca a abundância do gado vacum nas ribeiras do sertão de fora, incluindo o rio Açu, além da importância dos currais instalados nos rios das Capitanias do Norte para a subsistência das vilas de Pernambuco. Assim, o sertão de fora compreendia a costa litorânea

De Olinda para oeste, até o Piauí, freguesia de Nossa Senhora da Vitória, cento e sessenta léguas; e pela parte do norte estende-se de Olinda até o Ceará-mirim, oitenta léguas, e daí até o Açu, trinta e cinco; e até o Ceará Grande, oitenta; e, por todas, vem a estender-se desde Olinda até esta parte quase duzentas léguas. (ANTONIL, 1982, p. 84)

De Olinda até o Siará Grande, a pecuária consolidou-se, durante a virada do século XVII para o XVIII, como atividade rentável e importante para a manutenção da cultura canavieira, tanto pelo fornecimento de itens de subsistência (carne, couro, leite e outros derivados), quanto pelo aumento das fazendas dos sesmeiros e pela arrecadação dos dízimos. Apesar dos conflitos envolvendo a Guerra dos Bárbaros nas Capitanias do Norte, Antonil informou que “os currais desta parte hão de passar de oitocentos, e de todos estes vão boiadas para o Recife e Olinda e suas vilas e para o fornecimento das fábricas dos engenhos, desde o rio de São Francisco até o Rio Grande (...)” (ANTONIL,1982, p. 85), demonstrando a grande quantidade de currais existentes nos sertões, capazes de abastecer os núcleos urbanos.

Caio Prado Júnior enquadrou a pecuária enquanto setor de subsistência vinculado às demais atividades econômicas, estando presente na ocupação de novos territórios de forma “secundária e acessória”, e que “o seu lugar será sempre de segundo plano, subordinando-se

56 às atividades principais da grande lavoura, e sofrendo-lhe de perto todas as contingências” (PRADO JÚNIOR, 1986 [1941], p. 28). Para o autor, a rapidez com que as fazendas de gado tomaram o sertão foi explicada “pelo consumo crescente do litoral onde se desenvolvia ativamente a produção açucareira e o povoamento” (PRADO JÚNIOR, 1986 [1941], p. 29), o que tornava a produção de itens de subsistência uma questão importante na consolidação da pecuária.

Para a região de predomínio do cultivo da cana-de-açúcar, Pedro Puntoni pondera que o avanço da colonização nos sertões não pode ser explicado somente pela instalação de fazendas de criação de gado, pois “a explicação para a expansão deve ser buscada nas dificuldades da situação econômica da Colônia, e não em uma dinâmica quase ‘natural’ de crescimento” (2002, p. 25). Segundo o autor, após a expulsão dos holandeses, configurou-se um quadro de repovoamento do Estado do Brasil, devido às dificuldades que surgiram no setor açucareiro, tais como o crescimento da concorrência interimperial, a ascensão da produção antilhana e, “a partir de 1680, a consequente inflação dos preços dos escravos, dado o aumento da procura em África”. (PUNTONI, 2002, p. 25-26)

Além de desempenhar os papéis de atividade econômica alternativa para os senhores de engenho e de fonte de produtos de abastecimento, a pecuária acarretou ainda a dinamização das atividades políticas e militares na colônia, abrindo um novo espaço para as práticas sociais e aumentando o território a ser defendido. Maria Yeda Linhares, ao discutir a importância da pecuária em relação a outros sistemas agrários instalados na colônia, informou que

Assim, a expansão da fazenda de gado para a fronteira aberta traduz, não apenas uma determinação de natureza econômica e prática - qual seja a de garantir as áreas do litoral baiano e pernambucano para a grande lavoura (...), como também, e sobretudo, política: a de assegurar ocupação do território pela Coroa, naqueles primeiros séculos da colonização, ao mesmo tempo em que se mantém como um elo do padrão de acumulação, então vigente. (LINHARES, 1995, p. 8)

A presença de vassalos do rei de Portugal no interior das capitanias, nos sertões, assegurava ainda a posse daquelas terras por parte da Coroa. A ocupação do território era fundamental, sobretudo devido às investidas de estrangeiros sobre os pontos mais afastados da colônia. A Coroa portuguesa consolidava a posse efetiva da região com base na conquista e o povoamento, exaltando a consequente utilização das terras. Em caso de conflitos, a presença de súditos do monarca português vivendo e produzindo na região garantiria a posse legítima do território ao Império Português. Vale ressaltar que em áreas mais distantes dos centros

57 urbanos, a presença de invasores estrangeiros ainda eram relatadas. A exemplo disso, em 1685, o capitão-mor do Siará Grande, Sebastião de Sá, relatara ao governador de Pernambuco, João da Cunha Soutomaior, a presença de piratas holandeses e castelhanos no rio Açu, pedindo que o governador de Pernambuco enviasse ajuda para a defesa da região do Assu. Sebastião de Sá informara que os invasores “haviam mandado duas lanchas com quarenta homens pelo rio acima e os currais a matar gado, levando dois outros homens dos barcos amarrados por guias dando, a todos muito mal trata espancando-os”50.

Até o final do século XVII, os poucos moradores do Assu vivenciavam uma situação de múltiplos perigos, uma vez que além dos levantes dos índios, ainda era necessária a defesa contra os invasores estrangeiros que adentravam rio acima, causando danos aos currais. Somente com a efetiva presença do colonizador na fronteira em expansão poder-se-ia, de certa forma, garantir a posse portuguesa sobre os sertões do Rio Grande e a segurança para os criadores de gado que transitavam entre as capitanias, e até mesmo entre os Estados do Brasil e do Maranhão e Grão-Pará. Por meio das concessões de sesmarias, a Coroa iniciou o processo de povoamento dos sertões, fazendo surgir os primeiros núcleos urbanos e o incremento de atividades econômicas que gerassem lucros para a fazenda real.