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... "paisagem não é dada, mas feita e refeita; é uma herança que demanda ser recuperada, cultivada, e projetada para novos fins." (CORNER 1999, p. 12, tradução nossa)

Esse capítulo visa dar voz às comunidades locais, fazer uma leitura e uma análise dos usos e experiências da paisagem através das relações de pertencimento ao lugar, da memória, das vivências e das expectativas dos moradores, (pequenos) empresários, comerciantes e usuários locais. Procura também levantar como a população vê a tendência de transformação da paisagem pela intensificação da ocupação e o que isso representa para os diferentes grupos de residentes. A experiência da paisagem pelos residentes foi explorada a partir dos diversos temas abordados nas entrevistas individuais e em grupo: histórico da ocupação através das lembranças e vivências pessoais; a ambiência local; a relação com os cursos d'água e com as áreas verdes no passado e no presente; o papel das Unidades de Conservação da área; os problemas na área e a atuação do poder público; os impactos já causados pelo projeto do novo sistema viário e o que esperam no futuro; a situação das áreas públicas de lazer, recreação e cultura; o papel da educação no panorama local; que ações propõem para contribuir para um novo cenário que colabore com a manutenção dos valores e como vêem o futuro.

O objetivo deste capítulo é subsidiar proposições sustentáveis de ocupação da paisagem que considerem a relação da população com o seu lugar, em consonância com o suporte geo-biofísico. Essa preocupação em harmonizar "os sistemas naturais e humanos na construção da paisagem urbana" (RAYNAUD, 2006, p. 147), teve início na década de 1960. Hoje é prática fundamental para se chegar a resultados que tenham efeitos no longo prazo, ambiental e culturalmente.

4.1. Leitura e Análise da Paisagem segundo a

experiência dos moradores

Como apresentado anteriormente, Ilha e Barra de Guaratiba são os dois núcleos mais urbanizados desse sistema hidrográfico. Ambos guardam características de cidade de interior: Ilha mais agrícola e Barra, lugar de veraneio, beira de praia. A paisagem é exuberante em toda a área, cercada de verde e de azul - florestas, áreas cultivadas, rios e mar. A sensação que ainda se tem é de estar

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numa vila, onde todos se conhecem e ali pertencem. Isso tem mudado muito rapidamente a partir do início dessa década com o anúncio da construção do novo túnel e da duplicação da Avenida das Américas (como todos conhecem a atual av. D. João VI). A especulação imobiliária já está presente no local, onde podem ser vistos inúmeros lançamentos de condomínios e loteamentos.

A ocupação mais intensa da área se deu ao longo século XX, com a chegada dos bondes e abertura de estradas, como conta S. Chiquinho, morador de Barra:

Em 1925, quando Washington Luiz assumiu o governo do Brasil ele mandou abrir a Estrada até Barra de Guaratiba [ ... ] ela está bem modificada porque ela está asfaltada, [ ... ] era de terra de chão. [ ... ) Então nós caminhávamos. (Sr. Chiquinho)

A paisagem, como em geral acontece, sofreu interferências com esse crescimento desordenado. Uma das maiores alterações para quem chega em Barra de Guaratiba, é a privatização da vista do mar e do mangue pela construção de casas nas encostas que se debruçam sobre a entrada da barra. Hoje é "um labirinto"6º, só se vê as "belezas de Guaratiba chegando na praia"61 [Figura 4.1.].

Grande parte dos atuais moradores de Ilha e Barra de Guaratiba são descendentes de lavradores e pescadores. Isso contribui para os elos afetivos entre os moradores e o lugar que vieram para a região há muitos anos, alguns estão nas suas propriedades há várias gerações [Figuras 4.2. a 4.4.]. S. Chiquinho, um dos mais antigos moradores lembra que:

[ ... ] em 1750 a Igreja começou a arrendar terra aos posseiros para que viessem plantar (em Barra). O meu pai era arrendatárío, além de agricultor era pescador. [ ... ] Plantava banana, que tem até hoje, e horta de subsistência. [ ... ) Acho que meu bisavô foi o primeiro da família a vir para cá, ainda no século XVIII. [ ... ] Eu nasci em 1924. (Sr. Chiquinho)

O desenvolvimento da área foi lento devido ao acesso difícil. Até o início do século XX os grandes produtores de laranjas e os "bananeiras eram os mais abastados"62• A maior parte dos residentes vivia de pequenos cultivas, muitos

em terras dos grandes proprietários para os quais trabalhavam. Esse cultivo levou a um desmatamento que ocorre há muito tempo, como enfatiza Evanir:

o pessoal avançava tudo, metia fogo e plantava banana, plantava qualquer coisa [ ... ] Aí tirava aquela cultura que já não ia tão bem, aí botava outra coisa, abandonava [ ... ). O cultivo era muito primitivo.

Figura 4. 2. Vista privatizada na entrada da Barra, que foi transformada em "labirinto"

60 Entrevista com S. Chiquinho. 61 idem

62 Entrevista com Evanir

Figura 4. 1. "Labirinto" na chega­ da a Bara de Guaratiba

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Figura 4. 3. Cimar (produtor e feirante) e seu pai - (produtor de produtos agrícolas e plantas ornamentais)

Os moradores percebem que essa m udança na cobertura vegetal, também ocasionou alterações nas temperaturas, com a criação de ilhas de calor na baixada e nas áreas desmatadas. Nas áreas com vegetação arbórea o ambiente é muito mais ameno, como conta Bruna: "Lá tem muita planta, tem u m pedaço que é só pé de manga, pé de jamelão, muito bom, gosto de ir para lá. É muito mais fresquinho."

O nome Ilha de Guaratiba inicialmente intriga por não se tratar de uma ilha. É devido a u m produtor de laranjas, proprietário de uma vasta área q ue era inglês e se chamava S. William. "As pessoas aqui não sabiam pronunciar e falavam "Seu Ilha, Seu Ilha e aí ficou I lha de Guaratiba"63• S. Chiquinho conta que seu pai conheceu S. I l ha, e que os moradores de Barra freqüentavam a Ilha por ter um comércio melhor.

A baixada onde se encontra Ilha de Guaratiba tem se desenvolvido através de atividades agrícolas que se sucederam como açúcar, laranja, legumes e hortaliças e mais recentemente plantas ornamentais. G uarda vestígios dos engenhos de açúcar. Engenho Novo dá nome a diversos acidentes geográficos. Originalmente a baixada era alagada e sofreu um processo de drenagem, como lembra Evanir:

A área era um brejo fortíssimo. ( ... ) Foi muito em cima de drenagem. Houve aquele movimento, "vamos limpar sua rua ... " Mas não houve grandes aterros, não. E também como a tirada da mata vai enxugando mais, porque aqui foi muito desmatado. [ ... ] Era considerado o sertão carioca. (Evanir)

Ilha de Guaratiba ainda guarda características rurais com grandes propriedades. Uma área de 38.000 m2 é considerada pequena, como a do Horto Rio Verde, cujo sócio Evanir conta que seu "pai era um pequeno produtor [ ... ], mas (sua) avó, por exemplo, tinha uma coisa enorme, quase 1.000.000 de m2.'' Ao longo

do tempo muitas áreas foram desmembradas pelos herdeiros. Hoje estão com dificuldade de dividir as propriedades já parceladas e muitos preferem ficar morando no mesmo terreno, pois como diz Vara "[ ... ] a fam ília inteira mora no mesmo l ugar, aí para vender e dividir não vai dar para todo mundo morar fora, então não vale a pena."

63 Entrevista com Vanessa

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Muitos moradores ainda vivem do cultivo de frutas e legumes que são comercializados diretamente nas feiras livres da cidade e no mercado atacadista. A partir da influência de Burle Marx teve início a produção de plantas ornamentais. Evanir [Figura 4.5.), conta como isso começou:

[ ... ] fui trabalhar tomando conta do orquidário do Seu Roberto (Burle Marx)

ainda com 15 anos [ ... ]. Aí que eu comecei a ter contato com Burle Marx [ ... ]

ele foi observando [ ... ] fui conhecendo, fui tomando conta da quarentena das

plantas que ele trazia [ ... ]. Fiquei com ele muitos anos. [ ... ] E ele se empolgando [ ... ] com o trabalho que ele estava fazendo. [ ... ] eu participei dessa trajetória dele que foi importante para ele e para mim, anonimamente. [ ... ] Eu fiz parte de uma transição cultural, a verdade é essa; porque até 1960 a gente contava nos dedos quantas pessoas cultivavam plantas ornamentais, eram muito poucos.

A influência de Burle Marx nesse setor tem reflexos até hoje, além da presença do Sítio Roberto Burle Marx64 que emprega moradores locais e que se transformou numa referência em paisagismo com reconhecimento internacional, a região se transformou num verdadeiro pólo de produção de plantas ornamentais. "[A produção agrícola] hoje se reciclou. Meu pai montou um Horto e a gente trabalha com plantas ornamentais." É o que afirma Vanessa, do Horto Solo Verde, cujo avô era um grande produtor de laranjas de Ilha.

A identidade cultural de Ilha de Guaratiba é vinculada à agricultura, e ao cultivo e comercialização de plantas ornamentais a partir de meados do século XX. Hábitos e estilo de vida próprios do campo ainda se perpetuam no coração da metrópole, porém a rentabilidade da terra não faz frente às investidas do mercado imobiliário (HOUGH, 1984; TARDIN, 2008). A expectativa com o projeto de construção de um sistema viário que facilitará o acesso à região deu um impulso ainda maior ao avanço da urbanização. Esses fatores têm gerado diversos conflitos que são abordados nesse capítulo.