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Corroborando o pensamento de Montesquieu – “A Europa não passa de uma nação composta de várias” – a ideia de Europa unida somente surge com a revolução Francesa e o Império Napoleônico onde, contudo, se mantém vaga e frágil, camuflando uma expansão nacional mais que federando Estados ou povos.137

É com o fim da Segunda Guerra Mundial que os Estados europeus que participaram nos conflitos bélicos decidem construir uma Europa unida, procurando utilizar uma melhor situação econômica como instrumento de salvaguarda da paz.

137 Ensina Duverger, que o termo Europa somente possuía sentido geográfico para os gregos e romanos da antiguidade, a palavra não era utilizada em sentido político. César não a empregava. Virgílio, Horácio, Salústio, Tácito, Apiano e mesmo mais tarde Santo Agostinho falam dela esporadicamente. O Império Romano não era europeu, não englobava a Escandinávia, a Polônia e a maior parte da Alemanha, mas estendia-se por todo o contorno do Mediterrâneo africano e asiático. DUVERGER, M. Europe des Hommes. Paris: Odile Jacob, 1994.

p. 23.

Para Casela, a passagem do ideal europeu à realidade histórica poderia definir-se por dois discursos: o de Winston Churchill, na Universidade de Zurich em 19 de setembro de 1946, e a Declaração de Schuman, de 9 de maio de 1950, com a correspondente aceitação do governo alemão.138

A realidade histórica inicia em 18 de abril de 1951, quando é constituída a Comunidade do Carvão e do Aço,139 se consolida politicamente em 1986 com a Comunidade Europeia até chegar a uma cidadania europeia com o Tratado de Maastricht em 1992.

Entretanto, a proteção dos Direitos Humanos na Europa é anterior e possui como base a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, firmada em 1950 e vigente desde 1953. A Comissão Europeia de Direitos Humanos está composta por um número de membros igual ao de Estados-partes da Convenção e possui funções de supervisão quase judiciais, examinando queixas apresentadas a propósito do cumprimento das obrigações dos Estados com relação aos direitos protegidos.

Não possui função normativa, incumbe-lhe, em primeiro lugar, a tarefa de filtrar as comunicações recebidas, de acordo com critérios de admissibilidade bastante rígidos, dentre os quais se destaca o esgotamento dos recursos internos. Quando o Comitê de Ministros, na qualidade de órgão político, determina que houve violação à Convenção, é fixado um prazo para que o Estado implicado tome as medidas necessárias para a reparação. Eventual omissão do Estado acusado pode levar o Comitê a tomar o assunto público, possui, ademais, o poder de proceder à expulsão de um Estado-membro que não garanta a todas as pessoas sob sua jurisdição, o gozo dos direitos humanos.

Também o supranacional Tribunal Europeu de Direitos Humanos exerce jurisdição sobre todos os países membros da comunidade. Dentre as características mais importantes da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, pode-se destacar que, tecnicamente trata-se de um Tratado Internacional e, assim sendo, suas disposições possuem força obrigatória e vinculante para os Estados signatários, o que os obriga a alterar sua própria legislação interna para ajustar-se às disposições estabelecidas.

Ainda assim, o indivíduo, ou as organizações não governamentais, podem iniciar um procedimento contra o governo que, a seu juízo, seja responsável por violação a qualquer dos direitos reconhecidos pela Convenção.140

Mas o excepcional avanço se deu com o tratado de Maastricht, que introduziu

138 CHUCHILL, W. S. The Sinews of peace: Poswar Speeches, Londres: Cassel & Co., 1948; FOERSTER, R. H.

Die Idee Europa 13OO-1946: Quellen zur Geschichte der politischen Einigung. Munique: DTV, 1963, p. 253-257. A declaração de Schuman é reproduzida e comentada por Fontaine. P., In: Uma nova ideia de Europa.

Luxemburgo: Serviço de Publicacões Oficiais das Comunidades Europeias. apud CASELA, Paulo Borba Comunidade Europeia e seu Ordenamento Jurídico, São Paulo: LTr., 1994. p. 68-69.

139 Tratado que entra em vigor em 25 de julho de 1952.

140 MARTÍN, Nuria Belloso. El control democrático del poder judicial en España. Curitiba/Universidad de Burgos:

Moinho do Verbo, 1999. p. 33.

novos artigos ao Tratado da Comunidade Europeia, criando a cidadania europeia.

A partir de 1992, os nacionais de qualquer Estado-membro passam a ser cidadãos europeus, pelo que seus direitos passam a valer em toda comunidade europeia, e não somente a liberdade de ir e vir e fixar residência – o que na prática já se reconhecia – mas o próprio direito à participação política. Qualquer cidadão europeu pode exercer seu direito ativo ou passivo em eleições municipais no Estado onde esteja residindo, independente de sua nacionalidade. Com isso, criou-se um laço efetivo e direto entre a integração europeia e a participação cidadã.141

Com a criação de uma cidadania europeia, outorgam-se direitos civis e políticos concretos, exigíveis em toda comunidade. O Estatuto da Cidadania da União Europeia, em seus artigos 8B a 8D, cita expressamente uma série de direitos e deveres que afeta a todos os nacionais dos Estados-membros. Alguns desses direitos, como a livre circulação e residência, o direito ao sufrágio nas eleições ao Parlamento Europeu e o direito de petição ante o Parlamento Europeu, já existiam no Direito Comunitário, outros, contudo, são novos, como é o caso do direito ao sufrágio ativo e passivo nas eleições municipais, o direito à proteção diplomática e consular e o direito de reclamação ante o defensor do povo europeu.

O novo cidadão europeu passa a desfrutar, em toda a comunidade, de direitos civis e socioeconômicos relacionados com sua condição de cidadão da União Europeia. E importante, a condição de cidadão europeu não pretende substituir a nacionalidade de cada Estado e sim complementá-1a, como expressa o art. 17 do Tratado de Amsterdã, de 02 de outubro de 1997, que entrou em vigor em 1º de maio de 1999: “Cria-se uma cidadania da União. Será cidadão toda pessoa que ostente a nacionalidade de um Estado-membro. A cidadania da União será complementar e não substitutiva da cidadania nacional”. Assim, a cidadania europeia não é na realidade uma nova cidadania – o que daria ao cidadão europeu dupla cidadania – mas sim um status privilegiado do qual gozam os nacionais de qualquer Estado membro da União Europeia, quando em território de outro Estado da União; além de uma garantia em dobro de respeito aos direitos humanos, pois esta nova situação se estabelece com o objetivo de “reforçar a proteção dos direitos e interesses dos nacionais” (art. B).

Superpõe-se aos conceitos de nacionalidade dos Estados membros; os incorpora, mas sem homogeneizá-los.

Após um tropeço que foi o fracasso na aprovação de uma Constituição Europeia, um novo tratado seria firmado entre todos os membros da União, em Lisboa em 13 de dezembro de 2007. Este tratado – que reforma o funcionamento da União Europeia – evita a palavra ‘constituição’, mas recupera muito do que estava previsto naquele documento que não logrou aprovação e que se constituiu em ponto de partida para

141 Ver MARTÍN, Nuria Belloso. La doble protección de los Derechos Humanos en Europa: el Consejo de Europa y la Unión Europea. In: COSTA, Marli M. M. da e outras (Coord.). Direito, cidadania e políticas públicas. V. III Porto Alegre: UFRGS, 2008. p. 91-128.

as novas negociações.

O Tratado de Lisboa, já ratificado por todos os membros da União Europeia, constitui mais um significativo avanço. Incorpora à União, mais democracia, mais eficácia, mais participação no âmbito global e mais solidariedade. Além de ratificar todos os direitos e garantias já previstas nos Tratados de Maastricht e Amsterdã, definiu que a Carta de Direitos Fundamentais da Europa possui força jurídica vinculativa a todos os membros, atribuiu um papel mais importante para o Parlamento Europeu, além de criar a possibilidade de proposição de diretivas comuns à União por iniciativa popular. Merece também referência que o Tratado atribui especial destaque à importância de consultas e diálogos constantes com a sociedade civil, associações, igrejas, organizações e demais organizações populares.

A Europa iniciou seu caminho. A manutenção da nacionalidade, quando se trata da cidadania europeia, é uma forma de reconhecer as diferenças, preservá-las, respeitá-las e mantê-las. A cidadania europeia garante ao cidadão a universalidade dos direitos fundamentais, a nacionalidade lhes garante as diferenças. Não há dúvidas da evolução e progresso quanto às conquistas sociais, econômicas e políticas, mas ainda há um longo caminho até a utopia da cidadania plena e universal.

A Europa dos cidadãos ainda necessita vencer algumas dificuldades como sedimentar seu novo conceito e, efetivamente constituir uma cidadania europeia.

Lembra Rosales que discutir-se sobre a dimensão cívica ou cidadania da Europa política não é suficiente para provar que exista um público de cidadãos. Na verdade, "solo existen públicos nacionales, los públicos de cada país miembro de la Unión Europea.

Tampoco comparten una identidad comúm ni, hasta el momento, un proyecto político de sociedad.143 Lembremos, ainda, que na Europa tem sido crescente a xenofobia e os conflitos étnicos ressurgem em lutas por nacionalismo; sérias dificuldades a serem superadas.

Por fim, permitindo-nos sonhar, queremos crer que talvez a Europa, rechaçando a opção radical de Ferrajoli – eliminar por completo o conceito de cidadania –144 esteja dando início à utopia de Kant descrita em seu ensaio A Paz Perpétua de 1795. A instauração de um Federalismo Mundial com um Estado de Direito Social e Democrático. Esta Federação de paz (foedus pacificum) iniciaria na Europa e se espalharia pelo mundo, levando os homens a cumprir seu destino que é a felicidade de todos em um mundo de eterna paz. Admitindo-se esta alternativa, assevera

Peces-142 E, como bem diz Luzárraga, “la eliminación del término ‘constitución’, no significa que ésta no lo sea. Una constitución no lo es porque así se llame sino por lo que regula. Y en este sentido si, el contenido de la antigua Constitución y el tratado de Reforma es muy similar, solo un cambio de nombre no va a alterar substancialmente su naturaleza”. LUZÁRRAGA, Francisco Aldecoa; LLORENTE, Mercedes Guinea. La Europa que viene: El tratado de Lisboa. 2. ed. Madrid-Barcelona-Buenos Aires: Marcial Pons, 2010. p. 32.

143 ROSALES, José María. Ciudadanía en la Unión Europea: Un Proyecto de cosmopolitismo cívico. In:

CARRACEDO, José Rubio; ROSALES, José María; MÉNDEZ, Manuel Toscano. Ciudadanía, Nacionalismo y Derechos Humanos. Madrid: Trotta, 2000, p. 47.

144 FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantías. La ley del más débil. Madrid: Trotta, 2004. p. 119.

Barba, para a consecução do objetivo final, faz-se necessário a manutenção de um Estado nacional democrático-liberal bem como a ideia de cidadania, mas neste novo modelo ampliando-se seu conceito à universalidade. 145