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A expressão de Tempo no Kaingang Sul

TEMPO, ASPECTO E MODO EM CONTEXTOS DISCURSIVOS NO KAINGANG SUL (JÊ)

5) CVC Ex: téj “comprido”; 6) CCVC Ex: krĩg “estrela”.

2.2 A expressão de Tempo no Kaingang Sul

Tempo é uma categoria dêitica13, com um ponto de ancoragem, como cita Bertinetto (1986, p. 23); para quem, diferente do “tempo físico”, por Tempo linguístico:

...referimo-nos ao sistema de relações temporais que podem ser veiculadas pelo signo linguístico. Este tem seu próprio centro no ato de fala, ou seja, na atualidade do processo de enunciação: quando emitimos uma mensagem, estabelecemos também (explicitamente ou implicitamente) um

ponto de ancoragem em relação ao qual podemos calcular um antes ou um depois14.

Comrie (1985, p. 9) define: “Tempo (Tense) é a gramaticalização da expressão de localização no tempo (time)”. Continua

Na maioria das línguas que possuem Tempo, Tempo está indicado no verbo15, seja na morfologia do verbo (como em Inglês: passado loved

versus não-passado loves) ou por palavras gramaticais adjacentes ao verbo, como acontece com os auxiliares ...16

E complementa na p. 12:

Embora a gramática tradicional relacione Tempo como uma categoria do verbo em função da sua fixação morfológica ao verbo, mais recentemente tem-se argumentado que Tempo deve ser considerado como uma categoria de toda a proposição, uma vez que é o valor de verdade da proposição como um todo que deve ser comparado com o estado do mundo em um determinado momento do tempo, e não apenas alguma propriedade do verbo.17

Em termos gerais, a categoria de Tempo (tense), como sugere Givón, envolve a sistemática codificação de relação entre dois pontos ao longo da ordenação linear de tempo (2001, p. 285): o tempo de referência e o tempo do evento. Uma representação de Tempo (no caso, Tempo absoluto) e ancoragem temporal presente em Givón pode ser visualizada no diagrama reproduzido a seguir:

14 No original: “..si intende invece il sistema di relazioni temporali che possono essere veicolate dai signi

linguistici. Queste hanno il proprio fulcro nell’atto di parola, ossia nell’attualità del processo di enunciazione: quando emettiamo un messaggio, noi fissiano anche (esplicitamente o implicitamente) un punto di ancoraggio rispetto al quale possiamo calcolare un prima o un dopo".

15 Mas não somente, pois Comrie (1985, p. 13) mesmo sugere: “Although tense is primarily a category of the

verb or of the sentence, one occasionally finds tense expressed elsewhere or with a different domain”. (“Apesar de tempo ser primordialmente uma categoria do verbo ou da sentença, ocasionalmente achamos tempo expresso em outro local ou com um domínio diferente”).

16 No original: “In most languages that have tense, tense is indicated on the verb, either by the verb

morphology (as with English past loved versus non-past loves), or by grammatical words adjacent to the verb, as with the auxiliaries…”.

17 No original: “While much traditional grammar regards tense as a category of the verb on the basis of its

morphological attachment on the verb, more recently it has been argued that tense should be regarded as a category of the whole proposition, since it is the truth-value of proposition as a whole, rather than just some property of the verb, that must be matched against the state of the world at the appropriate time point”.

Figura (14)

Tempo e ancoragem temporal (Tense and temporal anchoring)

passado presente futuro

--- --- --- --- tempo da fala

(speech-time)

tempo de referência (reference time)

(Reprodução do original: Givón 2001, p. 286)

De certa forma, como bem apontado por esse autor (2001, p. 286), esta ancoragem é muito mais pragmática que semântica-proposicional, por referir (ou referenciar) a proposição a um ponto temporal fora dela mesma. De fato, apesar do tempo do evento ser um intervalo, restringe-se, normalmente, a noção de tempo da fala a um Tempo instantâneo. Isso é de certa maneira, uma pequena distorção da realidade (como sugere Givón), mas para efeito de análise se assume o Momento da Fala (MF) como este ponto instantâneo (ou zero).

Apesar de algumas ressalvas que possam ser feitas, esta conceitualização mais geral para Tempo nos parece ser suficiente para os fins dessa tese.

Muitas teorias sobre Tempo têm recebido diferentes influências do trabalho de Hans Reichenbach (1947) no qual ele analisa, para o Inglês (análise passível de ser estendida a outras línguas), a distinção semântica entre formas temporais verbais em termos de relação a três pontos ou momentos temporais, os quais identifica como:

i) o momento da fala (MF);

ii) o momento do evento (ME): assim chamado o momento (ou instante, intervalo) no qual se desenrola (desenrolou ou desenrolará) o evento em questão localizado a partir do MF; iii) o momento de referência (MR).

Quando se trata de Presente, Passado e Futuro se estabelece uma relação de simultaneidade, anterioridade ou posterioridade entre este momento e algum outro tomado como referência.

Ilari e Basso (2008, p. 245) citam que “para a gramática do tempo em português falado é relevante a distinção de três ‘momentos’ reconhecidos há mais de meio século pelo filósofo e lógico Hans Reichenbach (1947)”. Apesar de ocorrências em uma língua não se traduzirem exatamente igual em outra, ainda acredito que posso extrapolar essa sugestão para o Kaingang ao apontar a perspectiva temporal em determinadas situações nesta língua. Quando estiver me referindo a estes momentos, estarei, então, basicamente me referindo a essa proposta presente em Reichenbach. Pode-se argumentar, em uma primeira aproximação, que a escolha pela utilização da proposta de Reichenbach não contempla a atividade discursiva (como sugere Fiorin (2005, p. 250 - nota 12) ao afirmar que “os estudos de Reichenbach estão ancorados em uma teoria lógica e não em uma teoria da enunciação”). Entretanto, lanço mão de uma argumentação presente em Ilari (2001, p. 15):

... é necessário recorrer à noção de momento de referência para compreender certas determinações temporais que a sentença sofre no co- texto, em particular no co-texto narrativo: é que, à falta de indicações mais específicas, dadas por exemplo pelos adjuntos de tempo, o co-texto anterior fixa geralmente o momento de referência da oração seguinte...

Não significa, entretanto, que essa escolha não tenha implicações (como em todos os processos onde é necessário escolher uma alternativa) ou que esteja isenta de problemas. Mas, se uma opção é considerar a sentença como um texto, como um recorte discursivo, pode-se considerar o texto como uma unidade empírica com começo, meio e fim que será tomada como unidade de análise, como apontado em Guimarães (2002).

Comrie (1985, p. 122 et seq.), apesar de apresentar uma representação temporal de três momentos similar a Reichenbach (1947), introduz algumas modificações na teoria deste último autor. Um importante ponto que julgo que interessa para a proposta desta exposição de Tempo na língua Kaingang é a possibilidade, sustentada por Comrie, de múltiplos pontos de referência. Como se verá, isso será relevante em discussões ao longo deste trabalho em explicações de referências temporais.

Feitas essas considerações iniciais, retorno então, para o Kaingang. Resumidamente o que se observou para expressão de Tempo na língua e que está presente

nos dados é o que se encontra abaixo (de a a g). Na sequência discuto e apresento cada item em sessões separadas:

a) expressão temporal (lexical) a partir da utilização de adjuntos temporais apontando anterioridade, posterioridade ou simultaneidade ao MF;

b) verbos que possuem uma forma própria para expressar Tempo Passado; c) referência temporal passada expressa morfologicamente por {-g} acrescido a alguns verbos e a alguns aspectuais;

d) referência temporal passada com a utilização de ja junto a Verbos e Nomes; e) referência temporal futura expressa morfologicamente por {-j} acrescido a verbos terminados em vogais; ou a marcadores aspectuais, ou ainda acrescido a alguns nomes;

f) referência temporal futura e a utilização de Perfectivos;

g) outras formas verbais que assinalam ações ocorridas ou ‘por acontecer’.

Adicionalmente há ainda um outro item, mas por questões metodológicas, a discussão sobre situações progressivas e contextos com perspectiva de ‘presente’ encontra- se no capítulo 3.

2.2.1 Tempo expresso por adjuntos temporais

É comum a ocorrência de adjuntos adverbiais, no Kaingang, para situar os eventos temporalmente. Representando-os em uma relação cronológica estabelecida com o Momento da Fala (MF) encontram-se:

1. adjuntos adverbiais que localizam eventos temporais em uma relação de