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4. EXPRESSÕES DE GÊNERO NA EDUCAÇÃO INFANTIL: CENAS DO COTIDIANO

4.4 Expressões de gênero nas brincadeiras de casinha

A casinha é um dos espaços mais procurados pelas crianças. Um espaço onde buscam um pouco de privacidade, mas também um espaço muitas vezes vigiado pelos adultos. Lá ocorrem as múltiplas relações: de gênero, sexualidade, poder e dominação. Na casinha, observei algumas vezes as meninas excluindo os meninos, fazendo desse um espaço feminino e reproduzindo ali o que muitas vezes se passa em casa. Não permitindo a entrada dos meninos neste espaço, fica evidente “o poder simbólico das meninas na casa” (MANUELA FERREIRA, p.483).

Na brincadeira de casinha, resolvo filmar para acompanhar todos os detalhes:

Camila é a mamãe, Felipe é o irmão adulto, Rosana e Jaqueline são bebês, o Maurício é um parente da nossa mãe – explicou- me Rosana. A Carol é a nossa prima e o Guilherme é o bicho papão.

Procurei acompanhar a brincadeira desde o início. A brincadeira começou somente com as meninas: Camila,

Rosana, Carol e Jaqueline brincavam juntas na casinha. Deixaram a porta fechada para que ninguém entrasse. Aproximei-me da janela, pedi licença, e perguntei se nenhum menino quis brincar com elas.

– Ah, não, eles são chatos!

Então elas começam a se apresentar para mim: – Eu sou o bebê! Disse Jaqueline.

– Eu sou a mamãe de Caroline!

Perguntei se não tem papai e responderam que não, porque eles são chatos.

Rosana estava com uma linda trança. Fiz um elogio e ela me explicou que fora sua mãe quem a fizera e falou que estava na moda e que a trança é de lado.

Felipe aproximou-se e pediu para brincar junto. Caroline gritou:

– Não deixa os meninos entrar. É só as meninas! Tranca a porta, Rosana.

Nesse momento dei uma circulada entre as outras crianças para ver o que estavam fazendo. Havia sempre um dando oi para minha câmera, outro dando tchau, outro expunha seus brinquedos, faziam gracinhas, pediam para ver.

Ao voltar, encontrei Felipe brincando com as meninas dentro da casinha. Elas logo me explicaram:

– Só o Felipe, porque aquele Guilherme lá, por favor…O Felipe é inteligente! Ele até sabe ler.

Nisso o Guilherme se aproximou de nós e a menina não perdoou:

– O Guilherme, ó, esse aí é o Guilherme, que é chato.

Enquanto isso Felipe se aproximou da filmadora e tentou ler a palavra Sony, não conseguiu, então li para ele.

Maurício também se aproximou. Queria brincar junto. Rosana disse:

– Deixa, deixa!

Maurício entrou. Carolina disse que ele não ia brincar ali e ele respondeu que a Rosana deixou e pronto. Então Rosana falou: – Ó mamãe, eu vou lá comprar chicletes.

– Ai, eu quero comer, reclamou Felipe.

Maurício convidou para fechar a janela e Carolina não aceitou: – É muito calor para isso.

Felipe falou sobre peidão e deu gargalhadas.

A mamãe estava fazendo comidinha, com um regador ela pôs mais água na panela.

Guilherme, de fora, tentava trancar a porta. Carolina grita: – Não pode, Guilherme, não pode trancar, porque senão daqui a pouco a gente fica presa, trancada de verdade.

– Deixa tudo fechado que já é noite! Os outros responderam:

– Já é noite, vamos dormir! E todos deitaram ao chão. Então Guilherme apareceu, abriu a janela repentinamente e gritou: – O bicho papão! Todos se assustaram, a mãe gritou:

– Não, não pode. Já é meia-noite!

O bicho papão continuou gritando e todos correram para segurar a porta e não deixá-lo entrar. Maurício e Felipe continuaram na casa. O bicho papão continuou atacando. Todos saíram correndo atrás do bicho-papão e deram um

corridão, e a cena se repetiu muitas e muitas vezes. Elas

sempre queriam mais, tudo outra vez.

De acordo com Benjamin (2002, p.101),

A criança age segundo esta pequena sentença de Goethe. Para ela, porém, não bastam duas vezes, mas sim sempre de novo, centenas e milhares de vezes. Não se trata apenas de um caminho para assenhorear-se de terríveis experiências primordiais mediante o embotamento, conjuro malicioso ou paródia, mas também de saborear, sempre de novo e da maneira mais intensa, os triunfos e as vitórias. O adulto, ao narrar uma experiência, alivia o seu coração dos horrores, goza duplamente uma felicidade. A criança volta a criar para si todo o fato vivido, começa mais uma vez do início.

Algumas brincadeiras são muito longas, duram todo o período do parque. Esta é uma delas. Começou só com as meninas, menino não podia brincar. Depois acrescentaram dois novos colegas e ampliaram a brincadeira. Por último, Guilherme, que havia sido chamado de chato e impedido de brincar junto, deu um jeito de participar da brincadeira e ser um personagem fundamental, pois de um monótono brinquedo de casinha passaram a uma brincadeira de muita ação e suspense, ocupando quase os mesmos espaços e agregando novos companheiros.

Nesse episódio do bicho-papão aparecem muitos elementos para reflexão. São múltiplas expressões de gênero e poder. No primeiro momento aparece a divisão de meninos e meninas. Elas, detentoras do poder naquele espaço, não permitem que os meninos brinquem junto. Por que elas consideram os meninos chatos? Que mecanismos foram utilizados pela sociedade em geral e em particular pelo CEI para que elas passassem a considerar que “os meninos são chatos”? Ou que mecanismos são utilizados

por esse espaço de educação e cuidado para desfazer essa idéia de que meninos são chatos?

Mas o Felipe pode brincar porque ele é inteligente. Que valores são considerados importantes em nosso meio? Por que as meninas aceitam o “menino inteligente” e não aceitam os outros na brincadeira?

Maurício entra na brincadeira, mas antes pede permissão. Nessa brincadeira, Maurício não define, não manda, pede.

Inúmeras vezes Felipe pedia comida. A mãe sempre colocava mais água na panela, acrescentava. O papel da mãe nessa brincadeira é cozinhar e servir.

Guilherme não desistiu de brincar junto. Como não foi aceito na brincadeira, inventou um outro personagem, ativo, alegre, animado, colocando movimento e suspense na brincadeira. Ao transformar-se em bicho-papão, Guilherme assumiu o papel central na brincadeira.

A noite surgiu como uma indicação de privacidade. Fecharam- se as janelas e portas, deixando de fora inclusive a pesquisadora. Então, saí um pouco para ver outras crianças. Enquanto isso, quatro meninos estavam concentrados jogando cartas. Outros estavam impulsionando os carrinhos para ver qual ia mais longe. O bicho-papão continuava em ação. E as mamães e filhinhas, isoladas, também permaneceram com suas brincadeiras, calmas e tranqüilas, longe da bagunça e da minha filmadora.

Voltei para a casinha do bicho-papão e vi que a brincadeira já se transformara outra vez. Agora, quem comandava a casinha eram os meninos, e quando as meninas se aproximaram eles deram um corridão, gritaram, assustaram-se e saíram correndo atrás. Agora, Felipe estava junto das meninas, correndo dos meninos. Felipe e as meninas resolveram ir brincar na outra casinha, que fica do outro lado do pátio.

(Pré-escolar, 6 anos)

Na brincadeira de casinha, a mamãe trabalha durante todo o tempo. Ela lava os pratos, faz comida, serve, recolhe, volta a fazer comida, põe mais água na panela, volta a lavar e tem sempre alguém chegando e dizendo que está com fome. A mamãe também é quem dá as ordens. Ela decide, manda, deixa ou proíbe. Nessa brincadeira, a figura do pai não aparece.