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Expresso por outras palavras, e por oposi ção à cultura qua antropocultura, o que acabo de

Roteiro de Leitura

99. Expresso por outras palavras, e por oposi ção à cultura qua antropocultura, o que acabo de

dizer significa o seguinte.

100. Por um lado, significa isto:

court (qua cultura que não coincide com o mun-

do interior dos Chineses), a cultura chinesa (por exemplo) permanece estado–estádio ou produ-

zido extrínseco ao agente ou produtor “Chine-

ses” — assim se assemelhando formalmente a predicados (acidentais) extrínsecos como “viver na China” e se diferenciando de predicados (aci- dentais) intrínsecos como “cultivado”, “rápido”, “habilidoso”, “alto”;

(ii) que, em resultado disso, o adjetivo “chi- nês” assume, na designação “cultura chinesa”, a forma de adjetivo relacional (gentílico);

(iii) que, de igual modo em resultado disso, a cultura chinesa permanece, na verdade, cultura objetiva-passiva não só sub ratione dicendi (qua o significatum ou o modus significandi passivus “cultura chinesa”), mas também sub ratione

existendi.

101. Por outro lado, e em decorrência do que se acaba de constatar, significa (o que atrás dis- se, no ¶ 100) isto:

(i) que, com constituir-se sobretudo modus vi-

vendi, a cultura chinesa (de novo, por exemplo)

permanece, em primeira instância, cultura qua

modus realis, e, por conseguinte, jamais se con-

suma (muito ao invés da antropocultura) perfei- ção quantitativa qua modus idealis (qua modus

cogitans e modus moralis);

(ii) que, por isso mesmo, a cultura chinesa se mantém cultura relativa tanto sub specie for-

malitatis como sub specie materialitatis (à se-

melhança dos predicados relativos “grande” ou “gordo” ou “esguio”): cultura que assume esse seu caráter (o caráter de “cultura”) por relação de diferença ou de semelhança formal e mate-

rial para com uma diversidade de outras culturas

tatis como sub specie materialitatis — muito em

oposição, também aqui, à antropocultura, a qual é, por natureza, absoluta sub specie formalitatis (e, logo, qualitativamente idêntica nos Chineses, nos Portugueses, nos Ingleses, etc.);

(iii) que, pelas mesmas razões, a própria cul- tura chinesa se mantém cultura aderente (adhe-

rens) ou cultura dependente-imprópria.

102. Ou seja, que, pelas mesmas razões, a pró- pria cultura chinesa se mantém cultura que, pre- cisamente, assume o caráter de cultura relativa por aderência ao (ou dependência do) respetivo agente-produtor (os Chineses), à semelhança do que acontece com os predicados que (como “molhado” ou “vestido”) resultam da adição ou sobreposição ao sujeito de uma substân- cia que lhe permanece estranha (e.g., água ou vestimenta) — e, por conseguinte, muito por oposição diametral, também, à antropocultura, a qual, sem dúvida alguma, se carateriza sobre- tudo por ser cultura qua predicado (acidental) inerente-próprio (tal como acontece com pre- dicados acidentais como “rápido” ou “forte” ou “habilidoso”).

103. Chegados aqui (a este centésimo-tercei- ro parágrafo), importa-me considerar de igual modo (por relação com o ¶ 90) que poderá bem, agora, estar a surgir à mente do leitor curioso (de novo, no caso de isso ainda não ter ocorrido) as seguintes indagações: “E o adjetivo ‘cultural’”? “Que sentido específico expressará ele quer em si, quer enquanto especificador de um determi- nado nome?”

104. Repare-se em que escrevo “especifi- cador”, e não “descritivo-qualificativo”. É que

“cultural” é adjetivo, e, em resultado disso, o que nos deve preocupar neste momento é em grande parte saber se, na designação “ato cul- tural”, por exemplo, ele (adjetivo “cultural) tem função, precisamente, relacional ou, pelo con- trário, descritivo-qualificativa. Antes, porém, de atalhar caminho em direção à explicitação de tais dois tipos de adjetivo, o tipo “relacional” e o tipo “descritivo-qualificativo”, aos quais já aqui fiz referência (no ¶ 92) — antes, porém, de ata- lhar caminho nessa direção, que é caminho que dificilmente nos poderia conduzir a resultados integralmente satisfatórios (tal é a natureza da linguagem e do pensamento), 10 importa relevar

um outro aspeto.

105. Tem esse aspeto a ver, em primeiro lugar, com a circunstância de esse mesmo adjetivo (o adjetivo “cultural”) ter formação denominal a partir de “cultura” (cultura) — tal como, afinal, o verbo “culturalizar”, que corresponde ao verbo latino culturare, o qual, por sua vez, é sinónimo tanto de colere (“cultivar”, “prestar culto”) como de cultivare (“cultivar”) e também expressa sen- tido equivalente ao do verbo português “agricul- tar” (e.g. olera culturare, “agricultar vegetais”). O mesmo é dizer, e expressa o sentido “sujeitar a cultura”, “fazer algo ou alguém devir cultura ou cultivado” (ad culturam aptare).

106. Em segundo lugar, tem o aspeto a que me referi em abstrato (no final do ¶ 104 e no início do ¶ 105) a ver com as seguintes circunstâncias:

(i) a circunstância de, em resultado do que acabo de expor, “cultura” ter dado origem, ade- nominalmente, não só (a) ao adjetivo “cultural”, mas também (b) às conjugações verbais “cul- turalizar” e “culturalizar-se” (que equivalem em

Inglês às do verbo to culture), tal como, por con- seguinte, de igual modo aos adjetivos “culturali- zável”, “culturalizante” e “culturalizado” — ten- do os nomes “culturalizador” e “culturalização” derivado, por seu turno (e agora adverbialmen- te), do verbo “culturalizar”;

(ii) a circunstância, em vista do que acabo de dar a constatar, e de modo inverso ao que ins- tintivamente acontece com o falante português — a circunstância de que se deveria, ao tratar de “cultura” no sentido de antropocultura e caso isso não levantasse estranheza, preferir o verbo “culturalizar(-se)” ao verbo “cultivar(-se)”, bem como o adjetivo–particípio “culturalizado” ao adjetivo–particípio “culto”;

(iii) a circunstância de se verificar as seguintes correspondências semânticas: (1) “culturalizar” : “cultivar”; (2) “culturalizador” : “cultivador” : ”cultor”; (3) “culturalização” : “cultivação” : ”cul- tivo”; (4) “culturalizável” : “cultivável”; (5) “cul- turalizado” : “cultivado” : ”culto” — sendo que o adjetivo “cultural” não apresenta equivalência com as formas “cultiva-” e que, inversamente, o substantivo “cultivabilidade” não apresenta equivalência com as formas “cultura-”;

(iv) a circunstância, por fim, de o verbo “agri- cultar” apresentar as seguintes equivalências aos verbos “culturalizar” e “cultivar” — os quais também expressam significado igual ao do pró- prio verbo “agricultar” sem que isso, contudo, esgote os significados que são compartilhados por ambos: (1) “agricultar” : “culturalizar” : “cul- tivar”; (2) “agricultor”: “culturalizador” : “cul- tivador” : ”cultor”; (3) “agricultura” : “cultura” : ”culturalização” : “cultivação” : ”cultivo”; (4) “agrícola” : “cultural”; (5) “agricultado” : “cul- turalizado” : “cultivado” : ”culto” — sendo que “culturalizado” equivale, com o sentido reflexi-

vo (“culturalizar-se”) e com relação a antropocul-

tura, ao adjetivo–particípio inglês cultured e ao

adjetivo–particípio alemão gebiltet.

107. No que toca à diferença semântica que subsiste entre os adjetivos relacionais (que in- cluem os adjetivos gentílicos, tais como “chi- nês”) e os adjetivos descritivos–qualificativos, importa aqui apenas relevar o que se segue:

(i) que os primeiros (os adjetivos relacionais), dos quais “marítimo” é exemplo, se deixam dis- tinguir dos segundos (os adjetivos descritivos– qualificativos) por via de estabelecerem relação entre o nome que especificam (e.g., “verniz”, na designação “verniz marítimo”) e o nome de que derivam (e.g., “mar”, no caso do adjetivo rela- cional “marítimo”);

(ii) que, de modo oposto, os segundos (os adjetivos descritivos–qualificativos, dos quais “racional” é exemplo) se deixam distinguir dos primeiros (os adjetivos relacionais) por via de descreverem–qualificarem o nome de que de- vêm predicado: por via, significa isto, de afirma- rem desse mesmo nome — no seio de constru- ção copulativa (e.g. “é/está vermelho”) ou não (e.g., “animal racional”) —, com referência ao respetivo designatum (e.g., o céu específico de que “o céu está vermelho” possa ser designans), uma ou mais das qualidades lógico-ontológicas que aconteçam ser lexicalizadas por eles (adje- tivos descritivos–qualificativos) e determinar o próprio designatum de modo necessário–es- sencial (e.g., “o homem é animal racional”) ou, inversamente, de modo acidental–contingente (e.g., “as capas deste livro são vermelhas”);

(iii) que, não obstante essas diferenças, acon- tece, por vezes, que um mesmo adjetivo tan- to pode desempenhar função relacional como

pode desempenhar função descritivo-qualifica- tiva — sendo que isso mesmo se constata atra- vés de considerar, por exemplo, que o adjetivo “sexual” desempenha função relacional na de- signação “educação sexual” de par a par com desempenhar função descritivo-qualificativa na designação “ato sexual”, bem como que o adje- tivo “popular” desempenha função relacional na designação “revolta popular” de par a par com desempenhar função descritivo-qualificativa na designação “canção popular”;

(iv) que os adjetivos relacionais — os quais, as mais das vezes, são passíveis de ser parafrase- ados na forma do genitivo do nome de que de- rivam (e.g., “sexual” = “do sexo”) ou através da expressão “relacionado com” (e.g., “sexual” = “relacionado com o sexo”) — estabelecem, em geral: (a) relações de origem ou procedência (e.g., “comida chinesa” ou “lã ovina”), (b) rela- ções de posse (e.g., “casa paterna” ou “direitos humanos”), (c) relações de semelhança (“con- sistência esponjosa” ou “brilho cristalino”), (d) relações de finalidade (e.g., “alfaia agrícola”, “plataforma petrolífera”, “verniz marítimo”), (e) relações mais ou menos inespecíficas do tipo

tem a ver com, tem ligação a, diz respeito a (e.g.,

”fenómeno ambiental” ou “evento turístico”).

108. Agora, vimos um pouco atrás (no ¶ 100) que a cultura objetiva ou passiva tout court, a cultura que não coincide autónoma e reflexiva- mente com o mundo interior do respetivo agen- te ou produtor, permanece estado–estádio ou

produzido extrínseco a este último (ao agente ou

produtor) — assim se assemelhando formalmen- te aos predicados acidentais extrínsecos (de que “comer com pauzinhos” é exemplo) e se diferen- ciando (i) quer da cultura qua antropocultura (a

qual sempre é processo ou estado–estádio que permanece intrínseco ao cultivador ou culturali- zador de si mesmo), (ii) quer de predicados (aci- dentais) intrínsecos como “cultivado”, “rápido”, “alto”, “habilidoso”, etc.

109. O que mais importaria, pois, saber com relação ao adjetivo “cultural” seria, na verdade, o seguinte (i) se desempenha função relacional e, por conseguinte, afirma do nome que especi- fica propriedades que permanecem extrínsecas ao respetivo designatum; (ii) se, pelo contrário, desempenha função descritivo-qualificativa e, por conseguinte, afirma do nome que especifi- ca, de modo inverso, propriedades que perma- necem intrínsecas ao respetivo designatum; (iii) se ora desempenha uma dessas funções ora a outra, e, por conseguinte, se é passível de pre- dicar do nome que especifica ora propriedades que permanecem extrínsecas ao respetivo de-

signatum, ora propriedades que, de modo in-

verso, permanecem intrínsecas a este último (o respetivo designatum).

110. Importaria também, porém, saber o se- guinte: em sendo relacional, que tipo de rela- ções será o adjetivo “cultural” passível de es- tabelecer? Relações de origem ou procedência (e.g., “comida chinesa”)? Relações de finalidade (e.g., “plataforma petrolífera”)? Relações mais ou menos inespecíficas do tipo tem a ver com,

tem ligação a, diz respeito a (e.g., ”fenómeno

ambiental”?)

111. Agora, uma coisa é certa: seja lá qual for a função léxico-semântica que o adjetivo “cul- tural” possa desempenhar, o seu valor lexical e semântico não poderá deixar de se encontrar de

todo determinado pelo valor lexical e semântico que concetualmente se puser (setzen, posit) ao nome de que deriva (“cultura”) — se, é claro, o cogitante se encontrar, na verdade, munido de conceito correspondente a tal nome (o nome “cultura”). Sendo que esse mesmo valor, o valor concetualmente intencionado, poderá ser, para além de tudo o mais, tanto valor intempesti- vo — para trazer aqui à colação o pesado valor semântico que Nietzsche há legado ao adjetivo que em Alemão corresponde a “intempestivo” (unzeitgemäß) — como, pelo contrário, valor tempestivo (zeitgemäß). E isto dado que, se o homem devém sempre outro de momento his- tórico-cultural para momento histórico-cultural, essa sua volubilidade se encontra formalmente determinada, em última instância, pela circuns- tância de devir muito, pouco ou nada consciente da sua atemporal (Zeitlos) e universal quidditas (a sua humanidade), e, por conseguinte, de de- vir muito, pouco ou nada antropocultura.

112. Talvez seja, aliás, a consciência do que acabo de afirmar (n0 ¶111), que se encontra na origem de o Shorter Oxford English Dictionary dar ao adjetivo cultural, de modo assaz lacónico, o valor lexical “Relacionado com a cultura” (Re-

lating to culture), bem como de o Wahrig Deu- tsches Wörterbuch não se revelar muito menos

lacónico, ao definir kulturell, que deriva de Kul-

tur, do seguinte modo: “que diz respeito à cultu-

ra, que lhe pertence, que radica nela” (die Kultur

betreffend, zu ihr gehörig, auf ihr beruhend).

113. Todavia, não nos deveremos esquecer de que, como estas Notas irão pôr em evidência,

Kultur e, por conseguinte, kulturell não esgo-

tantivo culture e do adjetivo cultural (no caso do Inglês), quer do substantivo “cultura” e do adjetivo “cultural”. É que, na verdade, os Ale- mães dispõem tanto da díade Kultur–kulturell como da díade Bildung-bildend (antropocultu-

ra-antropocultural(mente)) — sendo-lhes, pois,

possível dizer, por exemplo, com sentidos muito diferentes, “tudo se passa de modo assaz cul- tural” (es geht ganz kultürlich) e “moldar-se de modo cultural” (sich bildend gestalten). Ou seja, “moldar-se antropoculturalmente”, “moldar-se em termos de cultura (qua Bildung)”.

114. No que respeita ao léxico português, te- mos, por exemplo, os casos do dicionário Houaiss e do Dicionário da Língua Portuguesa Contempo-

rânea, da Academia das Ciências de Lisboa.

115. O primeiro deles (o dicionário Houaiss) atribui ao adjetivo “cultural” as seguintes sig- nificações: “(1) referente a ou caraterístico de cultura <antropologia c.> <complexo c.> ; (2) respeitante ao conjunto de conhecimentos, in- formações, saberes adquiridos e que ilustram (indivíduo, grupo social, sociedade), segundo uma perspetiva evolutiva <o alto estádio c. de

uma civilização>; (3) concernente ao conjunto de

conhecimentos e valores da cultura tradicional de determinado(s) grupo(s) <património c.>; (4) que traduz ou revela nível mais aprimorado de cultura, de conhecimento <evita programas c.>; (5) que difunde, divulga cultura <acção c.> <gru-

po c.>; (6) o domínio da cultura; o que diz res-

peito à cultura <a diferença entre o c. e o simples-

mente comercial>”.

116. Em (1), o adjetivo “cultural” desempenha claramente tanto função relacional (“referente

a... ‘cultura’”) como função qualificativa (“ca- raterístico de ‘cultura’”) — sendo que os exem- plos <antropologia c.> e <complexo c.> parecem apontar sobretudo no sentido de, neles, esse mesmo adjetivo (o adjetivo “cultural”) desem- penhar mais a segunda de tais funções (a quali- ficativa) do que a primeira (a relacional). É que, a não ser assim, como evitar perguntar, com re- lação ao exemplo <antropologia c.>: Que poderá

ser o “estudo do homem” (“antropologia”) que, de par a par ou à parte de ser isso mesmo (“estudo do homem”) seja “cultural” em resultado de ser estudo da cultura ou de uma qualquer cultura? Estudar o homem ou certos homens não terá de ser, por força, estudar a cultura ou uma qualquer cultura específica? E, inversamente, estudar a cul- tura ou uma qualquer cultura específica não terá de ser, por força, estudar o homem ou certos ho- mens? resposta: É evidente que sim, que terá de ser. Bem como é evidente que não, que não terá de ser, apenas quando — motivados por interesse hodierno em estabelecer distinção entre “antro- pologia filosófica” e “antropologia cultural” ou “científica” — se não alcança que toda e qualquer cultura exterior (qua modo de vida ou de estar no mundo) se configura, por força, expressão–mani- festação ou testemunho de antropocultura: de cultura interior.

117. Em (2), pelo contrário, o adjetivo “cultu- ral” desempenha, não menos claramente, so- bretudo função relacional. Isto é, mais em con- creto, função relacional de finalidade — dado que agora se fala do fim de ilustrar (“ilustram”) e, por essa via, de produzir ou promover cultura

qua estado–estádio ou grau: <o alto estádio c. de uma civilização>. (“Ilustrar”, no sentido que

cionário, “transmitir ou adquirir conhecimentos, instruir(-se)”).

118. Em (3), o adjetivo “cultural” desempenha, em primeira instância, função relacional (“con- cernente ao...”). Porém, é de pressupor, o que quer que seja que possa revelar-se “concernen- te” “ao conjunto de conhecimentos e valores da cultura tradicional de determinado(s) grupo(s)” poderá bem constituir parte integrante desse mesmo “conjunto” (e.g., as Festas do Espírito Santo). E, por conseguinte, estaremos aqui pe- rante um emprego do adjetivo “cultural” que viabilizará tanto (i) estabelecer relações de ori- gem ou de procedência (e.g., artesanato (x), (y) ou (z)) como (ii) qualificar quer algo que apenas tenha relação a tais “conhecimentos e valores” (e.g., uma determinada experiência de índole cultural), quer algo que seja parte integrante deles mesmos. — Considerados, esses mesmos “conhecimentos e valores”, sobretudo na qua- lidade de estado–estádio de cultura tradicio- nalmente cristalizado e passivamente herdado (heterónoma e irrefletidamente transmitido e interiorizado). Logo, considerados na qualidade de estado–estádio de cultura assaz extrínseco a todo e qualquer estado–estádio de cultura que se configure, autónoma e reflexivamente, an-

tropocultura: concretização efetiva (em maior

ou menor grau) do dever-ser (formal) do ente humano.

119. Em (4), o adjetivo “cultural” desempenha, sem dúvida, função qualificativa (“que... reve- la”). E, como o exemplo apresentado (<evita

programas c.>) revela inequivocamente, é-lhe

dada extensão cuja abrangência lhe faculta qua- lificar não apenas alguém que prove ser “mais

aprimorado” em termos de antropocultura (cul-

tura hominis), mas também programas, even-

tos, espetáculos, performances que aconteça serem identificados como culturais em si mes- mos ou objetivamente. Ora, como estas Notas irão pôr em evidência mais adiante, 11 o fetiche

coletivo (verdadeiramente, o “feitiço” facticius) de tomar todas essas coisas (programas, even- tos, espetáculos, etc.) por possíveis reificações de índole cultural não poderá deixar de despon- tar de mentes o mais estranhas possível a todo e qualquer genuíno conceito de “cultura”.

120. Em (5), temos, de novo, o adjetivo “cul- tural” a desempenhar função qualificativa, de par a par com a afirmar finalidade (“que difunde, divulga”) do que quer que seja (ação, entidade, etc.) que possa ser considerado “cultural”. E, de novo, das duas uma: ou se trata, por exemplo, de <acção c.> ou <grupo c.> que divulga — que publicita — cultura que, considerada em si mes- ma, terá de permanecer extrínseca à cultivação da universalidade “Homem” na particularidade dos seus respetivos destinatários, ou, então, mesmo em se tratando de praticar e difundir música, teatro, qualquer forma de folklore, etc., tratar-se-á, sem dúvida, de evento, ação, per-

formance, etc., que, in se e per se, jamais pode-

rá ser apropriadamente considerado de caráter genuinamente cultural.

121. É que, na verdade, a antropocultura ou

cultura hominis não se deixa divulgar ou difun-

dir: deixa-se, isso, sim, viver — por via de cres- cer organicamente na alma e no corpo. Julgar que assim não é, confundir um ato ou evento pressupostamente de caráter cultural com cul- tura ou cultivação, não pode deixar de equiva-

ler — é isso um facto — a confundir a lâmpada, que é matéria que difunde a imaterialidade a que chamamos “luz”, com a própria luz! Funda-se a lâmpada, ou não se tenha olhos com que ver a luz que aconteça ser difundida por ela, lâmpada, e, sem dúvida, jamais se poderá viver a mais ín- fima centelha de luz. Só uma tal confusão, aliás, poderia alguma vez ter como efeito afirmar-se a qualidade “cultural”, qualificativa ou relacio- nalmente, de realidades que, por natureza, se configuram o mais anticultura que é possível. Refiro-me, por exemplo, a pensar e a enunciar “hipocrisia cultural”.

122. Em (6), por fim, deparamos com o adjeti- vo “cultural” a desempenhar (i) ou função rela- cional (“o que diz respeito à cultura”, e não o que é cultura”) (ii) ou função qualificativa — caso em que a expressão “o que diz respeito à cultura” terá de ser considerada sinónima da expressão “o que participa da cultura”. E isto dado que, por exemplo, tudo o que possa ser “colorido” (em lugar de “cultural”) e, logo, dizer respeito à cor (em lugar de à “cultura”) não poderá deixar de participar desta ou daquela cor. O mesmo é di- zer, não poderá deixar de participar da cor. Seja como for, estaremos aqui, em se tratando, na verdade, de função relacional, face a predicação de relações por demais inespecíficas: relações, como se viu já, do tipo ter a ver com, ter ligação a. Tudo parece apontar, contudo, no sentido con- trário; no sentido de se tratar de função descri- tivo-qualificativa. E isto uma vez que o exemplo fornecido (<a diferença entre o c. e o simplesmen-

te comercial>) parece ter em vista transmitir que

“o que diz respeito à cultura” é também o que faz parte do “domínio da cultura” e o que, em

resultado disso, determina a <a diferença> entre <o cultural> e <o simplesmente comercial>.

123. Por seu turno, o Dicionário da Língua Por-

tuguesa Contemporânea, da Academia das Ciên-

cias de Lisboa, consigna quatro sentidos ao ad- jetivo “cultural”. De entre eles, dois, o primeiro (1) e o quarto (4), coincidem grosso modo com o primeiro (1) e o segundo (2) dos sentidos que acabámos de considerar.

124. Por outro lado, deparamos, entre os exemplos que a segunda (2) entrada daquele segundo dicionário apresenta, com dois (exem- plos) que praticamente coincidem com os que (5), atrás, contém. São eles, esses dois exem- plos, <Actividades culturais> e <Centro cultural>. Contudo, não nos é, agora, dado a ver o adjetivo

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