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3.4 A FACE FORMAL DAS UNIDADES TERMINOLÓGICAS

3.4.1 Procedimentos de formação indireta de termos

3.4.1.1 Extensão semântica

A extensão semântica é um procedimento que supõe a ampliação do significado de um termo para que recubra uma realidade próxima, de modo que sempre existe uma espécie de “parentesco” entre o significado original e o novo. Esse procedimento já estava descrito por Wüster (1998, p. 94), que aponta a praticidade da denominação de “um conceito mediante uma transferência de significado [grifo nosso], antes que mediante a criação de um novo termo composto”, atribuindo-se a um termo “um conceito que se acresce ao que já representa”. A norma ISO/CD 704 – Trabalho terminológico – Princípios e métodos20 identifica esse procedimento como transferência semântica, e na literatura sobre o assunto também se encontra o termo ressemantização para referi-lo.

20 ISO/CD 704 (1998) – Terminological work – Principles and methods.

Cabe observar, porém, que, como nos propusemos a utilizar as categorias propostas por Dubuc (1999), pelos motivos explicitados anteriormente, faremos aqui uma distinção entre a transferência semântica ou ressemantização que pressuponha a “importação” de um termo de uma linguagem de especialidade por outra, a que o autor chama empréstimo interno (que será abordado na Seção 3.4.1.3.1), e os demais processos que o autor inclui sob o escopo da extensão semântica. Para o autor, a extensão semântica pode se estabelecer de uma dessas três formas: pelo deslocamento de uma relação lógica, por analogia ou por assimilação.

3.4.1.1.1 Deslocamento de relação lógica

O deslocamento de uma relação lógica, segundo Dubuc (1999, p. 148), supõe uma transformação do significado pela mudança da perspectiva a partir da qual se focaliza a relação entre o termo e seu conceito. É também um recurso amplamente estudado nas ciências da linguagem no âmbito das figuras de retórica, conhecido como os fenômenos da metonímia e da sinédoque.

A metonímia é definida por Ducrot e Todorov (1973, passim) como “o emprego de uma palavra para designar um objeto ou uma propriedade que se encontra numa relação existencial com a referência habitual dessa mesma palavra” (1973, p. 333), o que ocorre quando “um objeto é designado pelo nome de um objeto que lhe está associado na experiência” (1973, p. 140-141). Já a sinédoque é definida por esses autores como o “emprego de uma palavra num sentido de que o sentido habitual é apenas uma das partes” (1973, p.

334), definição melhor explicitada no Portal de Língua Portuguesa na Internet (2004) ao referir que na sinédoque há a substituição de um termo por outro com “ampliação ou redução do sentido usual da palavra”, o que significa o emprego do todo pela parte, do singular pelo plural, do indivíduo pela espécie (como ocorre no emprego de um nome próprio pelo nome comum), ou vice-versa.

Kayser (1985, p. 120), porém, diz:

Entre sinédoque e metonímia não é costume estabelecer hoje grande diferença.

Em ambos os casos se trata de um desvio, tomando a parte pelo todo (lar, em vez de casa de família), a matéria pelo produto (uva por vinho), um indício somático pelo

indivíduo ou grupo de indivíduos (cabelo branco por velhice), o autor pela obra (ler Homero), a causa ou meio pelo efeito (língua em vez de idioma, letra em vez de caligrafia), etc., etc. Pode dar-se também o caso contrário, e termos, então, de partir da generalidade para o caso especial (mortais em vez de homens). (KAYSER, 1985, p. 120)

A distinção entre metonímia e sinédoque também não é atualmente enfatizada pelos gramáticos da variedade brasileira da língua portuguesa, a exemplo de Bechara (1995, p. 398), que inclui na metonímia, por ele definida como uma “translação de significado pela proximidade de idéias”, todos os casos citados pelos demais autores. Em consonância com a linha de pensamento adotada por essas obras mais recentes, também consideraremos aqui como a base da extensão de significado por deslocamento da relação lógica quaisquer relações metonímicas em seu sentido mais amplo.

Na criação neológica terminológica, Dubuc (1999, p. 148) cita os seis casos mais freqüentes de extensão de significado por deslocamento da relação lógica, que são aqueles em que dá a passagem:

a) do concreto para o abstrato ou do abstrato para o concreto: em francês, tribune (=

“tribuna”) designa, assim como em português, “o lugar físico no qual se expressa idéias”, e, “por deslocamento para o abstrato, aplica-se atualmente a um tipo de programa de rádio ou televisão no qual o público pode expressar seus pontos de vista por telefone” (Dubuc, 1999, p. 148);

b) da matéria para o objeto: a matéria de que um objeto é feito nomeia todo o objeto. É o que sucede quando se usa “um vidro” para referir “um frasco de vidro”, ou, no exemplo de Bechara (1999, p. 398) “um níquel” para referir “uma moeda feita de níquel”, ou “um cobre” para referir “uma moeda feita de cobre”;

c) do signo (sinal) para a coisa significada: a representação simbólica de um objeto ou fenômeno denomina o objeto ou fenômeno. Isso pode ser reconhecido quando se faz referência, por exemplo, ao “trono da Inglaterra”, para designar a pessoa que ocupa esse trono, ou seja, o rei ou a rainha da Inglaterra;

d) da parte para o todo: a denominação de uma parte do objeto nomeia todo o objeto. Dubuc (1999, p. 148) traz o exemplo de “toca-discos” que, no início, designava “o dispositivo que compreende o prato, o motor e os mecanismos de

acionamento” e que, posteriormente, passou a designar todo o aparelho que serve para tocar discos;

e) da causa para o efeito: a ação passa a denominar também o resultado da ação.

Bechara (1999, p. 398) inclui nesta categoria também os casos em que o produtor denomina o objeto produzido. É o que se verifica quando se diz que alguém “leu Shakespeare” para significar que “leu obras de Shakespeare”, ou no uso da expressão “ganhar a vida” para significar “ganhar meios que permitam viver”

(BECHARA, 1999, p. 398);

f) do continente para o conteúdo: o conteúdo acaba denominando o continente. De uso corrente na linguagem informal, metonimicamente “comer um prato” ou

“beber um copo” refere-se ao conteúdo desses recipientes, respectivamente, a comida e a bebida ingeridos.

A esses seis casos freqüentes citados por Dubuc (1999), acrescentamos mais um, que acreditamos também ser comum em algumas terminologias: aquele em que o indivíduo designa toda a espécie, particularmente na faceta que assume quando o nome próprio é empregado pelo nome comum. Encontramos em Filipak (1992, p. 34-36) a referência a este fenômeno, que o autor considera, em consonância com D’Onofrio (1978, apud Filipak, 1992, p. 36), uma das duas possibilidades de sinédoque particularizante, especificamente aquela em que se dá uma projeção da espécie pelo gênero. O autor cita o clássico exemplo presente na expressão “ganhar o pão de cada dia”, em que pão, uma espécie de alimento, é empregado para referir qualquer espécie de alimento. Ele lembra, porém, que, quando essa

“transnominação se refere a seres humanos”, essa sinédoque corresponde à figura conhecida como antonomásia, citando exemplos como “um Mecenas”, para referir alguém que protege as artes, ou “uma Penélope”, para referir uma esposa fiel.

Esse caso de emprego de nome próprio por um nome comum, porém, é apresentado por Dubuc (1999) no estudo das mudanças gramaticais, quando ocorre uma mudança de condição, como se verá em 3.4.1.2.4 adiante.

3.4.1.1.2 Extensão por analogia

A extensão por analogia se dá quando é atribuída a uma palavra uma nova acepção porque, por sua forma ou função, o primeiro referente faz lembrar uma outra realidade. Pode-se falar em analogia de forma, em que a comparação Pode-se dá em função de uma Pode-semelhança no aspecto. Em francês, Dubuc (1999, p. 149) menciona que, com freqüência, nomes de animais acabam sendo usados para denominar objetos semelhantes, como giraffe, como é chamado o pedestal do microfone. Assim é que, em português, papagaio, que na zoologia é a denominação comum de vários pássaros psitaciformes, passou a denominar também o brinquedo confeccionado com uma armação de varetas leves e papel fino, pela semelhança do

“rabo” colorido, no brinquedo feito de fita ou pano, que se empina no ar por meio de linhas.

Igualmente, o osso martelo, localizado no ouvido médio, recebeu o nome da ferramenta com cuja forma se assemelha. Podemos ainda citar como exemplos do português a língua dos calçados, uma peça alongada e estreita, em tecido ou couro, que se projeta para fora, no peito do pé, abaixo do cadarço.

Também é possível que ocorra a analogia de função, quando a semelhança se estabelece com base no uso do objeto. É por analogia de função que cegonha, o nome da ave da ordem dos ciconiiformes, que na tradição folclórica traz as crianças recém-nascidas a suas famílias, designa “caminhão especialmente projetado para o transporte de carros das fábricas de automóveis às revendas”. Talvez tenha sido essa a origem do termo comadre para designar o “urinol chato para os doentes que não podem se levantar”AURE, que tem em comum com a

“amiga, companheira”AURE o fato de estar por perto para ajudar em horas difíceis.21

A gramática da língua portuguesa abriga essas duas possibilidades de analogia sob a figura de linguagem chamada metáfora, definida por Ducrot e Todorov (1973) como o

“emprego de uma palavra para designar um objeto ou uma propriedade diferente de seu sentido habitual” (p. 333), que ocorre quando “um objeto é designado pelo nome de um objeto semelhante” (p. 140). Bechara (1999, p. 397) define a metáfora como uma “translação de

21 As definições apresentadas, quando não dos próprios autores citados, são de nossa autoria, a menos que especificado diferentemente. As definições extraídas de obras lexicográficas ou terminográficas, para referência rápida, vêm acompanhadas de uma sigla indicativa do texto-fonte, em letras maiúsculas, fonte reduzida, sobrescritas ao texto entre aspas. Por exemplo: o Novo Aurélio Século XXI é identificado por AURE; o Michaelis Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, por MICH; o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, por HOUA. A relação completa das siglas encontra-se na seção Lista de Siglas, no início deste trabalho, e os dados completos das obras constam das Referências Bibliográficas.

significado motivada pelo emprego em solidariedades, em que os termos implicados pertencem a classes diferentes mas pela combinação se percebem também como assimilados”.

A estrutura sintética da língua inglesa é propícia para a criação de termos metafóricos, pela simples aposição de um determinante frente a um nome determinado, o que em português só é possível se considerarmos uma estrutura sintagmática ou até fraseológica.

É o que se dá, por exemplo, em searchlight (search = “buscar” + light = “luz”), que significa

“holofote”, definido como um “um aparelho que, mediante lentes ou refletores, ou ambos, projeta ao longe poderoso feixe de luz e é usado nos faróis marítimos, na defesa antiaérea noturna, etc.”MICH

A estrutura do inglês permite ainda outro tipo de construção morfológica, que Sager (1990, p. 71-72) chama de símile, em que ocorre uma composição de palavras com elementos que indicam a semelhança na forma ou função, como -type, -like, -style, -shape. Alguns dos exemplos apresentados pelo autor podem elucidar: tooth-like projection (= projeção em forma de dente”); wheel-type bulldozer (= “trator de terraplenagem com rodas”; modern-style building (= “prédio de estilo moderno”), L-shaped room (= “sala em forma de L”). Ambos os processos são muito produtivos em línguas sintéticas, como o inglês, mas dificilmente são a forma preferida nas terminologias das línguas latinas, mais analíticas, pelo fato de o resultado ser uma denominação não concisa e/ou não precisa. Mesmo quando o processo se dá através da composição (que será focalizada adiante, na Seção 3.4.2.1.2), Basilio (1995, p. 35) lembra que, quando se tem como “objetivo a denominação na linguagem técnico-científica, não há espaço para a construção metafórica.”

3.4.1.1.3 Extensão por assimilação

A extensão por assimilação é a transferência do nome de um objeto a uma nova forma desse objeto. Dubuc (1999, p. 149) dá o exemplo do termo ferret, que inicialmente era usado para designar a ponta terminal metálica dos cadarços de sapatos; hoje esse mesmo objeto não é mais feito de ferro ou metal, mas sim de plástico; a denominação, no entanto, permanece a mesma. Em português, podemos citar sombrinha, o objeto que originalmente era usado pelas senhoras para proteger do sol (criando uma “sombra de pequena extensão”) e que hoje tem a mesma função que o guarda-chuva, embora seja usado ainda prioritariamente por

mulheres por ser menos sóbria em aparência. Outro exemplo que podemos trazer para ilustrar a extensão por assimilação em português do Brasil é terno, originalmente designando um conjunto formado por três peças do vestuário masculino: calça, colete e paletó. Na atualidade, podem-se encontrar conjuntos de apenas calça e paletó, com a mesma denominação, além ser possível estender a denominação ao vestuário feminino (neste caso, podendo ser chamado também de terninho).

Ainda dentro desta categoria de procedimentos de formação indireta de termos por extensão semântica podemos incluir também o que a norma ISO/CD 704 chama de terminologização, processo pelo qual uma palavra ou expressão da língua geral se transforma em um termo que designa um conceito de uma linguagem de especialidade. Pozzi (2002, p.

772) cita como exemplo circuito, que na língua geral é um “caminho que retorna a seu ponto de partida” e que na eletricidade vem a ser o “caminho que segue a corrente elétrica entre dois pólos”. O processo de terminologização é mais uma evidência da necessidade de se considerar os termos como pertencentes às linguagens naturais. Como coloca Krieger (2001):

Hoje surgem novas áreas do conhecimento, bem como há campos do saber que alcançaram estatuto de cientificidade, como é o caso da Lingüística. As novas terminologias, ao contrário das pioneiras nomenclaturas, instituem-se, na sua maioria, em consonância com o léxico comum. Sabe-se também, agora, que muitas unidades da língua geral sofrem um processo de terminologização, isto é, adquirem sentidos especializados que coexistem com os sentidos comuns na língua geral. Em síntese, a exclusividade do termo é o ideal em terminologia, mas não sua realidade.

(Krieger, 2001, p. 27)