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CAPITULO 3. A educação jurídica popular como prática de construção de Direitos

3.5 A extensão universitária como espaço de prática da educação jurídica popular

O projeto de extensão “Direitos Humanos e Gênero: Promotoras Legais Populares”, é integrado ao Núcleo de Prática Jurídica da Universidade de Brasília (NPJ/UnB) em Ceilândia/DF. Como tal, o projeto se compreende como um espaço de produção de um novo saber sistematizado a partir do diálogo entre o conhecimento acadêmico e popular, produzindo novas formas de conhecer interdisciplinar.

Assim, a Universidade de Brasília (UnB) tem em seu plano original o pioneirismo de se forjar enquanto um espaço de realização de uma educação voltada para a transformação social. A idéia de “Universidade Necessária” pensada por Darcy Ribeiro preconizava que a essencialidade do ensino superior estaria no encontro dos saberes acadêmicos com a realidade social de modo a contribuir com a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

A UnB nasceu em 1962 e “sua preocupação não era, assim, a de formar bacharéis verbosos, nem a de formar técnicos tecnicistas. Inserindo-se cada vez mais na realidade nacional, sua preocupação era contribuir para a transformação da realidade, à base de uma verdadeira compreensão do seu processo”289.

Neste período que antecedeu ao Golpe Militar de 1964 foi quando ocorreram também as primeiras experiências de educação popular como prática também extensionista. No ano de 1962, Paulo Freire ocupava o cargo de técnico em educação no Serviço de Extensão Cultural (SEC) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Neste trabalho a preocupação estava em possibilitar aos/as estudantes universitários a possibilidade de “ir ao encontro” do povo “emerso nos centros urbanos e emergindo já nos rurais e ajudá-lo a inserir-se no processo, criticamente”290.

Quando já estava no exílio, refletindo sobre as experiências de extensão no campo que vivenciava no Chile, passou a questionar o termo “extensão” por carregar uma conotação de um conhecimento que se “estende”, que se “leva”, similar a

289 FREIRE, Paulo, Educação como prática da liberdade, ob. Cit., p. 107. 290 Idem, ibidem, p. 66.

79 concepção bancária de educação como um ato de “comunicados” ao povo291. Todavia,

“Freire não propiciou, de fato, a substituição do termo „Extensão‟ por „comunicação‟, mas, a partir dele, o termo passa” a ser ressignificado dentro da noção de diálogo292.

Ainda, o problema da extensão estaria porque ela é o reflexo da “má consciência da Universidade”, já que, apesar da abertura que ela realiza do seu espaço, contraditoriamente reforça a sua “pecha de „torre de marfim‟”, ao inventar “vinculações sociais compensatórias”. Além disso, a extensão demonstra a incapacidade de se “trazer o desafio social e, sobretudo, da cidadania para dentro da proposta curricular” da educação universitária de maneira a superar a trilogia ensino-pesquisa-extensão293.

Ademais, muitas das pessoas que compõem o público das universidades públicas, como a UnB, são oriundas da elite ou da classe média e o desafio que se coloca é de que estas pessoas possuam a abertura necessária para o conhecimento do/a Outro/a durante a sua ação extensionista. Muitos/as dos/as estudantes universitários/as estiveram “sob a „sobredeterminação‟ de uma cultura de dominação que os[as] constituiu como seres duais”. Isto significa que mesmo se a sua origem for das classes populares, “a deformação, no fundo, seria a mesma, se não pior”, pois teriam sido tocados/as também pelo “medo da liberdade”294 .

Assim, há uma profunda descrença nos seres humanos que não possuam uma educação formal, considerados como incapazes. Esta (auto)desvalia é somada com outros preconceitos, como de classe, gênero, sexista e racismo, ou seja, para que estas pessoas sejam tidas “como absolutamente ignorantes, é necessário que haja quem as considere assim”295.

A descrença nos saberes dos indivíduos das classes populares se faz presente em muitas das atividades de extensão assistencialistas. O perigo delas reside no antidiálogo que impõe o mutismo e a passividade e não possibilita a “abertura” para a reflexão crítica sobre a realidade em que a ação se constitui296. Por vezes essas práticas se dão com base em uma falsa generosidade, como dimensões do sentimento de culpa,

291 FREIRE, Paulo, Extensão ou comunicação?, ob. Cit., p. 20.

292 ROCHA, Roberto Mauro Gurgel, Construção do Conceito de Extensão Universitária na América Latina, em FARIA, Dóris Santos de(org.) Construção Conceitual da extensão universitária na América Latina, Brasília: UnB, 2001, p. 22.

293 DEMO, Pedro, Lugar da extensão, em Construção Conceitual da extensão universitária na América Latina, ob. Cit. p. 141.

294 FREIRE, Paulo, Pedagogia do Oprimido, ob. Cit., p. 185. 295 FREIRE, Paulo, Extensão ou comunicação?, ob. Cit., p. 46.

80 na qual o/a opressor/a “pretendendo a manutenção de uma ordem injusta e necrófila, estará querendo „comprar‟ a sua paz”297.

O diálogo se torna impossível quando feito por pessoas que já não podem “viver se não tem alguém a quem dirija sua palavra de ordem”298. Ainda, a convicção

quase inabalável de que caberia somente “„transferir‟ ou „levar‟, ou „entregar‟ ao povo os seus conhecimentos” e técnicas, faz com que por vezes o público universitário tenha em sua relação com o povo uma prática de “invasão cultural”. Esta invasão se dá na medida em que impõe a sua visão de mundo, freiando a capacidade criadora do/a outro/a299.

Nesta direção, a crítica que se faz a extensão assistencialista é que

primeiro, toda a Universidade que se interessa pela pobreza da população deveria saber vê-la e tratá-la em seu entorno mais próximo, a começar pela rejeição de alunos[e de alunas] pobres que não conseguem ascender às entidades de melhor nível e gratuitas. Segundo, passar algumas semanas com os[as] pobres certamente não é boa estratégia para combater a pobreza, mesmo que os[as] visitantes sejam levados[as] às lagrimas300.

A solidariedade verdadeira está na relação de amor verdadeiro, e não puro sentimento piegas de “pena” que não possibilita ver no/a Outro/a a sua potencialidade de sujeito. Dessa forma, a solidariedade exige a exploração deste sentimento paternalista de forma a superá-lo no sentido de tomada de uma atitude radical que é a de estar com os/as oprimidos/as na luta pela transformação da realidade objetiva301.

Esta adesão às/aos oprimidas/os “importa numa caminhada até eles [e elas]. Numa comunicação com eles” e elas302. Assim, a prática extensionista libertadora é

aquela em que os/as integrantes estão abertos a pensar “com”, na superação da contradição da realidade, que é o pensar “companheiro”303.

Isto somente é possível quando se possui uma crença verdadeira no povo e de que o “conhecimento ingênuo” é apenas uma forma diferente de “captação da realidade objetiva”304. Dessa forma, educar é ao mesmo tempo educar-se, “não é estender algo

desde a „sede do saber‟, até a „sede da ignorância‟ para „salvar‟, com este saber, os que

297 FREIRE, Paulo, Pedagogia do Oprimido, ob. Cit.,, p. 171. 298 FREIRE, Paulo, Pedagogia do Oprimido, ob. Cit., p. 156. 299 Idem, ibidem, p. 178.

300 DEMO, Pedro, Lugar da extensão, ob. Cit., p. 141.

301 FREIRE, Paulo, Pedagogia do Oprimido, ob. Cit., p. 37- 38. 302 Idem, ibidem, p. 191.

303 Idem, ibidem, p. 153.

81 habitam nesta”305. Na prática da liberdade, ao contrário, educar é tarefa de quem sabe

que “pouco sabe” e com o diálogo com aqueles e aquelas que se pensam como pessoas que “nada sabem” é possível “chegar a saber mais” transformando o seu pensar sobre si mesmo.

Desse modo, na prática extensionista deve vigorar os mesmos princípios da pedagogia do oprimido e da oprimida no qual a absolutização da ignorância é tida como mito. O diálogo tem, assim, como característica a “colaboração” e a união para a libertação306. Isso significa que a libertação somente pode dar-se em comunhão, pois “ninguém se liberta sozinho”, como também “ninguém liberta ninguém” e não pode ser feita de uns/umas por outros/as307.

Neste sentido, o desafio que se coloca aos grupos extensionistas, como o da UnB que compõe a coordenação das PLPs, que pretende ser realizadores da “comunicação” é a busca permanente pela coerência para não apresentar comportamentos ambíguos308. Isto é desafiador, em especial, pela alta “rotatividade” de

integrantes em virtude do próprio tempo universitário. Uma solução para isto é o grupo de estudos e pesquisa que acompanha a ação extensionista que possibilita o constante (re)pensar desta prática.

Portanto, compreende-se que “ensino e pesquisa são, eles próprios, extensão, ou seja, são para a sociedade”309. A prática do projeto de PLPs possibilita às/aos

estudantes “pesquisadores/as-extensionistas” a conhecer por meio do diálogo crítico a realidade de opressão a que as mulheres estão submetidas e o “(re) pensar coletivo” acerca dos Direitos que expressem o sentido de libertação dessas opressões310.