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3.3 “C RIANÇA NÃO PODE VOAR 45 ”: O MENINO DO GIRO NO AR

4.1. F AZER O VERBO DELIRAR , TRAIR A LÍNGUA E GAGUEJAR

Um estilo, é conseguir gaguejar na sua própria língua. Traçar uma linha de fuga. Nunca as coisas se passam aí onde se pensa, nem pelos caminhos que se espera.

Deleuze

< E aquele menino era assim: mãos e pés grandes, mas olhar de passarinho. Gostava de pipas e gaiolas.

As gaiolas não careciam de aves. Gostava mesmo era de olhar andorinha. Às vezes na escola,

pensava que era ditoso, com penas largas e densas. Sonhava em alçar o pico da montanha

mais alta que se via lá de casa... Da janela seus pequenos olhos

saltavam grandes histórias. Cantarolava tristeza e essa logo saia de perto.

Já viu?

Menino despistar tristeza? Pois esse fazia.

Fazia também perguntas em forma de pio...

Sua professora chegava a ficar nervosa. Não entendia nada. Raros adultos têm olhar de passarinho.

Mas o menino... O menino não desistia. Envergava uma pipa e lá ia longe

115 a empenhar palavra.

Palavra em forma de pio. Ora veja se é possível...

Esse menino

cor de amarelo canário não se cansava. Quer dizer, poucas vezes até cansava. Mas quando recordava-se andorinha

voltava à empenhar pipas. Tinha gosto pelas alturas>

“Ora, o problema é o de um devir-minoritário: não fazer como, não mimetizar a criança, o louco, a mulher, o animal, o gago ou o estrangeiro, mas devir tudo isso, para inventar novas forças ou novas armas”(DELEUZE, 2004, p. 15).

O autor faz uma interessante distinção em relação aos usos menores ou minoritários que se extraem de uma língua, por sua variação. Para tanto, apresenta dois personagens, para elucidar o que concebe por gaguejar na própria língua. Tais figuras são, a saber: o trapaceiro e o traidor.

O trapaceiro ou intrujão denota a apropriação das significações estabelecidas, a conquista de um território ou até mesmo a instauração de uma nova ordem. “O intrujão tem muito futuro, mas nenhum devir” (DELEUZE, 2004, p. 57)

Este personagem assemelha-se com “o homem do Estado”, aponta Deleuze (2004), pois acedia o poder por vigarice, como os muitos reis retratados por Shakespeare. O intrujão pode, aos olhos alheios, parecer mesmo um bom rei, uma vez que ele se utiliza do código dominante e tira-lhe proveito.

O traidor seria como aquele personagem do romance, o herói, que trai o mundo das significações dominantes e da ordem estabelecida, fazendo irromper uma linha de fuga. Deleuze (2004) compara também o traidor com a figura do demônio, aquele que salta os intervalos, distinguindo-o dos deuses, justamente, por não se limitar a uma função fixa, a um território ou a um código. Ele se caracteriza pelo sulco. Pela capacidade de saltar.

Há uma potência na traição: a invenção de uma linha de fuga, uma vez que trair é devir. Uma viagem de grandes descobertas, como uma grande expedição. Não há nisto apenas incertezas e riscos acerca do que vai ser descoberto, há também invenção,

116 possibilidade de que algo seja diferentemente produzido. “O roubo criador do traidor, contra os plágios do intrujão” (DELEUZE, 2004, p. 57).

Deleuze (2004) ressalta, contudo, que trair é difícil. Porque trair é criar. É perder a identidade em prol de uma experimentação, um devir. Ele aponta que nossa sociedade está sempre à procura de produzir rostos. De amealhar as significações dominantes e fixar, quadricular, determinar modos de identificação.

Pergunta ele: “como desfazer o rosto, libertando em nós as cabeças exploradoras61 que traçam linhas de devir? Como passar o muro evitando fazer ricochete nele, ou sermos esmagados? Como devir imperceptível?” (DELEUZE, 2004, p. 61)

Afirma o autor que há todo um mundo de micropercepções, que nos conduzem ao imperceptível. E que se faz necessário experimentar. Trair, portanto, criar uma linha de fuga não é fugir da vida. Pelo contrário, é produzir real, criar vida, encontrar uma arma.

Gaguejar na própria língua, seria nesta proposta, pensar com “E...E...E” (DELEUZE, 2004, p. 75) ao invés de pensar para “É”, no sentido de afirmar uma única e derradeira ‘verdade’. Realizar um trabalho subterrâneo da língua, produzindo relações, encontros, e não subordinação. Fazer oscilar a língua62, apostando nos escapes e derivas que ela cria.

E...e...e, o gaguejar. O empirismo é apenas isto. É cada língua maioritária, mais ou menos dotada, que é preciso quebrar, cada um à sua maneira, para aí introduzir este E criador, que fará com que a língua fuja, e fará de nós esse estrangeiro na nossa língua, tanto quanto ela é a nossa língua (DELEUZE, 2004, p. 77).

61 João do Rio é um cronista carioca da década de 20 que tem um instigante texto chamado: “O homem da

cabeça de papelão”. Neste conto, ele narra a história de Antenor. Homem que vivia no País do Sol e que por expressar uma diferença dos demais atores de seu coletivo acaba por ter que utilizar-se de uma cabeça de papelão. Ver conto na íntegra em: http://revistaescola.abril.com.br/fundamental-2/homem-cabeca- papelao-634370.shtml Acessado em 07/12/2011.

62 “Contenho vocação para não saber línguas cultas. Sou capaz de entender as abelhas do que alemão. Eu

domino os instintos primitivos. A única língua que estudei com força foi a portuguesa. Estudei-a com força para poder errá-la ao dente” (BARROS, 2010, p. 381).

117 Para tanto, Deleuze (2004) acenou que seria preciso forjar uma função muito especial para isso, que não se confundisse nem com a saúde, nem com a doença: a função do Anômalo. “O anômalo está sempre na fronteira, na margem de uma banda ou de uma multiplicidade; faz parte dela, mas fá-la passar para outra multiplicidade, fá-la devir, traça uma linha-entre” (DELEUZE, 2004, p. 58).

Neste ponto, já nos é possível pensar as contribuições de Barros (2010) sobre o delirar do verbo, sobre a capacidade da criança de fazê-lo delirar, articulando-as às noções deleuzianas de trair e gaguejar na própria língua, como operações eminentemente inventivas, na mesma medida em que enfatizamos a narratividade de nossos meninos-contadores como possibilidades éticas e políticas de criação da vida.

O que se está a afirmar é que uma cabeça que “dis-trai” pode ser também a que inventa, a que tem potência. Um menino que alucina e faz delirar um verbo: ou conta, ou canta, ou joga ou voa, pode forjar uma raridade, uma singularidade, um estilo, um gesto.

Portanto, não se trata de – como promete e teme nossa sociedade – salvar uma alma, pela via da sujeição a qualquer forma de imposição ou verdade, mas antes de permiti-la viver sua vida, como afirma Deleuze (2004), achando as experimentações que aumentem sua potência de agir, de afetar-se pela alegria, multiplicar os afetos que exprimem a afirmação.

Neste sentido, a aposta por ‘meninos-anômalos’ nada tem a ver com a normalização tão bem empreendida por nosso movimento civilizatório, apontando e buscando os dissidentes, desviantes ou anormais (cf. FOUCAULT; 2002) para controlá- los, curá-los ou tratá-los. Não se trata de apagar as singularidades de cada criança, desfazendo-se de suas histórias, tornando-as incapazes, ou mesmo, negligenciando seus sofrimentos.

Trata-se, antes, de fazer suporte para as palavras que eles põem a delirar. Não ceder às excitações produzidas pela correria capitalística que almeja – ao invés do contato afetivo e do ato de inauguração da palavra-inventada – tombar ao acúmulo de competências mercadológicas e aos inúmeros “estados de emergência”, aos quais somos cotidianamente convocados a responder.

118 Cuidar, portanto, de afirmar a possibilidade de torceduras, de devires, de invenção e emancipação imaginativa pela poesia. E assim, pelo rabo incerto da palavra: contada, cantada, jogada ou em pleno vôo, produzir “parafusos de veludo”63. Ou, mesmo, um Tratado geral das grandezas do ínfimo (BARROS; 2010, p. 399), resgatando os sentidos micropolíticos64 de invenção da vida:

Se diz que há na cabeça dos poetas um parafuso a menos Sendo que o mais justo seria o de ter um parafuso trocado do que a menos.

A troca de parafusos provoca nos poetas uma certa disfunção lírica. Nomearei abaixo 7 sintomas dessa disfunção lírica.

1 – Aceitação da inércia para dar movimento às palavras. 2 – Vocação para explorar os mistérios irracionais.

3 – Percepção de contiguidades anômalas entre verbos e substantivos. 4 – Gostar de fazer casamentos incestuosos entre palavras.

5 – Amor por seres desimportantes tanto como pelas coisas desimportantes. 6 – Mania de dar formato de canto às asperezas de uma pedra.

7 – Mania de comparecer aos próprios desencontros. Essas disfunções líricas acabam por dar mais

importância aos passarinhos do que aos senadores (BARROS, 2010, p. 399).

Em Acerca do Ritornelo, Deleuze (2008a) começa o texto situando uma cena: uma criança no quarto escuro, tomada pelo medo, tranquiliza-se cantarolando. Orienta- se como pode pela sua cançãozinha. Afirma o autor: “a canção já é um salto” (DELEUZE, 2008a, p. 116). O autor termina o texto apontando que, no ritornelo infantil, nas brincadeiras da infância, a criança já tem asas. Ela é como poeta65.

Assim, relembra que o poeta é aquele que pode liberar as populações moleculares na esperança de que semeiem ou mesmo engendrem um povo por vir. E, se daí alguma revolução molecular pode advir, tornando-se uma preocupação para nossos governos – que atuam na conservação do atacado –, é mesmo desta possibilidade que poderemos operar localmente, ainda que em silêncio, na feitura de novos

63

Esta expressão “Parafusos de veludo”, retirada de Manoel de Barros em: O livro sobre nada, foi utilizada pelo professor Kleber Lopes em sua leitura sobre o Projeto de Qualificação desta pesquisa para retomar a propositura feita pela pesquisadora.

64 Voltaremos a este ponto mais adiante.

65 “O menino fazia prodígios. Até fez uma pedra dar flor! A mãe reparava o menino com ternura. A mãe

falou: Meu filho, você vai ser poeta. Você vai carregar água na peneira a vida toda. Você vai encher os vazios com suas peraltagens. E algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos” (BARROS, 2010, p.470).

119 agenciamentos, mesmo que nunca estejamos “seguros de ser suficientemente fortes, pois não temos sistema, temos apenas linhas e movimentos” (DELEUZE, 2004, 170).

Uma língua, mostrou Certeau (2011), é o espaço no qual uma sociedade explicita as regras formais do agir e os funcionamentos que as diferenciam, mas, ela também porta um lugar de improvisação. Nos processos de interação cotidiana a língua ordinária rumoreja. Insinua-se. Passa. Aflora. Vem ao nosso encontro, desencaminha lógicas dominantes, operando uma bricolagem na economia cultural dominante: “o cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada” (CERTEAU, 2011, p. 38). Uma língua produz-se por combinatórias de operações. São inúmeras e infinitesimais as metamorfoses que se podem extrair dela.

Como propõe o autor, mais urgente do que estabelecer a análise dos aparelhos que exercem o poder e a vigilância, seria descobrir como uma sociedade inteira não se reduz a eles, afirmando os procedimentos minúsculos das diversas maneiras de fazer e de dizer que formam a contrapartida. Inventar uma rede de astúcia, como bem exercita o menino Ulisses.