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Capítulo III – O período pós-ditadura: corpo, lugar de fala, decolonialidade e

IV.1. Fabiana Faleiros e o “corpo-megafone-cidade"

Outra artista e poeta que surge no cenário digital actual é Fabiana Faleiros que cria instalações que são activadas por meio de performances, canções, textos e objetos. Desde 2012 que desenvolve o projecto Lady Incentivo, que consiste em uma performance resultante da criação da personagem de uma cantora e grande figura pública que questiona a terceirização da cultura pela lei brasileira intitulada “Lei de Incentivo” (Fig. 11). Esta lei de incentivo à Cultura no Brasil é definida como:

Principal ferramenta de fomento à Cultura do Brasil, a Lei de Incentivo à Cultura contribui para que milhares de projetos culturais aconteçam, todos os anos, em todas as regiões do país. Por meio dela, empresas e pessoas físicas podem patrocinar espetáculos – exposições, shows, livros, museus, galerias e várias outras formas de expressão cultural – e abater o valor total ou parcial do apoio do Imposto de Renda. A Lei também contribui para ampliar o acesso dos cidadãos à Cultura, já que os projetos patrocinados são obrigados a oferecer uma contrapartida social, ou seja, eles têm que distribuir parte dos ingressos gratuitamente e promover ações de formação e capacitação junto às comunidades. Criado em 1991 pela Lei 8.313, o mecanismo do incentivo à cultura é um dos pilares do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), que também conta com o Fundo Nacional de Cultura (FNC) e os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Secretaria Especial da Cultura, [s.d.]).

A artista incorpora frequentemente esta personagem e realiza performances em contextos expositivos, festivais de música e festas. Durante a 30ª Bienal do livro de São Paulo, em 2012, Faleiros gravou o seu primeiro disco

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Lady Incentivo: Novas formas de amar e de gravar CD ao vivo na Mobile Radio.

O CD é composto por sete músicas cantadas pela autora, com letras que falam sobre formas de amar e de gravar CDs e inclui também letras de divas da música pop. Em 2015 publicou o livro Lady Incentivo/Ninguém é você por ter ganho o Prêmio Proac de Criação Literária – Poesia, pela editora Hedra.

Fig. 13 – Fabiana Faleiros. Lady Incentivo, 2013. Adesivo vinil com recorte plotado, 1,00 x 1,48 cm. Coleção da autora.

Durante a minha investigação de mestrado conheci Fabiana através do Facebook e pude conversar um pouco com a artista. Ela compartilhou comigo a sua tese de doutoramento, concluída na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A tese consiste em uma defesa sobre o seu trabalho Lady

Incentivo - SEX 2018 um disco sobre tese, amor e dinheiro. Nesta tese a artista

faz uma análise à privatização da cultura das terras e dos corpos, a partir de teorias e práticas feministas descoloniais e despatriarcais, e do projecto Lady

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corpo-megafone-cidade. A sua escrita é “sonora e feita ao vivo em redes sociais da Web durante o processo da pesquisa. São começos e recomeços desta disco- tese que nos levarão para uma narrativa ficcional composta a partir de uma escrita coletiva” (Faleiros, 2018, p. 8).

Na sua tese Faleiros faz comparações com um mundo artístico que não é assim tão distante do nosso, retratando factos artísticos acontecidos na década de 1990, menos de 30 anos atrás, e comparando-os ao cenário do circuito artístico actual. Uma mulher que antes era vista como objeto e que é hoje dona de si própria. Na vídeo-entrevista que realizei à artista em 2019, via internet, ela refere:

Minha tese tem muito essas histórias da década de 1990, que era uma época em que o feminismo pregava esse neo-liberalismo. Eu não lia o feminismo nessa época mas hoje eu percebo como isso era um sintoma na minha vida. Eu via a minha mãe trabalhando fora então o machismo não existia mais na verdade tinha toda uma questão de trazer a mulher como uma mulher universal, classe média, com seus privilégios, não se percebia a diferença entra as mulheres, a questão da raça, da classe, etc. Nos anos 1990 essas questões estavam sendo manipuladas de forma a que enxergássemos desse jeito, e era justamente a época em que a Lei de Incentivo abateu 100% dos impostos (Matos, 2019, p. 15).

A Lady Incentivo descreve-se como uma mulher, pessoa física jurídica em um só corpo, micro-empreendedora individual, empresária de si, com a lei incorporada no seu nome próprio. Ela reivindica o seu dinheiro de volta, dinheiro que foi roubado pelo poder público. No trabalho Lady Incentivo, ela refere que na sua investigação para doutoramento foi feita uma pesquisa no Google sobre a palavra Lady:

Na pesquisa do Google, Lady aparece nesta ordem: Lady Gaga, Lady meaning, Lady significado, Lady song. Lady significado em português é Leide, senhora ou dama, o feminino de Lord. Para criar a minha própria Leide inventei a Lady Incentivo e aqui apresento uma biografia cruzada com uma pequena história da privatização da cultura no Brasil. A subjetividade microempreendedora individual que não é só minha, é paralela à criação da Lei de Incentivo Federal à Cultura, a chamada Lei Rouanet (Matos, 2019).

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Faleiros faz uma importante crítica à comercialização da cultura, no que respeita às empresas que apoiam os centros culturais, museus, bienais e feiras de arte que cobram R$40 aos visitantes pela entrada, e defende que os objetos de arte estão entregues à especulação financeira.

Observe que a marca 'Lei de Incentivo à Cultura' não pertence a qualquer dos grupos menores (apoio, divulgação e realização), ficando à extrema esquerda, no início do bloco (...). A assinatura do Ministério da Cultura vem sempre acompanhada dxs realizadorxs: instituição e Governo Federal. O manual de aplicação da marca adverte que é preciso respeitar a proporcionalidade entre as marcas. Nesse jogo de visibilidades a ausência de um plano de políticas públicas culturais no país aparece. Se em 1991 70% dos recursos investidos em projetos culturais via Lei Rouanet eram privados, em 2015 a percentagem cai para 4%.A omnipresença da marca Lei de Incentivo nas instituições culturais mostra o Estado entregando o dinheiro público nas mãos dos departamentos de marketing cultural das grandes corporações (Faleiros, 2018, p. 25).

Fig. 14 - Printscreen do Manual de uso das marcas do PRONAC. (Faleiros, 2018, p. 25).

Portanto, a obra Lady Incentivo, para Faleiros, traz reflexões tanto no campo do direito da mulher, contra a lógica neoliberal e neocolonial das leis que matam e expropriam terras e corpos, ao abrir uma fenda no símbolo original da Lei de Incentivo Federal à Cultura para que as bucetas não sejam mais um bem público (do Estado) e nem privado (do marido ou das empresas), mas pertença das próprias mulheres que são senhoras da sua própria sexualidade e autoras das suas próprias leis.

A ideia das novas tecnologias e da sua relação com as questões do corpo e da sexualidade encontram-se muito presentes no último trabalho de Faleiros, o Mastur Bar, de 2018. Durante a entrevista querealizei à artista, ela refere: “Uma

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das metodologias que utilizo para escrever a minha tese é escrever ao vivo nas redes digitais tocando com os dedos a tela sensível para criar novos refrões coletivos” (Matos, 2019). Nesta obra, Fabiana realiza performances em um bar itinerante com aulas-conserto sobre masturbação. A artista utiliza relações do toque dos smartfones com o gesto da masturbação. Faleiros explica:

Na performance crio uma genealogia do gesto “desmunhecar” ou “pulso que cai”, relacionando-o com as mãos das histéricas, com as mãos nobres e pops e com as mãos no celular. Os gestos que ocupam o corpo construído como feminino são um resíduo histórico presente até na mão que vibra no capitalismo touchscreen. Além de drinks e objetos, o Mastur Bar oferece música, coisas para se fazer com as mãos e técnicas para estabelecer a conexão de si (Faleiros, - Virando o Azeite, Mastur Bar, [s.d.]).