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CAPÍTULO I CENAS URBANAS: VANGUARDAS LITERÁRIAS E

1.1 FACETAS E FEIÇÕES DO CRIME NA URBE MODERNA

Um ditado popular corre livremente de boca em boca há muito, muito tempo... Tanto tempo, que se tencionássemos datá-lo, talvez não encontraríamos registros suficientes para tal intento. Esse adágio, que rola de boca em boca, geração após geração, ecoa pelos quatros ventos com o seguinte dizer: “O Sol nasce para todos!”.

Tem muito de verdade o tal aforismo, realmente o Sol nasce para todos, entretanto, o astro luminoso que se ergue todas as manhãs para iluminar e aquecer a terra e seus habitantes pode mostrar feições diferentes de um indivíduo para outro. De modo que, se para alguns ele é redondo, para tantos outros, ele é quadrado.

Disparate!

Não para dois sujeitos que, „honrosamente‟, tiveram seus retratos expostos na edição da Revista Careta do dia 04 de maio de 1912, no Rio de Janeiro, glosados com seus principais feitos. O primeiro a aparecer nas páginas da revista é José Luiz da Silva. (Fig. 1).

Figura 1: O “Bicanca”. Careta, Rio de Janeiro, Anno V, n. 205, p. 29-30, 04 de maio de 1912.

O segundo chama-se Thomé Roque de Faria. (Fig. 2).

Figura 2: “Pae Thomé”. Careta, Rio de Janeiro, Anno V, n. 205, p. 29-30, 04 de maio de 1912.

Para esses dois, por possuírem história pitoresca e que vai de encontro com os ideais de ordem e progresso da ainda jovem República brasileira, possivelmente, o Sol que nasce para todos veio no resplendor da manhã carioca geometricamente mudado, da cela da Casa de Detenção no Rio de Janeiro da Belle Époque, ele nasceu quadrado.

A princípio não foram os únicos que cometeram delitos pelas novas avenidas da então Capital Federal do Brasil. Como eles, tantos

outros eram retirados de circulação se fossem apanhados no centro da cidade. A imagem da cidade urbanisticamente mudada para receber a fina flor da sociedade carioca, que exercia seu footing diariamente, não podia ser conspurcada pela presença da degradação e da miséria que enlaçava o Rio de Janeiro pelos arrabaldes. Ao que aparece, não importava a elite administrativa se o grande número de vagabundos e criminosos que vagavam pela cidade era fruto da carência de domicílios e da falta de empregos, a polícia era feroz e tinha em suas mãos o aval para retirar de circulação qualquer tipo de vagabundagem delituosa. Uma atitude que se tornou corriqueira devido ao alto percentual de desemprego estrutural e constante que permanecia a sociedade carioca, sendo que grande parte desta população estava limitada à condição de vadios compulsórios, revezando-se entre os únicos exercícios alternativos que lhes restavam. Assim, o panorama desolador desta população vista como perigosa estava atado principalmente ao “[...] subemprego, a mendicância, a criminalidade, os expedientes eventuais e incertos. Isso quando a penúria e o desespero não os arrastavam ao delírio alcoólico, à loucura ou ao suicídio.”1

Essa era a imagem da cidade que não deveria vir à tona. A miséria, com sua aura impressionante e hedionda, precisava ser escondida ou encarcerada; as duas únicas opções para a turba de desempregados e sem tetos cariocas. A Regeneração urbanística de 1904 não comportava o mundo diverso e sombrio da grande concentração popular que vivia em hospedarias e casas de cômodos que se deflagravam em um grande pandemônio infernal. A essa parcela da população lhe foi negada a imponência dos casarões arquitetonicamente projetados com esmero e bom gosto, para figurarem em meio a becos imundos e asfixiantes, sórdidas tavernas e as zonas fimbrias da cidade de aspecto estagnado. Aí, nesse caos ululante e repulsivo criavam-se as teias de promiscuidade, gatunagem e indigência que os dois indivíduos das fotos acima com certeza conheciam como a palma de suas mãos, mas que, quiçá, tivessem a oportunidade de escolher ou a chance da dúvida não a escolheriam como rumo de vida.

Todavia, o caos urbanístico e social das primeiras décadas dos 1900 carioca que causou uma série de mudanças bruscas na população da Capital Federal brasileira tampouco era exclusivo de nosso país. Mais ao sul da América do Sul, na capital porteña Buenos Aires, em um semanário humorístico Argentino, desenhava-se a similar perspectiva acerca dos problemas criminais na sociedade bonaerense:

Figura 3: “El terror en Buenos Aires”. Don Goyo, Buenos Aires, Año II, nº 60, p. 57, 23 de noviembre de 1926.

A imagem expressa sob o título “El terror en Buenos Aires” (Fig. 3) fala por si só e mostra que não era só flores a vida dos transeuntes das calles Corrientes, Rivadavia, Florida, entre outras. A Capital Federal Argentina igualmente padecia com constantes ondas de violência dentro da sua pujante e grandiosa urbe cosmopolita. Um dos fatores que contribuíram para esse caos urbano tornar-se realidade está presente nas mesmas alternativas modernizantes que o Rio de Janeiro escolheu. A imigração em massa que inflou os centros urbanos com uma vasta legião de pessoas em busca de emprego e moradia, calculadas no período entre 1880 e 1886, em cerca de 500.00 pessoas e as importantes transformações urbanas pautadas no mesmo ideal de modernidade que a elite carioca absorveu, proporcionou mudanças sociais, econômicas e topográficas muito aceleradas, alterando assim a percepção coletiva do espaço. Conseqüentemente, a cidade cresceu aceleradamente de modo que os cidadãos tiveram que se adaptar aos imigrantes e ao processo de modernização num forçoso trabalho de enfiá-los goela abaixo. O que não foi algo fácil.

Igualmente como o Rio de Janeiro, com os olhos voltados a Paris, símbolo de cidade ideal, Buenos Aires iniciou o seu bota abaixo urbanístico almejando alcançar a beleza e o prestígio da afamada metrópole européia redesenhando a cidade num ritmo demolitório tão febril quanto o carioca. Esse cenário impressionante, pensado pela aristocracia bonaerense no período de 1880 a 1920, era o modelo ideal para se alcançar uma metrópole digna para se apreciar e viver. Por isso, não bastava o esquema traçado por Juan de Garay ao fundar pela segunda vez Buenos Aires, nem mesmo com os terrenos que se somaram depois e que era patrimônio exclusivo das quintas. Ainda faltava desbravar a cidade para o Norte – Recoleta, San Nicolás, Retiro –, sendo necessário marcar diagonais, praças e ruas com retornos. Segundo Germinal Nogués, “Había que salir a la vereda, mostrarse, ir al teatro y al café. Los modelos arquitectónicos eran realizados en Francia por profesionales que, por lo general, no conocían la Argentina.”2

Toda essa reviravolta nos padrões culturais, topográficos e sociais tanto na cidade do Rio de Janeiro quanto na ciudad de Buenos Aires criou novas formas de conduta dentro da urbe moderna e, porque não, de banditismo. No caso da capital porteña, não foram exclusivamente os imigrantes europeus que toparam com problemas para resistir em terras argentinas. Os argentinos do interior do país, seduzidos pelas promessas inovadoras da modernização, “[...] também deixaram o campo e

migraram para as cidades, Buenos Aires em especial, e não encontraram outro destino que não fosse a pobreza e a marginalidade.”3

Assim, para as elites identificadas com o ideal de modernidade, que arquitetavam transformar suas respectivas cidades em símbolos de beleza e boas maneiras através de um „projeto civilizador‟, era necessário desvanecer as manifestações culturais carregadas de valores „tradicionais‟ e „primitivos‟ preenchendo seus espaços por valores civilizatórios que a Europa, berço desses ideais, apresentava no outro lado do oceano Atlântico.

Em O processo civilizador (1939) Norbert Elias tece uma análise expondo a relatividade do conceito de „civilização‟. Segundo o autor alemão, a idéia de „civilização‟ está justamente na contextualização histórica específica a qual ela pertence. Portanto, o que é importante assinalar são as dessemelhantes atribuições que esse conceito adquiriu em conjunturas nacionais distintas, de maneira a desconstruir a preeminência com que a idéia universal de civilização é empregada na (auto)significação da cultura ocidental.

Através do viés exposto por Elias sobre as várias formas e significações que a palavra tem para diferentes nações em diferentes épocas, podemos ter uma da compreensão de qual é o sentido de „civilização‟ que as elites brasileiras e argentinas pretendiam para seus concernentes países. Com os olhos sempre voltados a tudo que acontecia no campo da política, da cultura e da economia principalmente na França e na Inglaterra, é interessante notar como os aspectos dessas culturas chegavam às ruas do Rio de Janeiro e de Buenos Aires via valores, objetos e posturas que mesmo sofrendo assimilações, não deixavam suspeitas de qual era o tipo de „civilidade‟ que ali estava sendo posta. Esse processo era difundido em boa parte por viajantes nativos que ao retornar da Europa exaltavam os supostos valores europeus. Pouco a pouco, estes padrões transformavam o espaço público, o modo de vida e a mentalidade carioca, regrando a sociedade através de princípios fundamentais intensamente arraigados e identificados com o modo de vida parisiense. Segundo Nicolau Sevcenko, essa transformação que regra o decurso da sociedade carioca está vinculado principalmente a um cosmopolitismo invasivo; a expulsão dos grupos populares da área central da cidade, palco de reformas urbanísticas as quais serão desfrutadas quase que exclusivamente pelas elites; a censura dos costumes e hábitos conectados pela memória a sociedade tradicional; e a recusa aos

elementos de cultura popular que de algum modo pudessem conspurcar a imagem civilizada da sociedade dominante.4

Na análise de Davi Viñas, a glorificação dos novos ideais, bebidos na fonte européia, também transtornava a cabeça dos argentinos. Naquele momento a Europa era um modelo a ser seguido enquanto que “[...] la Argentina o Buenos Aires son la materia desdeñable, el cuerpo pecaminoso o el mal, y de eso hay que purgarse a través de la iluminación que desciende desde el empíreo europeo”.5

Assim, no aluir de ruas, de prédios e no esfarelar de costumes próprios da população carioca e porteña, a parcela aburguesada dessas duas cidades sonhava e ambicionava seguir o modelo europeu com vistas à intelligentsia francesa, visto que essa simbolizava modelos palacianos que eram a „menina dos olhos‟ para uma metodologia civilizatória a ser adotada no plano dos costumes: a civilisation. Esse conceito histórico de „civilização‟ européia, discutido por Elias, e tão almejado e invejado por nossas elites, nos dá indícios de quão profunda foi a movimentação carioca e bonaerense para inserir-se dentro do padrão europeu desejado. O termo „civilização‟ delineia um processo ou, pelo menos, seu resultado. No caso aqui especificado, o termo revela o orgulho pela importância de suas nações para o progresso do Ocidente e da humanidade. A palavra civilização, portanto, era usada como o epíteto de uma nação que estava em movimento constante, oscilando incessantemente „para frente‟, progredindo. Para Elias, o conceito de civilização é inicialmente, como advém com o de kultur,

[...] um instrumento dos círculos da classe média – acima de tudo da intelligentsia da classe média – no conflito social interno. Com a ascensão da burguesia, ele veio, também, a sintetizar a nação, a expressar a auto-imagem nacional.6

Dentro deste momento identificado como civilizador, período que movimenta as estruturas mentais e emocionais por conformar novos códigos gestuais e morais à população, podemos encontrar pistas que nos levam a adentrar, dado o novo contexto, ao mundo da nova sociabilidade das ruas, mais precisamente a algo que remete ao contrário do conceito de „civilização‟, entretanto, que está intimamente imbricado ao seu processo: a criminalidade.

4 SEVCENKO, 2003. 5 VIÑAS, 1995, p. 39. 6 ELIAS, 1939, p. 56.

Ações delituosas eram visíveis tanto no Rio de Janeiro quanto em Buenos Aires, roçavam a epiderme da cidade todos os dias através dos mais variados tipos de conspirações, roubos, assassinatos e fraudes. As fotos de „Bicanca‟ e de „Pae Thome‟ nas páginas da Revista Careta e a charge satírica argentina na Revista Don Goyo atestam com veemência sobre essa criminalidade que assolava as ruas das duas Capitais Federais.

Assim, a civilisation e a modernidade, portanto, trouxeram para o indivíduo uma gama de mudanças novas que influenciaram diretamente no trabalho, no cotidiano e no plano espacial da cidade. Os sentimentos são céleres na modernidade. Ser moderno, portanto, é viver a experiência da mudança e do progresso, mas também vivenciar o ruir de tudo o que sabemos e de tudo o que somos. A modernidade une a espécie humana, pois extingue todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia. Porém, conforme Berman, “[...] é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia.”7

Dentro deste cenário de modernização e mudanças, novo aos olhos dos cidadãos do Rio de Janeiro e de Buenos Aires, surgem dois escritores que enxergam na multidão caótica, que cinge as ruas em busca de sobrevivência, a inspiração para sua escrita. João do Rio e Roberto Arlt encontram território fértil justamente naquilo que a elite dominante mais despreza ou não quer ver: a miséria e a marginalidade.

Ruas. São elas que definem os dois escritores aqui trabalhados. Pela rua do Ouvidor, João do Rio. Por la calle Florida, Roberto Arlt. Dois amantes incondicionais das ruas ladrilhadas de suas cidades. Dois autores, dois países, duas cidades, duas ruas, ou melhor, várias delas. E por elas, além dos articulistas e da população em geral, uma avalanche chamada modernidade. Pode-se afirmar, sem demasiado risco de faltar com a verdade, que o final do século XIX e o início do século XX foi um soco na boca do estômago de grande parte dos habitantes do Rio de Janeiro e de Buenos Aires, um golpe que fez nascer e morrer hábitos e edifícios. Sim, foi um susto. Espanto que logo se dissipou e tornou-se, para além de tensões sociais e culturais, literatura.

1.2 MODERNIDADE, NACIONALISMO E COSMOPOLITISMO