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6. A POLÍTICA NACIONAL DE ATENÇÃO INTEGRAL EM REPRODUÇÃO HUMANA

6.3 Falhas na formulação da Política Nacional de Reprodução Humana Assistida

O princípio da universalidade, que rege a distribuição das prestações públicas de saúde, não está sendo atendido na distribuição da política de reprodução assistida, haja vista o limitado número de centros. Mas o referido princípio não está sendo violado somente neste aspecto. O próprio programa construído dentro do Ministério da Saúde toma por base o conceito de infertilidade, no entender desta pesquisa, arbitrário, preconizado pela Organização Mundial de Saúde e pela American Society for Reproductive Medicine que considera infertilidade a ausência de gravidez após 1 (um) ano de tentativas por meio de relações heterossexuais. Assim, como é de se notar, a definição não leva em consideração variações subjetivas e regionais e nem as diversas formas pelas quais a infertilidade pode se apresentar.

Nesse contexto, há grave arbitrariedade no conteúdo dessa política, como a exclusão dos homossexuais do rol dos beneficiários do programa.

259 BRASIL. Setor de Reprodução Humana do Centro de Referência em Saúde da Mulher – Hospital Pérola

Byington-SP. Reprodução humana. Disponível em; <http://www.hospitalperola.com.br/reproducao- humana.php>. Acesso em: 17 jul. 2015.

260 BRASIL. Setor de reprodução humana assistida do hospital das clínicas da faculdade de medicina de

Ribeirão Preto. Como agendar. Disponível em:

Em 2009, a Organização Mundial de Saúde e o Comitê Internacional para Monitoração da Tecnologia Reprodutiva Assistida (ICMART) divulgaram uma nova definição clínica de infertilidade que passou a ser uma “doença do sistema reprodutivo definida pela falha de se

obter gravidez clínica após 12 meses ou mais de coito regular desprotegido261”. De fato, essa

definição ajuda a tornar mais obscuro o debate a respeito do acesso às técnicas de reprodução humana assistida no mundo inteiro, até porque desconsidera outros aspectos da infertilidade que não estão necessariamente relacionados a questões médicas. Nesse caminhar, Débora Diniz alerta para a diferença entre o diagnóstico médico de infertilidade e a condição sociológica de infecundidade involuntária. Destaca a autora que muitas mulheres que vão em busca das tecnologias reprodutivas com o objetivo de terem filhos naturais não possuem qualquer diagnóstico médico, pois há muitos casos em que o problema de saúde está no companheiro, o

que não exclui o tratamento direcionado ao corpo da mulher262. Para Ana Lúcia Tiziano

Sequeira, a infecundidade faz parte de um projeto pessoal, não tendo relação direta com problemas biomédicos. É nesse prisma, que a autora aduz que a infecundidade involuntária não está necessariamente relacionada a restrições médicas de concepção, não devendo ser tratada como infertilidade. Há casos de pessoas infecundas por motivos não biomédicos, como casais homossexuais que não desejam contato sexual com o sexo oposto, razão pela qual poderiam ser

beneficiados pelas técnicas de reprodução humana assistida263.

Com efeito, não é possível dizer que o Estado brasileiro respeita o mandamento do tratamento igualitário entre as pessoas de orientação sexual diversa, uma vez que não é outorgado aos casais homossexuais todos os direitos atribuídos aos casais heterossexuais, apesar dessa premissa da não discriminação em razão de orientação sexual estar expressa em diversas normas internacionais.

Atualmente, essa política pública só dispõe de meios para o atendimento dos casais heterossexuais inférteis terem a oportunidade de gerar seus filhos naturais, constituindo um fragrante desrespeito aos postulados mais modernos do direito civil e constitucional.

Percebe-se, então, que a Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida não oportuniza tratamento para os homossexuais que também queiram ter seus filhos

261 CHILE. Red Latinoamericana de Reproducción Asistida. Glossário revisado da Terminologia das técnicas de reprodução assistida (TRA), 2009. Disponível em: <http://www.redlara.com/aa_portugues/glossario.asp>.

Acesso em: 17 jul. 2015.

262 DINIZ, Debora. Etnografia da infertilidade. Universidade de Brasília, Brasília, Brasil. Cad. Saúde

Pública vol. 24 nº. 1 Rio de Janeiro Jan. 2008, p. 232.

263 SEQUEIRA, Ana Lúcia Tiziano. Potencialidades e limites para o desenvolvimento de uma política de atenção em reprodução humana assistida no SUS. Tese de doutorado. Pós-graduação em Saúde da Criança e

naturais e que não estão dispostas a ter relações sexuais com o sexo oposto para não corromper sua orientação. A omissão inconstitucional pode ser constatada nos seus dispositivos: inc. II e II do art. 306 e inc. I do art. 207 da Portaria nº 2.048/2009, o que, na prática, tem sido obstáculo ao acesso dos casais homossexuais.

A inclusão do casal homossexual, mas psicologicamente infértil entre os beneficiários da Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida pode-se, a princípio, tornar-se mais polêmica, na medida em que não se pode recorrer ao direito à saúde para amparar seus pleitos de acesso às técnicas, uma vez que tais pessoas são biologicamente férteis, sendo necessário recorrer a outras fontes encontradas no ordenamento jurídico.

Importante pontuar que o programa foi construído sob o fundamento do direito de acesso à saúde e sob o conceito de infertilidade natural. Porém, a definição de infertilidade não é tão fácil, pois pode haver inúmeras ocasiões em que as pessoas podem igualmente encontrar-se sem

possibilidades de ter filhos biológicos devido a fatores familiares, sociais e psicológicos264,

sendo crescentes as intervenções nas mulheres em casos de infertilidade masculina, o que faz, a princípio, afastar o fundamento do direito à saúde, uma vez que a pessoa sobre a qual recai a intervenção médica não sofre qualquer problema de saúde. Sobre essa problemática, Carlos Lema Añón salienta que os defensores do direito à reprodução não vislumbram nenhum

problema, pois o direito à saúde não é o único fundamento para esse fim265.

Além disso, a insuficiência do amparo no direito à saúde também é notada quando se constata que a fertilização in vitro não resolve o problema da má formação de trompas, por

exemplo, permanecendo a infertilidade do paciente266.

Como visto, o desenvolvimento das técnicas de reprodução humana assistida constitui- se em um dos principais marcos dos avanços da aérea médica. Todavia, os fundamentos pelos quais as técnicas são desenvolvidas e, especialmente, são adotadas pelo Poder Público como uma de suas prestações positivas, devem ser analisadas para além do ponto de vista biológico. Ou seja, a infertilidade se apresenta sob outros aspectos desprezados, reproduzindo concepções e práticas vinculadas às concepções biológicas da infertilidade. Nesse sentido, é o desejo frustrado de ter filhos que deve, por si só, ingressar no âmbito de consideração das discussões. À vista disso, Marilena Corrêa aduz que:

264 Nesse prisma, destaca Calos Lema Añón que o desejo imediato de ter descendência, mesmo em caso de pessoas

com saúde reprodutiva, pode ser enquadrado em um caso de esterilidade, na medida em que se transforma em uma questão médica e técnica. AÑÓN, Carlos Lema. Reprodución, Poder y Derecho: ensayo filosófico – jurídico sobre las técnicas de reprodución assistida. Madri: Trotta, 1999, p. 297.

265 Ibidem, p. 291. 266 Ibidem, p. 290.

Assim, só quando se deseja ter filhos é que sua ausência torna-se uma questão. Este desejo independe de infertilidade; não surge apenas em mulheres casadas ou em união estável, como propõe grande parte dos protocolos clínicos. Pessoas com ou sem problemas médicos reprodutivos, celibatárias, mulheres e homens solteiros, com ou sem parceiros, heterossexuais, homossexuais, transexuais podem ter este desejo, caracterizando uma ausência involuntária de filhos. A partir daí, estas pessoas ou casais podem buscar no acesso às tecnologias biomédicas a realização de seus sonhos reprodutivos267.

Por tudo isso, os limites entre tratamento da saúde e modo alternativo de reprodução

(que seria o caso do casal homossexual) não são tão claros268, necessitando recorrer a

fundamentações jurídicas e bioéticas para a justificar o acesso por parte do casais homossexuais e psicologicamente inférteis.

Vale lembrar que o Conselho Federal de Medicina autoriza, por meio da Resolução nº 2013/2013 (2, II), a atualização das técnicas de reprodução humana assistida por parte dos casais homossexuais. Mas o problema, é que isso, por si só, não basta para que o Estado elabore um programa adequado para atender aos casais homossexuais pelo SUS.

Dessa forma, na linha dos ensinamentos tecidos por Jaylla Maruza de Souza e Silva, “(...) o reconhecimento destes direitos (sexuais/saúde) às mulheres, gays e lésbicas, através de um serviço público eficiente, é de suma importância para a concretização da democracia

(contanto que protegidas sua liberdade e autonomia), e ter efetivada sua dignidade269”.

Ana Lúcia Tiziano Sequeira assenta que, mesmo em um Estado Democrático de Direito, os espaços públicos brasileiros sofrem constantes pressões de grupos religiosos que buscam impor suas crenças. Nesse cenário, os direitos sexuais e reprodutivos são visados de forma permanente por bancadas religiosas, que impõem seu conservadorismo moral e religioso na elaboração, aplicação das leis, bem como na formulação e execução de políticas públicas. Com efeito, “políticas de saúde na área da reprodução humana podem reforçar normas de gênero e reproduzir modelos tradicionais de formação de famílias biparentais e de matriz heterossexual,

restringir direitos individuais e levar à perpetuação de desigualdades sociais270”. Complementa

a autora que o Ministério da Saúde ignorou o debate nacional e internacional a respeito da ampliação do leque de pessoas que poderiam ser beneficiadas pelos Programas estatais, ao

267 CORRÊA, Marilena C.D.V. A tecnologia a serviço de um sonho: um estudo sobre a reprodução assistida no

Brasil. [tese de doutorado] Instituto de Medicina Social, Rio de Janeiro, 1997.

268 AÑÓN, Carlos Lema. Reprodución, Poder y Derecho: ensayo filosófico–jurídico sobre las técnicas de

reprodución assistida. Madri: Trotta, 1999, p. 292.

269 SILVA. Jaylla Maruza Rodrigues de Souza e. Reprodução Humana Assistida entre mulheres homossexuais.

(Mestrado em relações sociais e novos direitos). Faculdade de Direito. Universidade Federal da Bahia, 2011.

270 SEQUEIRA, Ana Lúcia Tiziano. Potencialidades e limites para o desenvolvimento de uma política de atenção em reprodução humana assistida no SUS. Tese de doutorado. Pós-graduação em Saúde da Criança e

delimitar o acesso a pessoa com causas medicamente definidas, como é o exemplo dos

homossexuais271.