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Família contemporânea: o processo de construção de um novo padrão de

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CAPÍTULO II – ESTADO BRASILEIRO E A POLÍTICA SOCIAL COM

2.1 A centralidade da família na política social: concepção e novos desenhos da família

2.1.1 Família contemporânea: o processo de construção de um novo padrão de

dos primórdios dos séculos XVIII e IX, aos dias atuais, com destaque para a entrada da mulher no mercado de trabalho e para as mudanças produzidas no contexto socioeconômico e histórico-cultural.

2.1.1 Família contemporânea: o processo de construção de um novo padrão de sociabilidade

A partir do final do século XIX, o modelo de família construído em bases burguesas, tornou-se a forma mais evidente de arranjo familiar e se consolidou como um desenho familiar, que se estende até os dias de hoje. Diante das novas exigências do capital, a mulher passou a assumir um novo papel, diferenciado da família monogâmica descrita por Engels (1979), como resultado do processo de apropriação do homem aos bens materiais, dentre eles, a propriedade privada. A família garantiria a transmissão da herança e desses bens materiais, de forma intergeracional.

É possível verificar que, nesse modelo, a constituição familiar é permeada pela questão de gênero, com distinções sobre o papel do homem e da mulher. Baseia-se no predomínio do homem e sua finalidade expressa é a de procriar filhos, cuja paternidade seja indiscutível, pois serão herdeiros diretos, na posse dos bens de seu pai. Quanto à mulher, lhe era designada as atividades do lar e procriação. A casa passou a ser um espaço privado, em que a mãe passou a cuidar de seus filhos, e os filhos passaram a permanecer maior tempo nesse espaço.

Segundo Ariès (2006), ao longo da história, “a família transformou-se profundamente à medida que modificou suas relações internas com a criança” (p.225). Em relação às restrições impostas ao matrimônio, destaca que tem-se reconfigurado, produzindo distintas estruturas familiares. Em algumas situações comuns e recorrentes, como no modelo matrimonial monogâmico, a organização familiar se modificou. Cada uma dessas famílias passou a produzir uma “dinâmica própria” que reproduz estruturas sociais, emocionais e psíquicas influenciadas em cada contexto (ARIÈS, 2006).

Nesse sentido, Poster (1979, apud Legnani, 2009) afirma que o conservadorismo presente no século XX, ainda reproduzido por muitas famílias trabalhadoras, “pode ser atribuído à atração exercida pelo modelo da família burguesa”, em que a classe trabalhadora reconheceu e legitimou a moral burguesa ao adotar sua própria estrutura familiar. A seu ver, a adoção desse modelo evidencia um fenômeno curioso: a transformação da estrutura familiar da classe trabalhadora é um dos aspectos não registrados sobre o êxito político da democracia burguesa (POSTER, 1979, apud LEGNANI, 2009, p. 05). Nesse novo desenho, a mulher se inseriu no mercado, e ampliou sua participação nos diversos meios sociais de trabalho, modificando as relações intrafamiliares (ENGELS, 1979, p. 64).

Dentre as principais mudanças históricas ocorridas na concepção de família, no século XVIII, destacam-se as descritas na obra clássica de Ariès (2006), sobre a visão de família na Idade Média, e em diferentes períodos históricos. Averígua-se alguns princípios que nortearam as transformações ocorridas nas relações internas das famílias no século XVIII, tais como: o surgimento da criança, da concepção de intimidade, e o discernimento da vida pública em relação à vida privada. Para Ariès (2006), essa é uma mudança relevante, pois “a vida privada, era rechaçada na Idade Média”, em que se buscou a “separação entre o cotidiano das famílias e a vida em sociedade”. A seu ver, dentre as mudanças que expressam essa separação, até os dias atuais, encontra-se a “divisão dos cômodos da casa”, caracterizando o início do registro da intimidade das famílias (ARIÈS, 2006, p. 138-191).

Ainda de acordo com Ariès (2006, p. 145-146), a partir do século XIV, têm-se o desenvolvimento da família moderna, em que a mulher perde o direito de substituir o marido ausente, e passa-se a atribuir à família “o valor que outrora se atribuía à linhagem. A família torna-se a célula social, a base dos Estados, o fundamento do poder monárquico”.

No século XIX, com o desenvolvimento das forças produtivas e a consolidação do sistema capitalista, significativas mudanças ocorreram na produção e na reorganização do trabalho feminino. Com o desenvolvimento tecnológico e o intenso crescimento e expansão

do maquinário, boa parte da mão-de-obra feminina foi transferida para as fábricas, que deu origem a uma grande revolução nas relações intra e inter familiares.

Para Ribeiro (2005), o conceito de família contemporânea, é entendido como “aquele em que os papéis, antes rigidamente separados, perdem seu valor”. Considera para efeito dessa compreensão, a existência das “três díades48: mãe/filho, pai/filho e marido/mulher”. Porém, não se trata de uma norma, sendo denominada como:

[...] pessoas que co-habitam com laços de parentesco ou de carinho e aliança, existindo relações entre homem-mulher, homem-homem, mulher-mulher, com a presença ou não de filhos, sendo estes naturais ou adotivos, e relações mãe-filhos e pai-filhos sem esquecer até mesmo daqueles que não co-habitam (RIBEIRO, 2005, p. 15)

É importante ressaltar que a análise do novo desenho da família, na atualidade, deve ser apreendida em uma perspectiva sócio-histórica, que desvela em sua forma e em seu movimento, como também no contexto socioeconômico e cultural em que vive, suas estratégias de organização e reorganização. Essa é uma característica que, segundo Carvalho (2002), referenciado por Afonso & Figueiros, tem exigido mudanças na concepção e na forma estigmatizada de se enxergar a família. Desta forma, destacam que:

esse movimento de organização-reorganização torna visível a convenção de arranjos familiares entre si, bem como reforça a necessidade de se acabar com qualquer estigma sobre as formas familiares diferenciadas [...] precisamos compreendê-la como grupo social cujos movimentos de organização- desorganização-reorganização mantêm estreita relação com o contexto sociocultural (AFONSO & FIGUEIROS, apud CARVALHO, 2002, p. 17).

Notadamente, deve-se compreender que a organização da família não se dá somente pela questão sócio cultural, mas sobretudo, pelas formas de produção, pois, à medida em que se analisam as condições de reprodução social de trabalhadores brasileiros, depara-se com o papel desempenhado pela família nesse processo. Os estudos de Carvalho (1994) e Draibe (1994), entre outros, se reportam “à pauperização de enorme contingente da população brasileira, no meio rural e nas áreas metropolitanas”, fatores que orientaram a reforma das políticas e dos programas sociais, colocando a família como eixo e prioridade das ações governamentais. Segundo Carvalho e Almeida (2003), os fatores que se mostram desfavoráveis à reprodução de unidades de formação de renda e de consumo sobre a realidade

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A díade é um par no qual a individualidade de cada um é eliminada em detrimento da unidade desse par no seio da qual se organizam certos tipos de ligações (http://www.infopedia.pt/$diade)

das famílias brasileiras são as condições econômicas, impulsionadas por baixos salários, carência de serviços públicos, e outros fatores (CARVALHO, ALMEIDA, 2003, p.112).

Nesse sentido, há que se considerar a relação tênue entre os baixos rendimentos do trabalho e a persistência de enormes desigualdades, que se constituem componente dessa realidade. Compartilha-se com a análise feita por Carvalho e Almeida (2003), em relação ao crescimento do desemprego, a inconsistência dos vínculos nas famílias e a redução dos rendimentos em todos os setores de atividade, e na maioria dos níveis sócio-ocupacionais (CARVALHO, ALMEIDA, 2003, p.114).

A percepção que norteia este estudo é a de que a família deve ser compreendida como um grupo social, e como espaço em que ocorrem os movimentos de organização- desorganização-reorganização mantendo-se estreita relação com o contexto sociocultural e com as determinações advindas do modelo econômico em vigência. Este é por certo um debate que vem envolvendo a família no contexto das relações sociais ao longo de séculos.

Nos estudos de Brushini (2000, p. 50), a família é considerada como uma “criação humana mutável” em que pese ser analisada, tanto pelo senso comum, quanto pela reflexão científica. A seu ver o que deve ser considerado são os fatores estruturais que determinaram a composição do grupo conjugal como forma básica e elementar de toda família, e o que motiva a interpretação da percepção do parentesco e da divisão de papéis como fenômenos naturais.

Para Brushini (2000, p. 63) o olhar sobre a família deve primar-se, primeiramente, em conhecer o contexto da família, e reconhecê-la como o “espaço social onde as gerações se defrontam mútua e diretamente, e onde os sexos definem suas diferenças e relações de poder”. Não se pretende aprofundar neste estudo a influência das questões sobre gênero, mas, sim, identificar a prevalência de famílias com um só genitor, chefiadas por mulheres, conforme demonstrou o último estudo sobre o retrato das mulheres chefes de família, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA/2009), e os dados apresentados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), de 2009, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE/2010). Os dados revelam que a proporção de famílias chefiadas por mulheres, no Brasil, subiu de aproximadamente 27% para 35% do total, durante o período de 2001 a 2009 (PNAD/BRASIL, 2009).

Segundo o instituto IPEA (2009), não há um fator ou um indicador definitivo para se afirmar que essas mulheres são reconhecidas como chefes da família, o que pode depender, inclusive do olhar do membro da família que respondeu à pesquisa. No entanto, o Instituto avalia e reconhece a prevalência da atual situação dessas mulheres em âmbito familiar, agora denominadas de pessoa de referência na família.

As mudanças ocorridas no desenho e na constituição das famílias no Brasil podem ser conferidas, ainda, de acordo com os dados do PNAD (2009), ao apontar as tendências mais significativas nas últimas décadas, ou seja, a redução do tamanho da família e do número de casais com filhos. O marco dessas mudanças se deu com a entrada da mulher no cenário público e no mercado de trabalho. Ressalta-se que a mulher, ainda que continue exercendo função dupla do trabalho, transformou-se no principal sujeito e agente responsável pelas mudanças socioculturais e econômicas produzidas pelo espaço da família contemporânea:

A mulher brasileira vem assumindo o papel de provedora. Ela continua sendo a principal responsável pelo cuidado doméstico, mesmo na condição de ocupada, o que não apresentou variações expressivas no período. A proporção de mulheres ocupadas que se dedicavam a afazeres domésticos, em 2007, foi de 89,5% e a de homens, 50,4%. Mais expressiva foi a diferença no número médio de horas trabalhadas em afazeres domésticos. As mulheres ocupadas despediam, em média, 22,2 horas semanais e os homens, 9,6. Sintetizando, a família brasileira está mudando e a mulher é uma das grandes responsáveis por isto. Ela, hoje, está assumindo novos papéis sociais, mas ainda mantêm os tradicionais. (PNAD, 2008, p. 12)

Quanto à inserção da mulher no mercado de trabalho no Brasil, não obstante a objetividade dos dados ainda se percebe acentuadas discrepâncias quanto à igualdade de acesso e de oportunidades. Segundo a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) realizada pelo IBGE, em 2009, a população brasileira chegou a 191,8 milhões de brasileiros, com a estimativa de 51,3% de mulheres, ou seja 98,4 milhões. Ainda segundo os dados do IBGE, de 2009, a População Economicamente Ativa (PEA) brasileira, mostrou que dentre essa população, as mulheres seguem com menor número de inserção no mercado de trabalho (IBGE, 2009).

Considera-se que a participação da mulher no mercado de trabalho e nos diversos segmentos sociais causou “uma grande mudança” no século XX, sendo considerada por Hobsbawm (1995) como “um fenômeno novo e revolucionário”, sobretudo pela presença de mulheres casadas nesse mercado, em geral que se viram carregando o duplo fardo de velhas responsabilidades domésticas e novas responsabilidades no emprego, sem mudanças nas relações entre os sexos, ou nas esferas pública e privada (HOBSBAWM, 1995, p.304).

Nessa perspectiva, como dados do IBGE (2010), tem-se como resultado, o crescimento do número de mulheres como principais provedoras das famílias, em que trinta por cento dos lares brasileiros têm essa conformação econômica, uma tendência que tende a se fortalecer.

O casamento e a família, segundo Hobsbawm (1995), sempre foram influenciados pelas mudanças socioculturais A partir de meados do século XX, evidencia-se uma ligação entre o velho e o novo, representando novos processos na configuração do âmbito familiar. Os elementos delineados na relação família/mulher explicitam a relevância que estes fatos históricos correlacionados com a família se inserem nos ciclos de vida desses sujeitos. Esses ciclos devem ser interpretados levando-se em consideração situações concretas de tempo e de lugar, que certamente tendem a ser produzidas e reproduzidas nas gerações futuras.

Segundo Bruschini (apud Faes 2010), a família tem especial importância como “instância central situada na produção e reprodução de símbolos e normas”, sobretudo na sociedade contemporânea. A seu ver, pode-se observar como a estrutura da organização familiar é vista com base na influência dos “imperativos sociais que sustentam a divisão sexual do trabalho. Cada vez mais, a realidade impulsiona os pais a saírem para o trabalho, desincumbindo a figura feminina da mãe, da criação dos filhos”. Esta é uma tendência que vem se afirmando no limiar do século XX e inicio do século XXI (FAES, 2010, p. 02-03).

Para Faes (2010), torna-se uma condição necessária compreender que as relações e articulações que as famílias realizam na construção de sua sociabilidade, seja no âmbito privado, ou em espaços de convivência social, são tecidas com elementos correspondentes aos “modos de vida que circunstanciaram as determinações recíprocas que lhes ofereceram sentido na história vivida” (2010, p. 3).

Entende-se que os papéis e as relações sociais de natureza familiar sempre produziram e continuam produzindo, por meio de práticas e símbolos que recebem o sentido de legitimidade da cultura, os modos de vida baseados na experiência humana, que têm múltiplas dimensões, ou seja, social, histórica e, portanto cultural. Atualmente, nas famílias contemporâneas, tanto para o homem quanto para a mulher, analisados sob o enfoque da teoria marxiana, Bruschini (2000) aponta as competências que o capital atribui ao homem e à mulher, ou seja,

a família seria um grupo social voltado para a reprodução da força de trabalho, no qual os membros do sexo feminino se encarregariam da produção de valores de uso na esfera privada, cabendo aos homens a produção de valores de troca, através da venda da sua força de trabalho no mercado. (BRUSCHINI, 2000, p. 59)

Neste sentido, a seu ver, para repensar a instituição família, torna-se necessário ter o olhar voltado para o processo de naturalização da família, e como se delineia o comportamento de um determinado grupo conjugal. Esse grupo seria visto como uma forma

básica e elementar para a constituição da família, sendo identificada a interpretação da percepção do parentesco e da divisão de papéis como fenômenos naturais. Nesses termos, a autora enfatiza que a família é uma “criação humana mutável” e, portanto, passível de influências e contínuas mudanças (BRUSCHINI, 2000, p. 50).

Os elementos referentes à constituição das famílias analisadas nesta dissertação, constituem-se e privilegiam, como recorte do objeto, o contexto da situação de adoecimento nas famílias, cujo membro é portador de Doença Renal Crônica (DRC), em virtude do processo a que essa família é submetida, frente ao tratamento da doença. Entende-se que esse é um contexto que afeta não só o paciente portador da doença, mas, inclusive, toda a família.

Sabe-se que a família, como instância que possibilita a construção da sociabilidade do sujeito, em situação de adoecimento, enfrenta grandes modificações, que afetam sobremaneira sua vida e a de sua família. Essas modificações podem ocorrer tanto em sua estrutura funcional, física, emocional, como econômica e social, gerando a necessidade de se buscar nos serviços e equipamentos do Estado, bem como sua proteção e a de seus membros.

Com base nessa constatação, a família necessita se reorganizar e também se adaptar, por meio dos novos papéis e funções, que lhe são atribuídos mediante o adoecimento. A seguir, a forma e o aparato legal, utilizados por familiares e pela instituição hospitalar que realiza os procedimentos e tratamentos dos pacientes DRC em Goiânia, serão analisados tomando como referência o princípio da matricialidade, instituído pelo Estado brasileiro como um dos eixos estruturantes da implantação do SUAS, em 2005.

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