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Família, espaço de apoio, vínculo e resistência

7.2 Desafios ao cuidado das mulheres lésbicas na ESF

7.2.1 Família, espaço de apoio, vínculo e resistência

Essa categoria temática encontrada no estudo, como elemento surpresa, possibilita uma aposta estratégica nas diversas formas de atuação familiar para proteger seus membros, inclusive romper com normas cristalizadas na sociedade, reinventando-se e se moldando para manter o vínculo afetivo.

A família enquanto primeiro grupo social ao qual o indivíduo se sente pertencente tem papel decisivo na construção da sexualidade, conforme descrito em um capítulo anterior.

Pode-se perceber, através dos relatos das participantes, que o apoio da família é um fator fundamental para assumir-se uma sexualidade diferente da norma vigente e também para sentir- se segura diante das discriminações sociais.

A minha mãe aceitou de boas, quando eu falei para ela, ela não falou nada, até porque foi a minha escolha. Ela viu que eu era bem mais feliz com isso (Verde clara, 18 a 29 anos).

Eu comecei a me aceitar a partir do momento que minha mãe me aceitou... Ela queria que eu dissesse para ela para que ela pudesse me defender, se alguém falasse alguma coisa. E para ela não haveria preconceito porque ela já tinha um filho gay e que ela seria minha mãe de qualquer forma (Amarela clara, 18 a 29 anos).

Todas as minhas namoradas, a minha mãe e o meu pai gostaram. Sempre aceitaram. Até porque eu tenho mais duas irmãs que também são lésbicas (Verde escura, 18 a 29 anos).

Eu tenho um sobrinho gay que se revelou primeiro do que eu. Minha família o apóia, assim também me apóia. Minha mãe sempre nos apoiou. Nunca criticou. Eu sempre soube que eu era lésbica, nunca me deitei com homem. Penso assim, se a família criticar, o povo da rua também vai criticar e se a família aceita, o povo da rua também tem que aceitar... Quando eu me revelei mesmo total, achei gratificante, porque ninguém chega a minha cara e aponta o dedo não. Assim me descobri para a comunidade também (Cinza, 18 a 29 anos).

Esse reconhecimento por parte dos familiares demonstra ser de suma importância. Para Toledo (2013) é na família que a pessoa passa a se sentir autêntica e existente, por meio do reconhecimento de um membro que lhe seja importante: “a necessidade de aceitação e reconhecimento por parte da família está totalmente aderida aos modos de subjetivação dos sujeitos e o vínculo idealizado como estruturador da família moderna é um vínculo afetivo de amor” (TOLEDO, 2013, p. 381).

Nesse momento da pesquisa, as revelações trazem à tona um apoio familiar que enfrenta a heteronormatividade compulsória e que rompe com as pré-determinações da sociedade em prol do bem estar e da felicidade dos membros da família.

É importante ressaltar que a fala da participante Verde Clara, ao usar a palavra “escolha” referindo-se à sua sexualidade deixa transparecer as marcas da heteronormatividade que para Toledo (2013) é endossada pelo termo opção sexual.

As falas das quatro participantes descreveram que elas tiveram o apoio de suas famílias ao se assumirem lésbicas e que relacionaram esse apoio ao fato de já existirem familiares gays ou lésbicas. Fica implícito que familiares que já passaram por essa experiência ficam mais flexíveis a aceitar outras vindouras.

Para Bento (2017), o início desse século trouxe mudanças nas concepções de famílias motivadas por fatores como a hesitação da heterossexualidade enquanto única

possibilidade de vivenciar a sexualidade, a despatologização das homossexualidades e a conquista de direitos civis pela comunidade LGBT. Essas transformações implicam em “novas famílias” que abrangem uma pluralidade de arranjos afetivos ou uma multiplicidade de famílias. Para Carnut e Faquim (2014) a família tem sido objeto das políticas públicas do Estado, para tanto, destacam alguns programas como o Bolsa Família, Programa Universidade para Todos e Minha Casa Minha Vida. Essas interferências do Estado em forma de políticas sociais promovem alterações nas relações familiares, por exemplo, o fato de a conta do Bolsa Família ser no nome da mulher implica em reconhecer a mulher como chefe do lar. Ainda que isso acarrete em mais responsabilização da mulher como provedora, “rainha do lar”, reforçando para ela a tarefa de pessoa que cuida da família, não se pode deixar de destacar que esses programas contribuem para o empoderamento de mulheres pobres.

Trabalhar na ESF pode promover a compreensão pormenorizada dessas mudanças e suas reverberações no campo da saúde, visto que esses novos arranjos familiares são parte do cotidiano dos CSF. Para isso, é crucial desromantizar a família e entendê-la como espaço de apoio à sobrevivência e proteção de seus membros, mas também como possível gerador de riscos à saúde, espaço de conflito e de reconciliação, em que se aprende a conviver e se relacionar (CARNUT; FAQUIM, 2014).

Um dos pilares do trabalho da ESF é a atenção à família. O fato de a equipe de saúde adentrar a casa das pessoas torna essa equipe mais próxima das famílias e retira o ar de frieza do profissional da saúde. E a equipe, enquanto instância estatal, passa a ser vista como um elemento integrante de uma rede de cuidado composta a partir de valores familiares como confiança e autoridade (CHAPADEIRO, 2011).

Desse modo, os profissionais da ESF possuem conhecimento e imagem valorizados pelas pessoas, o que impacta diretamente na identificação de problemas, ou seja, na compreensão das problemáticas sociais: “fenômenos condicionados por processos estruturais mais profundos que envolvem a vida em sociedade e impactam negativamente nesse grupo social que chamamos família” (CHAPADEIRO, 2011, p. 35).

Ao conhecerem as famílias, na teoria e na prática, como espaços de vínculos e afetos, mas também de conflitos e violências, cabe aos profissionais atuar de forma aberta, compreensiva, sem julgamentos morais ou preconceitos, visto que precisarão ter habilidades para mediar conflitos familiares.

Para Chapadeiro (2011, p.36), “A identificação de fatores de risco, situações de violências e vulnerabilidades e potencialidades das famílias pode ser desencadeador de capacitação das mesmas para enfrentamento dessas situações”.

Assim, a interação entre profissional de saúde e família é uma potente estratégia de cuidado para a luta contra as iniquidades, principalmente no tocante à mulher lésbica, para a qual a violência começa em casa.