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Segundo Paniagua (2008), a percepção da criança com deficiência no ambiente familiar sempre esteve marcada pelo estigma. Até o começo do século XX havia um consenso segundo o qual as causas do nascimento de uma criança com deficiência eram derivadas do comportamento imoral de seus familiares. A criança com deficiência era então herdeira de um estigma familiar e trazia no próprio corpo as marcas daquela degeneração moral. Às famílias cabia a culpa e a vergonha por ter de carregar tal fardo, sendo a própria criança a prova de uma suposta degeneração moral.

Nas sociedades ocidentais modernas ainda persistem ideias que associam o nascimento de uma criança com deficiência a um desajuste familiar. Nesse sentido, os preconceitos dirigidos à criança e à sua família, registrados até o início do séc. XX, ainda conservam as marcas da exclusão e de uma representação de deficiência acopladas à doença (PANIAGUA, 2008). É possível então perceber na abordagem que se dispensava à criança com deficiência, assim como à sua família, um caráter patológico e estigmatizante. O entendimento que se tinha era o de que

Todo o mal que acontece à família – desavenças matrimoniais, rusgas entre irmãos, conflitos com os parentes – deve-se à tensão gerada pela deficiência. Tal concepção ignora a quantidade de variáveis em influem em uma família, a diversidade das fontes de tensão: econômicas, relacionais, comunicativas, de saúde e de personalidade de cada um de seus membros, em que a deficiência de um filho não deixa de ser uma variável a mais. (PANIAGUA, 2008, p. 332)

O modelo patológico, portanto, se inscreve dentro de uma perspectiva exclusivamente médica do tema e ignora a dimensão sócio-histórica que constitui o cerne do problema da família e da criança com deficiência. Essa dimensão nos remete aos diferentes sistemas socioculturais que configuram as famílias, assim como aos vários contextos em que as crianças podem se desenvolver, como por exemplo, as comunidades nas quais se forma uma rede comunitária de apoio envolvendo amigos e parentes nos cuidados com a infância, assim como as instituições de apoio às crianças de rua.

Numa perspectiva mais ampla, o modelo sócio-histórico de compreensão da problemática da criança com deficiência e da família aponta para a necessidade de se pensar em ambos a partir do momento histórico e da atmosfera cultural em que elas se encontram. Nesta perspectiva, não há uma família naturalizada nas figuras do pai, da mãe e dos filhos. A própria criança não pode ser definida a partir de uma essência que justifique intervenções universalmente válidas e aplicáveis independentemente do contexto (ARIÈS, 1981). Em se tratando de crianças com deficiência se faz necessário de fato ampliar o espectro de compreensão das questões que envolvem o tema. Não é mais possível enquadrá-la numa posição patologizante.

No caso da família, o modelo sócio-histórico possibilita compreendê-la em termos de diversidade e, não apenas, enquanto fenômeno universalmente estruturado. No Brasil, por exemplo, a diversidade étnico-cultural formada pela mistura de imigrantes europeus, escravos africanos e povos nativos impõem diferenças de estruturas, costumes e tradições os quais evidenciam que não há no país um único modelo de organização familiar, como o que está implícito no modelo médico (NEDER, 2004). Assim, no Brasil é possível se pensar em famílias que se organizam de acordo com o espaço social e a atmosfera cultural em que as mesmas se desenvolveram, de modo a proporcionar aos seus membros contextos diversos para o desenvolvimento de suas habilidades e possibilidades de interação, todos confluindo para a formação de indivíduos com identidades intimamente enraizadas no seu contexto de

4.3.1 As Reações ao Filho Nascido com Deficiência

No que se refere às reações ao nascimento de uma criança com deficiência é possível perceber que ao ensaio de abertura e acolhida da sociedade contemporânea se contrapõem, por parte de familiares e em especial das mães, uma atitude de reserva, desconfiança, frustração e até mesmo negação da criança com deficiência recém-nascida (BRUNHARA; PETEAN, 1999).

Neste sentido, os estudos Brunhara e Petean (1999) identificaram sentimentos de negação, tristeza, resignação e revolta por parte de mães frente à notícia de que seus filhos nasceram com algum tipo de deficiência. Esses estudos concluíram que tais reações são permeadas por tentativas de se encontrar ou mesmo construir explicações e justificativas para a deficiência do filho. Desse estudo é possível afirmar, junto com Moscovici (2010), que o modo como os pais da criança com deficiência significam (explicam, justificam) para si a deficiência que acompanha o nascimento de seu filho implica numa atitude relacional correspondente para com esta criança. É neste sentido, portanto, que a compreensão da função e estrutura de tais significados se torna factível por meio da Teoria das Representações Sociais, a qual pode fornecer subsídios importantes para as discussões a respeito da relação mãe-bebê.

Ainda a respeito das reações ao filho com deficiência, Paniagua (2008) alerta para fato de que a compreensão de que um filho tem uma deficiência requer que os familiares não se fixem ao mero reconhecimento dos fatos. A aceitação desta realidade, muitas vezes inesperada, requer um tempo para se consolidar e em algumas situações ela nem mesmo chega a acontecer. Paniagua afirma que

As etapas que os pais trilham até a aceitação da deficiência do filho são muito similares às do luto. Há sempre um sentimento de perda quando se tem um filho com deficiência: os pais tem de renunciar à expectativa que todo pai alimenta de ter um filho sem nenhuma dificuldade, inclusive um filho ideal e perfeito (PANIAGUA, 2008, p. 334).

Naqueles casos em que um acidente ou uma doença atinge uma criança em seu curso de desenvolvimento “normal”, inflingindo-lhe algum tipo de deficiência, o sentimento de perda que os pais enfrentam não se deve apenas a uma representação idealizada do filho, mas a perdas de capacidades reais. Neste caso, os pais enfrentam um duplo desafio de elaboração de perdas reais e perdas idealizadas (PANIAGUA, 2008). Real ou imaginário, o sentimento de perda que acompanha o nascimento de uma criança com deficiência passa por

fases bastante semelhantes as que se atravessa no luto real. Segundo Paniagua (2008), da constatação da deficiência até a aceitação, as reações se manifestam nas seguintes fases:

1. Fase de choque: no momento da constatação de que o filho tem algum tipo de

deficiência, há um bloqueio, um atordoamento geral que pode comprometer a compreensão da mensagem que está sendo passada; esse choque pode durar de alguns minutos até vários dias;

2. Fase da negação: neste segundo momento as reações dos pais passam por ignorar

ou esquecer que o problema existe; os pais levam o dia-a-dia como se nada tivesse acontecido e chegam mesmo a confrontar e questionar a capacidade do diagnóstico. Esta fase é de particular interesse para os objetivos desta pesquisa e será retomada mais adiante;

3. Fase de reação: nesta fase os pais experimentam emoções e sentimentos os mais

diversos; parece se instalar uma certa confusão e desorientação, mas apesar do aparente desajuste, este momento se faz importante porque constitui os primeiros passos em direção a uma adaptação menos ansiosa e mais realista; os sentimentos mais comuns neste momento de reação são:

a. Irritação: a agressividade, a raiva e os estados de ânimo difusos voltam-se

para os supostos culpados (médicos, familiares portadores de alguma doença, um castigo divino, etc.);

b. Culpa: a frustração originária da quebra do sonho de se ter um filho

perfeito é muitas vezes direcionada para si mesmo, resultando em sentimentos de culpa, o que leva muitos pais a buscarem nos supostos erros médicos ou descuidos durante a gravidez as causas de seus tormentos;

c. Depressão: por mais paradoxal que pareça, esta fase, caracterizada por

profunda tristeza e solidão, pode se desenvolver como um passo fundamental para que os pais redimensionem e compreendam melhor as reais dificuldades pelas quais estão passando. No entanto, na sociedade ocidental, a expressão de sentimentos de tristeza é pouco valorizada, chegando-se mesmo a se colocar a alegria e felicidade como únicos objetivos válidos para a vida. Nesse aspecto, o modelo de sociedade adotado no ocidente, com suas metas de permanente satisfação, deixa

pouco espaço para a expressão de experiências humanas vitais em momentos de dificuldade.

4. Fase de adaptação e de orientação: após ter vivenciado as situações acima

descritas, a maioria dos pais chega a um nível de tranquilidade emocional que lhes permite avançar no sentido de um engajamento mais realista na problemática dos filhos; há uma conscientização mais profunda do que se passa e se começa a pensar em estratégias efetivas de enfrentamento das dificuldades (PANIAGUA, 2008).

Essas fases, contudo, não são retratos estáticos do processo pelo qual os familiares de uma criança com deficiência passam. Este processo não é linear e nem se manifesta com a mesma variação de tempo, mas apresenta nuances diferenciadas a depender das características das famílias, assim como de outros fatores que incidam sobre a dinâmica e a configuração familiar, tais como o contexto cultural e o modelo de sociedade vigente.

Os significados que os familiares, em especial as mães, dão para si mesmas acerca do filho com deficiência estão imbuídos dos valores e concepções de maternidade e filho ideal presentes no contexto social e cultural em que vivem. Numa sociedade como a nossa, em que a busca pela perfeição, a competição e a eficiência são valores fundamentais, o nascimento de uma criança com deficiência entra em rota de colisão com esses valores, fazendo do cenário familiar a arena ideal para a emergência e expressão desse conflito.

No que diz respeito às vivências psicossociais da maternidade enquanto construção sócio-histórica ainda cercada pelo mito da mãe natural e incondicionalmente devotada e carinhosa para com a sua descendência (BADINTER 1985; COUTINHO e MENANDRO, 2009), o pressuposto de um filho igualmente ideal que advém desse mito, mas que por vezes não se confirma, como no caso do nascimento de um bebê com algum tipo de deficiência, coloca em questão para essa mulher-mãe os significados que a maternidade assume antes e depois do nascimento do bebê. Como explicitado acima, as reações de choque e, sobretudo, de negação pelas quais os familiares e as mães de crianças com deficiência passam, colocam em evidência a problemática do impacto que esse filho provoca nas representações da maternidade. Neste sentido é pertinente se pensar a criança sem deficiência como condição de sucesso na relação ideal entre mãe e filho.

No caso da deficiência os impedimentos que dela decorrem fazem com que as mães se sintam fracassadas e culpadas, recaindo sobre elas, muitas vezes, toda a responsabilidade pela

criança. Surgem as rejeições da própria mãe e dos demais membros das famílias. Crises diversas e confusão se instalam no ambiente familiar, sobretudo, em uma sociedade com o discurso inclusivista como situamos a partir deste ponto.