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«A arte é magia […]»117 José de Guimarães

«A qualidade das obras artísticas depende essencialmente do seu grau de feiticismo, da veneração que o processo de produção professa por aquilo que por si mesmo se faz, pela seriedade que aí esquece o seu prazer.»118

Theodor W. Adorno

«Entre 1970 e 1974, realizei algumas centenas de obras que hoje considero muito importantes no meu percurso artístico e que estiveram na origem e raiz de tudo o que faço hoje. Isto é, comecei a pintar e a realizar uma arte que não era mais a arte dum pintor europeu nem a arte dum pintor africano, mas uma arte miscigenada das duas culturas.»119

José de Guimarães

«Esses primeiros sinais foram como que processos aparentemente inofensivos que utilizei como autênticos manifestos, autênticos actos de subversão […]. Deste modo o meu discurso de sinais gráficos e ideográficos é um discurso […] de actuação política e social […]»120

José de Guimarães

117

GUIMARÃES, José - Arte Perturbardora! Manifesto aos pintores inconformistas. Luanda, 1968.

118 ADORNO, Theodor W. - Experiência e criação artística. Lisboa: Edições 70, 2003, pp. 133-134. 119 GUIMARÃES, José - Exposição de pintura: Em busca do mito. Lisboa: Ed. Instituto Cultural de

Macau, p. 30.

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Jornal da Exposição: José de Guimarães - Entrevista a José de Guimarães por Fátima Lambert Alves de Sá em Março de 1992. Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação de Serralves.

Introdução

Na fase africana de José de Guimarães incluiremos as obras criadas entre 1971 e 1973121, período durante o qual o artista esteve em Angola, que, como já foi referido, reflectem a absorção da linguagem simbólica do povo de Cabinda e a concomitante transmutação do anterior estilo Pop numa síntese desse modernismo com a estética africana. Nascerá então o seu alfabeto de signos, composto por 132 figuras, as quais se oferecem combinadas ao espectador esperando a decifração da mensagem escondida, que José de Guimarães utilizará na sua subsequente carreira, em todos as obras que produziu. Nesse sentido, quase se poderia afirmar que a fase africana ainda não terminou, nem terminará enquanto o artista continuar a plasmar tais signos em seus trabalhos. Todavia, entendemos que existem diferenças estéticas e simbólicas consideráveis nos denominados períodos mexicano e asiático para os considerar autónomos (mas não independentes) daquilo que consideramos a Fase Africana.

Aos supraditos trabalhos de escultura e pintura, por terem sido criados durante, e como protesto contra, o conflito colonial, chamaremos obras de guerra. Como já mencionado, as esculturas de madeira assentes numa base preta, com dimensões máximas de 142 cm x 53.5 cm x 29 cm (Fetiche com pregos) e mínimas de 35 cm x 34 cm x 12 cm (Alfabeto de símbolos - Pé de três dedos), aprisionadas em formas estáticas e rígidas, onde os tons verde e vermelho e a cor negra simbolizam, respectivamente, o colonizador e o colonizado, representam, por vezes buscando o efeito tétrico, o sofrimento causado pela guerra e pelo colonialismo, mas também se volvem fetiches mágicos e idealizam ainda a miscigenação dos povos e das culturas. Por sua vez, as pinturas, cujas dimensões não ultrapassam 200 cm x 149 cm (Máscara Fetiche) ou se reduzem a menos de 37. 5 cm x 28 cm (Sem título), prosseguem as mesmas temáticas, transpondo da realidade tridimensional para a bidimensional a figura de protesto e padecimento com a língua solta que se torna omnipresente nestas composições; estas telas estão saturadas de elementos pictóricos multicoloridos - entre os quais setas e números - cujos contornos são definidos por linhas negras, bandas Pop que as

atravessam na diagonal ou as dividem em três partes, num horror ao vazio que provê a tela de informação iconográfica e exacerba o dramatismo pretendido. Dir-se-ia pois que se por um lado estas obras de guerra manifestam uma inequívoca intervenção política, por outro já anunciam o futuro programa e percurso do artista: a apologia do encontro dos povos e das culturas.

Pela sua aura mágica de fetiche escapado das telas, criaturas investidas de um sortilégio pícaro que nos transmite um sentimento ambíguo de veneração - os ilustres personagens da História de Portugal e os grandes pintores - e gozo infantil - os rostos e os corpos burlescos - as esculturas bidimensionais feitas em pasta de papel que José de Guimarães cria entre 1982 e 1989, donas de corpos elásticos e graciosos, onde D. Sebastião atinge a dimensão máxima de 300 cm x 150 cm e Automóvel a mínima de 35 cm x 40 cm, também serão englobadas no capítulo da fase africana nesta tese. E como entendemos que este ciclo destas esculturas representa uma ousada inovação formal, a qual, pela combinação de pintura e escultura, constitui ela própria um exemplo de mestiçagem, assim como pela transgressão de regras e limites, contém o gérmen do desenvolvimento de obras futuras como as caixas-relicário, os grandes caixotes decorados e a escultura pública, constituindo um dos períodos mais importantes da afirmação internacional de José de Guimarães, ou o início122 desse grande salto, dar-lhes-emos grande destaque. Fá-lo-emos ainda pelo assumir do nosso gosto pessoal e por sentirmos - da conversa com galeristas e críticos - que passados mais de vinte anos continuam a merecer a preferência de grande parte do público.

Por se inspirarem nos Totens, Fetiches e demais esculturas mágicas africanas, analisaremos ainda certas pinturas criadas entre 1989 e 1992, estas dando um grande salto na escala anterior para atingirem dimensões que chegam aos 300 cm x 200 cm ( O Grande Fetiche Vermelho), onde a antropomorfia e a zoomorfia podem coabitar em remate fálico, o dripping característico da posterior Fase Mexicana já começa a escorrer, e materiais arenosos são adicionados às tintas para formar texturas e modelar a

122 Esta afirmação tem em conta aquilo que afirmamos anteriormente a propósito das exposições de José

de Guimarães na Bélgica, inspiradas na vida e obra de Rubens. Sendo indiscutível tal sucesso, tratou-se de um fenómeno circunscrito a esse país.

superfície das telas, nas quais sobressai a força bruta e sentido mágico da arte primitiva que nos remete, para além da estética africana, para a própria figuração paleolítica. Por fim, consideraremos como pertencentes a supradita fase as caixas-relicários iniciadas em 1992, cuja dimensão da obra Troféus - 89 cm x 64 cm x 12 cm - se poderá considerar uma amostra da média geral, que com a sua amálgama de fragmentos de materiais diversos e títulos por vezes evocativos da História de Portugal dialogam, de novo de forma ambígua - cerzindo a gravidade e a zombetearia -, com o culto católico das relíquias dos santos, as práticas de feitiçaria africana, e acontecimentos importantes da nossa História. Existindo, como já referido, alguns pontos de contacto entre os relicários de Guimarães e as acumulações de objectos de Arman, porém, enquanto o artista francês se centra no presente e na sociedade tecnológica, elevando produtos rejeitados à categoria de arte, o português pretende dotar as suas caixas de poderes mágicos semelhantes ao dos fetiches africanos e aos relicários católicos, e remete-nos para o passado com títulos alusivos a momentos importantes da História de Portugal. Assim, com estas obras, José de Guimarães, estando aparentemente próximo do Novo Realismo na forma, dele totalmente diverge no conteúdo prosseguindo a fusão da cultura europeia com a africana.

Deste modo, pela diversidade de obras e pelo espaço temporal abarcado, e, sobretudo, por se tratar da matriz das duas seguintes fases tratadas nesta tese, caberá à Fase Africana um desenvolvimento superior ao das outras.

1 – A arte de sinais dos Ngoio

José de Guimarães toma contacto com África em 1967 prestando uma comissão de serviço militar em Angola. Em Luanda participa em várias exposições, sendo contemplado com dois primeiros prémios: o de Gravura do Salão de Arte Moderna da Cidade de Luanda e o de Gravura da Universidade de Luanda. A descoberta da arte negra desperta-lhe grande curiosidade, impelindo-o a estudar a etnografia africana. Para tal, socorre-se da bibliografia disponível, contacta antropólogos especialistas nas

culturas locais e estabelece relações com as tribos do interior. Em Cabinda123, conhece os Ngoio, povo de etnia Banta124. Assiste então às práticas e aos costumes autóctones, entre os quais cerimónias de iniciação na idade adulta, julgamentos segundo as leis tradicionais, casamentos e funerais, tomando consciência das abissais diferenças entre os modos de vida africano e europeu.

Para um Ngoio (assim como a maioria dos africanos), a realidade física e a dimensão espiritual - a vida e a crença, a matéria e o espírito, o presente, o passado e o futuro - cruzam-se, complementam-se, quase não se distinguem. A existência de um ser supremo criador não é deduzida mediante reflexões filosóficas ou demonstrações lógicas. De semelhantes argumentos comuns ao pensamento ocidental não necessitam os Ngoio pois a simples contemplação do céu e das estrelas, do poder do Sol, dos ventos e da chuva, das montanhas, dos mares, dos rios, da existência de seres humanos, de animais, plantas e de todas as maravilhas da natureza bastam para intuir a existência de um ente criador. E, a função de todas estas coisas e todos estes seres é, nas suas acções e inter-relações, participar de uma comunhão superior com esse criador. Assim, ao homem, compete viver em harmonia com a natureza, não procurando dominá-la ou transformá-la em seu benefício imitando o homem ocidental, mas seguir-lhe os ritmos para a ela se assemelhar. Por isso, mesmo necessitando de lhe retirar os frutos indispensáveis à sobrevivência, deve fazê-lo com uma atitude respeitosa - chegando por

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Actualmente Cabinda forma um enclave situdado na costa ocidental de África com uma superfície de 7500km2, separado de Angola pelo rio Zaire e por uma faixa de território pertencente á Republica Democrática do Zaire. O território apresenta um contraste entre a zona costeira plana e a zona do interior atravessada pela Cordilheira do Maiombe ou Cordilheira Congolesa, sendo atravessado pelos rios Lucola, Lulongo, Chiloango, Fubo, Massabi, Luali, Luango, Loema e Lukula. O clima de Cabinda divide- se em duas estações: a grande estação seca ou cacimbo, entre Maio e Outubro, seguindo-se depois a grande estação do calor e da chuva nos meses seguintes (com um breve período seco entre Janeiro e Fevereiro). A origem do termo Cabinda surge, durante a viagem do navegador Rui de Sousa para o Congo, da aglutinação dos termos Mafuka (o responsável local pelo comércio com os estrangeiros) e Binda (o seu nome próprio) - cf. MADUREIRA, António Dias - Cabinda: de Chinfuma a Simulanbuco. Tese de Mestrado em História Ibero-Americana, Universidade Portucalense, 1997, pp. 11-18.

124 De acordo com as tradições locais, a terra de Cabinda foi invadida por nativos vindos do interior, de

etnia Bantú, que se digladiaram com os autoctónes, tendo resultado dessa sucessão de lutas a formação de novos grupos étnicos, entres os quais os Ngoio. O padre Joaquim Martins refere-se ao seguintes povos: Bakongo, Baioio, Balinge, Bavili, Basundi, Baluangu - cf. MARTINS, Joaquim - Simbologia Cabinda:

símbolos e provérbios. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, 1968, p. 13; FRANQUE, Domingos

José - Nós, os Cabinda: história, leis, usos e costumes dos povos N‟goio. Lisboa: Argo, 1940, pp. 17, 33- 35.

vezes a efectuar rituais destinados a apaziguar o espírito do animal que caçou- por saber serem todos os seres vivos dotados de uma alma ou força vital.

Assim, como a terra-mãe é considerada «como uma divindade cósmica, materna e fecundante […]»125

, e o reino animal, vegetal e mineral possuem uma existência espiritual, nele se albergando forças sobrenaturais. Deste modo, alguns animais, pelo espírito que albergam, podem ser erigidos em forças protectoras - Totens -, estando a tribo ou a família que dele dependem impedida de comer a sua carne; determinados bosques são considerados sagrados, neles se reunindo os homens para invocarem as graças dos espíritos e realizarem ritos de passagem por eles exigidos, como a circuncisão; e, a quando do parto, com o intuito da criança nascer saudável e ser tocada pelos espíritos, as mulheres podem escolher dar à luz deitadas à sombra de uma árvore onde se reconhece esconder-se uma força sobrenatural126.

Porém, apesar da importância concedida aos espíritos dos familiares nem todos os mortos conseguem atingir o estádio superior na hierarquia dos espíritos - o Mane - por, além de culpas próprias, terem sido esquecidos pelos seus parentes. Nesse caso, o espírito olvidado como que deixa de existir, pela quebra dos laços com a família que o renegou, perdendo praticamente a influência sobre os vivos. Atingir a posição de Mane implica superar uma sucessão de provas por parte do espírito, das quais também são responsáveis os seus familiares. Ou seja, estes devem cuidar durante muitos anos da sua campa, cobrindo-a de objectos que lhe pertenceram, ofertando vinho de palma e comida, regando o solo, como ritual de purificação do corpo em decomposição lançado à terra. Então, tendo permanecido na memória dos vivos, sido honrado com ofertas e - condição determinante - tido uma boa conduta na anterior existência, cumprindo portanto as leis e as tradições, o espírito sobrevive à diminuição do ser imposta pela morte e consegue finalmente ascender à classe dos antepassados, onde estes o recebem e tornam Mane127. Trata-se assim de um crença monoteísta que se desdobra em politeísmo, pois se acreditam num Ente criador do universo, na prática veneram um panteão de espíritos- criados por Deus e que com Ele comunicam -, tal como os

125 VAZ, José Martins - No mundo dos Cabindas, vol. I. Lisboa: Editorial L.I.A.M, 1970 pp. 15. 126

Ibidem, pp. 13 e 14.

católicos procedem relativamente aos santos, como se deuses menores se tratassem, dos quais, acreditam, toda a sua existência depende.

Sobre a noção de moral dos Ngoio, na qual tudo gravita em torno do interesse supremo da comunidade, José Martins Vaz diz-nos o seguite: «os crimes, as faltas, são os que deteriorem a coesão do grupo: roubo, feitiçaria, insultos, faltas sexuais contra o direito de terceiros e não, propriamente, pelo aspecto de honestidade ou falta dela. Por outras palavras: só a partir desta base - o bem do grupo, as tradições dos antepassados, a lei natural, a consciência - é que fundamentam e deduzem a apreciação do bem e do mal. A noção de pecado, segundo o modo de pensar cristão e ocidental, não existe entre os cabindas. Há, sim, a falta, o crime contra a comunidade. Também a graça, o mérito não atingem os cumes da transcendência como determina o cristianismo, mas limita-se à colaboração amiga, desinteressada e elevada para dignificar o clã»128. E, «nessa ideia de clã, como colectividade real, estão incluídos os vivos, os mortos, os que ainda hão-de nascer, crescer e viver.»129; por outro lado, «a maioria […] dos contratempos da vida são atribuídos aos espíritos maléficos que - por si próprios ou por influência sobre pessoas nossas inimigas - tentam contrariar o nosso viver sossegado; a alguns feiticeiros - aqueles que os Cabinda chamam ndochie, comedores de almas - que, levados por inveja ou instados por consulentes desavindos connosco, tudo fazem para nos dissociar das fontes do ser»130; como tal, nunca ninguém morre de causas naturais, «há sempre uma razão que a motivou»131.

Sinal da cólera dos espíritos tutelares - quer por não terem recebido as honras devidas, quer por feitiço maléfico de um inimigo - são a infertilidade, a doença, a morte, as caçadas sem sucesso, as intempéries e a seca. Urge então o visado pela desgraça (podendo ser a tribo inteira a sofrer o castigo) consultar o feiticeiro ou adivinho para que este, por ser o único com o poder de comunicar e entender as mensagens dos espíritos, identifique a causa e prescreva a solução, a qual pode consistir num sacrifício ou culto ao espírito zangado, albergado numa estatueta.

128 Ibidem, p. 18. 129 Ibidem, p. 19. 130 Ibidem, p. 20. 131 Ibidem.

Sobre estas práticas mágicas, explicando como se obtinha favores dos espíritos, D. Domingos José Franque132 afirma: «quando se quer obter uma coisa de um feitiço de madeira, faz-se uma promessa. Vai o interessado, ou o seu representado, ao lugar onde está o feitiço e o sacerdote respectivo, conta a história que ali o levou, diz o que pretende e crava no ídolo a ponta de um prego. […]. Há ídolos que servem para tudo e outros só para determinadas especialidades. Outros há que se vão consultar para se saber determinada coisa e dos quais se obtém a resposta pela boca do respectivo sacerdote.» Por outro lado, numa extensão da crença mágica, o sono ou a representação de uma imagem equivale a tornar presente e real o ser ou coisa figurada, não existindo distinção entre o significante e o significado. Assim, qualquer acto executado sobre uma imagem, independentemente da distância a que o ser representado se encontra, atingi-lo-á como se sobre o próprio se estivesse agindo; «concretizando: se um caçador sonhar com uma pacaça, ou tiver na sua frente o seu desenho, a sua imagem, ritualmente lhe cravará uma seta, ou lhe apontará o canhangulo. Os efeitos da destruição operados na imagem atingem o próprio animal»133. Este princípio de infligir dano via imagem é também válido para os seres humanos.

Toda esta complexidade de uma cultura mágico-religiosa que estabelece uma natural comunicação entre os homens e os espíritos, os encerra dentro de estatuetas e se rege por um sentido da passagem do tempo pouco compatível com os relógios e os calendários ocidentais desaba sobre José de Guimarães, engenheiro, militar e espírito racionalista. Grande choque. O próprio, anos mais tarde, referir-se-á a esse embate de culturas e às dificuldades sentidas para o superar da seguinte forma: «quando lá cheguei, fui colocado perante um mundo que me era totalmente desconhecido. Eu tinha formação e culturas europeias, e África apresentou-se-me como um continente misterioso. De um povo com uma cultura própria e hábitos de vida que não são os nossos. Uma cultura mágico-religiosa. As próprias manifestações artísticas do povo africano são diferentes das nossas. Tentei penetrar nesse mistério mas foi-me muito difícil fazê-lo porque os

132 FRANQUE, D. Domingos José - Nós os cabindas: história, leis, usos e costumes dos povos de N‟goio.

Lisboa: Argo, 1940 pp. 193, 194.

meus códigos, as minhas coordenadas não jogavam com o mundo à minha volta. Tentei, então debruçar-me sobre a etnografia, compreender a Arte Negra […]»134 .

Assim, na tentativa de compreender a misteriosa cultura das tribos angolanas, apercebe- se de que a arte negra, transcendendo a função espiritual - que por sua vez se sobrepunha à função estética -, possui uma utilidade prática recorrendo a uma simbologia que permite aos elementos de uma tribo comunicarem entre si reforçando a coesão do grupo.

Ao contrário da narração de temáticas históricas ou da reflexão sobre o progresso da sociedade, a arte africana difunde mensagens, revela segredos ocultos, através de códigos inacessíveis aos leigos. Da compreensão do poder comunicativo da arte negra, após dois anos «[…] a ver como poderia entrar naquilo […]»135

vai José de Guimarães criar um alfabeto de signos e transformar as suas criações numa arte de sinais; nas palavras do artista trata-se de uma «transformação que é mais de conteúdo do que de forma…»136

, embora não a exclua. Nasce assim uma linguagem ideográfica transcultural destinada a transmitir mensagens, aberta a uma absorção contínua de novos signos. Como já referido, tratou-se de inventar um sistema de comunicação no qual se cruzassem duas culturas, cujo resultado seria uma nova língua, codificada, mas passível de ser entendida por todos os povos.

José de Guimarães137 considera que os portugueses, conquanto hajam estado em três continentes e interagido com inúmeros povos, pouco relações estabeleceram com as culturas autoctónes, fosse através da assimilação dos seus valores, fosse mediante a transmissão das expressões artísticas portuguesas. Ao contrário de outros povos, como os ingleses e os franceses, demonstraram reduzido interesse pela arte dos nativos que colonizaram, assim se explicando a pobreza das colecções de arte indígena existentes em Portugal, em contraste com o vastíssimo espólio detido pela Inglaterra e pela França. Então, ao desinteresse evidenciado durante séculos pelo império colonial português, vai José de Guimarães contrapor o desejo de compreender os sistemas culturais africanos,

134 Arte Perturbadora - entrevista a José de Guimarães por António Duarte. Porto: Edições Afrontamento,

2000, p. 50.

135 Ibidem, p. 51. 136

Ibidem, p. 45.

nomeadamente os das etnias com quem conviveu durante a estadia em Angola - os Ngoio.

O artista mostra-nos agora uma tampa de uma terrina em madeira da tribo Ngoio que

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