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4 AS MANIFESTAÇÕES DO FATALISMO POR MORADORES DA

4.1 Fatalismo: conceituação e interlocuções com a temática da pobreza

Martín-Baró (1998; 2004) enfatiza que o fatalismo é fruto de um contexto ideológico latino-americano marcado pela marginalização e pela pobreza, que geram condições de vida deploráveis e um regime de vida opressor. Manifesta-se, em um primeiro plano, como realidade social, externa e objetiva, para depois se converter em uma atitude pessoal, interna e subjetiva, responsável por gerar relações de sentido entre o sujeito e um mundo que se apresenta como fechado e incontrolável.

O fatalismo, então, diz de um esforço (ou de uma habilidade) que é, ao mesmo tempo, cognitivo (MARTÍN-BARÓ, 1998, 2004; VALLEJO-MARTÍN, MORENO-JIMÉNEZ, RÍOS- RODRÍGUEZ, 2017), emocional (MARTÍN-BARÓ, 1998, 2004; DÍAZ et al., 2015) e comportamental (MARTÍN-BARÓ, 1998, 2004) para lidar com os sentimentos de impotência perante o mundo e a sociedade. No plano dos pensamentos, Martín-Baró (1998, 2004) listou como manifestações do fatalismo a crença de que a vida está predefinida, de que há um destino fatal que não se pode mudar e de que existe um Deus todo-poderoso responsável pelo futuro. No plano das emoções, encontra-se a resignação, o não se deixar afetar pelas emoções e a aceitação do sofrimento resultante do próprio destino. No plano comportamental, há o conformismo e a submissão, a tendência à passividade e à desmobilização das maiorias populares, assim como a fixação no presente.

As condições políticas, econômicas e culturais de cada sistema social irão interferir nas manifestações do fatalismo (MARTÍN-BARÓ, 1998), o que resulta na ideia de que ele adquire roupagens específicas segundo cada contexto. Daí que o fatalismo serve como eficaz estratégia de opressão ao refletir no psiquismo dos sujeitos as consequências das estruturas econômicas, sociais e políticas fundamentadas na exclusão e na desigualdade social. Blanco e Díaz (2007) se aproximam desse pensamento ao descreverem que, na atualidade, o fatalismo encontra elementos para sua perpetuação em um rosto bifronte, nos moldes do que intitulou de fatalismo coletivista e fatalismo individualista. O fatalismo coletivista é a face mais tradicional desse sistema de crenças. É típico de sociedades de solidariedade mecânica23, onde não há significativa divisão social do trabalho, a consciência social e a individuação são fracas. O fatalismo coletivista, assim, está associado a um esquema mental caracterizado pela

23 Blanco e Díaz (2007) referenciam, ao distinguirem o fatalismo em coletivista e individualista, as contribuições do sociólogo Émile Durkheim sobre os tipos de solidariedade social derivados da divisão social do trabalho.

aceitação resignada e passiva do destino como fruto de uma vontade sobrenatural ou de forças da natureza. Por se perceberem à mercê dos acontecimentos, os sujeitos de culturas coletivistas, identificou Díaz et al. (2015), entendem que atingir um objetivo é raramente possível e, mesmo diante de situações exitosas, a percebem como resultado da sorte ou da predeterminação.

Em sua expressão coletivista, o fatalismo dificulta a fixação de metas, reduzindo as expectativas das pessoas sobre a vida, o que permite dizer que se trata de “(...) uma estratégia cognitiva perversa que faz as pessoas terem um maior nível de satisfação com a vida, mas inibe a ação para transformar a realidade social”24 (DÍAZ et al., 2015, p.992). Neste nível, representa a peça fundamental do círculo vicioso do conformismo (MARTÍN-BARÓ, 2004), pois o sujeito entende que nada pode fazer já que seu destino está traçado e é esta inatividade que acaba por reforçar o contexto de incertezas.

O fatalismo individualista, segundo Blanco e Díaz (2007), é intensamente manifesto nas sociedades atuais, caracterizadas pela solidariedade orgânica e por altos níveis de desenvolvimento tecnológico e econômico, mas que submetem as pessoas a contingências aleatórias e ameaças incontroláveis. São contextos onde se convive com a globalização do risco e a controlabilidade limitada dos perigos (BECK, 2006). Perceber-se vulnerável à destruição do meio ambiente, às ameaças do terror fanático, ao desemprego e à exclusão social gera o que Blanco e Díaz (2007) identificaram como incerteza, insegurança, descrença nas instituições como mantenedoras de conforto e da segurança, ceticismo frente ao que pode vir a ocorrer no futuro e incredulidade quanto aos esforços pessoais. Em culturas individualistas, a falta de integração social gera um estado de solidão e um profundo sentimento de isolamento (DÍAZ et al., 2015).

Apesar de Blanco e Díaz (2007) compreenderem que apenas o fatalismo individualista representa uma estratégia de adaptação aos contextos desfavoráveis, Martín-Baró (1998, 2004) já identificava este potencial quando defendia que o fatalismo apresenta sua funcionalidade ao evitar com que o sujeito se frustre e se desgaste diante dos investimentos sem sucesso em transformar a realidade. Martín-Baró (2004, p.161) elucida: “o fatalismo pode ser considerado como um mecanismo adaptativo, uma estratégia de sobrevivência, que permite ao campesino latinoamericano sobreviver em condições totalmente desfavoráveis”25. A esta mesma

24 Trecho original: “collectivist fatalism is a perverse cognitive strategy that makes people have a higher level of

satisfaction with their lives, but inhibits action to transform social reality” (DÍAZ et al., 2015, p.992).

25 Trecho original: “En esse sentido, el fatalismo puede ser considerado como um mecanismo adaptativo, una

estratégia de supervivência, que permite al campesino latino-americano subsistir em condiciones totalmente desfavorables”.

conclusão chegou Díaz et al. (2015, p.942), que o definiu como uma estratégia adaptativa “inteligente e realista (benéfica)”26.

Entretanto, vale ponderar que, mesmo o fatalismo se configurando como uma estratégia de adaptação aos contextos marcados por insegurança, incerteza e indefinição típicas do contexto de pobreza, é preciso questionar sobre em que medida ele se correlaciona com as estratégias de enfrentamento psicossocial à pobreza. Afinal, o próprio Martín-Baró (1998) esclareceu que a negação da situação de colonizado e o distanciamento cognitivo das experiências impede que o sujeito tome consciência das inúmeras contradições presentes em sua existência, mantendo a inibição corporal e o entendimento de si como responsável pelos fatos negativos da vida, ao que o autor nomeou de ‘culpabilidade psíquica’. Nestes casos, o risco presente é o de que a reprodução de ideias fatalistas que contribuem para a manutenção do status quo e para a naturalização das experiências cotidianas, ao não se constituírem como foco de atenção das investigações em psicologia, apresentem-se mimetizadas com conteúdos culturais e reproduzidas como elementos de tradição religiosa, por exemplo.

Pode-se dizer que o fatalismo é um fenômeno que elucida processos psicossociais ao mesmo tempo em que denuncia as implicações que as condições de vida da população geram na constituição do psiquismo dos sujeitos. Embora sendo um tema potencial no campo da investigação em psicologia, um desafio observado é o de eleger quais as dimensões analíticas adequadamente pertinentes ao conjunto de significações que a noção de fatalismo engendra. Quanto a isto, Piña-Watson e Abraído-Lanza (2017) advertem que uma característica das investigações com ênfase no fatalismo é a dificuldade de especificar quais as dimensões que o compõem, sendo, por vezes, discutido em sua interface com as noções de destino, fatalidade, sorte, locus externo de controle ou, até mesmo, de medo.

Nesta tese, a constatação de que existe uma diversidade de dimensões utilizadas na análise do fatalismo, por vezes produzindo alegações divergentes para seu entendimento, e o modo com que o contexto rural vivencia conteúdos religiosos e elenca suas explicações sobre as experiências cotidianas impulsionaram a eleição de dimensões analíticas do fatalismo em situação de pobreza rural a partir de quatro fontes de informações (Figura 12). A primeira fonte correspondeu ao que se apresenta na literatura sobre as dimensões do fatalismo e permitiu fornecer os delineamentos iniciais para sua compreensão. Foram identificadas, então, quatro dimensões principais: predestinação, controle divino, pessimismo e diminuição do

locus de controle interno.

Figura 12 –Fontes de informação das dimensões analíticas do Fatalismo

Fonte: Elaborado pela autora.

A segunda fonte foi representada pelo estudo de validação, junto à população rural das regiões norte, nordeste e sul do Brasil, de uma versão reduzida da Escala Multidimensional de Fatalismo (EMF-Reduzida) por Cidade et al. (2018). Em sua versão original, formulada por Esparza Del Villar, Wiebe e Quiñones (2015), a EMF possui como mencionado na metodologia deste trabalho de tese, trinta itens distribuídos em cinco fatores: fatalismo, pessimismo/desesperança, internalidade (ou locus de controle interno), sorte e controle divino. No entanto, a versão reduzida e validada junto à população rural brasileira identificou uma diminuição de cinco para três fatores (pessimismo, controle divino e sorte), em torno dos quais estão dispostos onze itens. Por sua vez, a terceira e a quarta fonte de informações dizem respeito aos resultados desta pesquisa de tese. Os dados quantitativos foram derivados da aplicação da EMF-Reduzida, referindo-se à terceira fonte de dados. Os dados qualitativos, pertencentes à quarta fonte de informações, foram aqueles provenientes da condução total de quatro grupos focais em Pentecoste (Ceará) e de três em Cascavel (Paraná).

O debate entre essas fontes permitiu a produção de um esquema de pensamento intitulado de Modelo Analítico das Dimensões do Fatalismo segundo as fontes de informação. Na construção deste Modelo, será possível perceber a supressão dos fatores diminuição do

locus de controle interno e sorte. Essas ausências se devem a uma maior ênfase atribuída aos

dados gerados pela fonte qualitativa por compreender que os achados nesta etapa da pesquisa trouxeram considerações mais substanciais a respeito das redes explicativas elaboradas pelos sujeitos sobre suas crenças e condições de vida. Foi através desses achados que se percebeu uma menor relevância das categorias sorte e locus de controle interno para a compreensão da complexidade do fatalismo como fenômeno decorrente das implicações psicossociais da pobreza rural. Destaca-se que a noção de sorte não foi citada durante os sete grupos focais.

Dessa forma, no decorrer do capítulo, será apresentada, em dois grandes tópicos, a trajetória teórico compreensiva percorrida para que fosse possível elaborar o Modelo Analítico das dimensões do fatalismo relativo à população pesquisada do Nordeste e do Sul do Brasil, constituído por controle divino, predestinação, pessimismo e presentismo apresentado. No primeiro tópico, será feita a exposição conceitual das dimensões analíticas do fatalismo segundo a literatura. O segundo tópico apresentará os dados quantitativos relativos ao fatalismo e os conteúdos dos grupos focais.