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3 EMBRIAGUEZ AO VOLANTE – ASPECTOS DA CONTROVÉRSIA

3.2 A favor da Culpa Consciente

Examinam-se, a seguir o posicionamento da 1ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios e da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal a favor da culpa consciente, respectivamente através do Recurso em Sentido Estrito nº 687.195 e Habeas Corpus nº 107.801.

Trata-se de Recurso em Sentido Estrito, o qual foi interposto com a finalidade de desclassificar a sentença de pronúncia com fundamento nos artigos 121, caput, do Código Penal e 309 da Lei 9.503/97, para delito diverso da competência do Tribunal do Júri, sob alegação de ter agido com culpa.147

Narra a denúncia que, o recorrente no momento do fato estava sob o efeito de álcool, e inabilitado para conduzir veículo automotor.

A primeira turma do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios deu provimento ao recurso, desclassificando a conduta imputada ao réu para a prevista no artigo 302, parágrafo único, inciso I, e no artigo 306, ambos do Código de Trânsito Brasileiro.

Confira-se, a ementa do referido julgado, in verbis:

“RECURSO EM SENTIDO ESTRITO HOMICÍDIO PRATICADO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR DOLO EVENTUAL NÃO CONFIGURAÇÃO HOMICÍDIO CULPOSO.

I. A previsão do tipo penal no Código de Trânsito, pelo princípio da especialidade, afasta a possibilidade de julgamento pelo Tribunal do Júri nos crimes cometidos na direção de veículo automotor.

II. Para a configuração do dolo eventual não basta previsibilidade do resultado. Imprescindível o comportamento indiferente do réu em relação à previsão e a aceitação voluntária e consciente do resultado. Precedente do STF. III. Recurso provido”.148

No ensinamento da Desembargadora Sandra de Santis, as punições exíguas previstas para os delitos de trânsito motivaram grandes mudanças no âmbito social e jurídico.

147 DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Recurso em

Sentido Estrito. RSE nº 687.195. 1ª Turma. Relatora: Des. Sandra de Santis. Brasília, DF. 20 de junho de 2013. DJ de 01.07.2013. p. 3.

Neste passo, o dolo eventual está sendo aplicado pelos Tribunais como meio de política criminal, os quais passaram a banalizar o conceito de dolo eventual ao considerarem apenas os resultados praticados pelos acidentes, sem qualquer apuração quanto ao fito mental do agente.

Em seguida, menciona em sua fundamentação Cesare Beccaria em sua clássica obra “Dos Delitos e Das Penas”:

“Ora, o magistrado, que é parte dessa sociedade, não pode com justiça aplicar a outro partícipe dessa sociedade uma pena que não esteja estatuída em lei; e, do momento em que o juiz é mais severo do que a lei, ele é injusto, pois aumenta um castigo novo ao que já está determinado. Depreende-se que nenhum magistrado pode, mesmo sob o pretexto do bem público, acrescer a pena pronunciada contra o crime de um cidadão”.149 (grifo nosso).

Dessa forma, compete ao legislador a aplicação da subsunção da conduta à norma, respeitando o princípio da reserva legal, a fim de resguardar o indivíduo da incriminação de conduta diversa à norma posta, protegendo-o da interpretação discricionário do julgador, buscando sempre a segurança jurídica.

Por sua vez, a relatora assevera, que não é da competência do Poder Judiciário a aplicação de penas rígidas com base no clamor público e midiático. Portanto, conforme já mencionado, cabe somente ao legislador, atribuir à conduta a punição adequada sob pena de desproporção entre as decisões proferidas pelos magistrados e a determinação legal editada pelo Poder Legislativo.

A respeito do assunto, a excelentíssima relatora, menciona o doutrinador Giuseppe Bettiol:

“Assim como, em nome de um critério de segurança jurídica, se considera necessário que os factos que constituem crime, sejam claramente estabelecidos pelo legislador, na medida em que é pela determinação do facto que os poderes discricionários do juiz são limitados e é a garantia a liberdade individual, de igual modo se torna necessário que as atitudes psicológicas do sujeito, em relação ao facto perpetrado, sejam claramente fixadas pelo legislador, de forma a poder excluir-se,

149 DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Recurso em

Sentido Estrito. RSE nº 687.195. 1ª Turma. Relatora: Des. Sandra de Santis. Brasília, DF. 20 de junho de 2013. DJ de 01.07.2013. p. 4.

a tal respeito, qualquer arbítrio judicial. Há efectivamente legislações em que os limites do dolo e da culpa não estão, de facto, estabelecidos no código, sendo confiada à doutrina a tarefa de fazê-lo”.150

A desembargadora critica a generalização da incidência do dolo eventual pelos magistrados como respostas ao clamor social. Afirma que a solução encontrada por alguns é no sentido de “ser possível levar todos os casos de homicídio ocorridos no trânsito ao Júri Popular, ao argumento de que os agentes teriam agido com manifesto dolo eventual. Ledo engano”. 151

A fim de justificar a tendência observada, cita como complementação os argumentos utilizados pelo jurista Lenio Strek: “a figura do dolo eventual não deve ser utilizada como pedagogia ou remédio contra a violência no trânsito”. Em seguida cita Bittencourt: “o Direito Penal não serve como ‘panacéia de todos os males’”.152

Nesse sentido, incumbe aos magistrados somente a interpretação e aplicação da lei de forma correta, pois é inadmissível que a norma estabelecida pelo Código de Trânsito Brasileiro seja desconsiderada e volúvel para atender aos anseios da sociedade.

Na visão da desembargadora, o princípio da igualdade está sendo frontalmente ofendido pelo Ministério Público uma vez que ao oferecer denúncia está tratando de forma diferente situações iguais, enquadrando-as em tipo penal diverso, ora como dolo eventual, ora culpa consciente.

Cabe ressaltar que, para configurar o dolo eventual, é fundamental verificar o desígnio mental do agente no momento da ação, ou seja, sua aceitação e indiferença quanto ao resultado, e não apenas a previsibilidade do mesmo. Todavia, se o agente afasta-o inconscientemente, está caracterizada a culpa com previsão.

150DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Recurso em

Sentido Estrito. RSE nº 687.195. 1ª Turma. Relatora: Des. Sandra de Santis. Brasília, DF. 20 de junho de 2013. DJ de 01.07.2013. p. 4 e 5.

151 Ibidem, p. 6.

Para a Desembargadora Sandra de Santis: “fórmulas como álcool + falta de habilitação + velocidade excessiva + homicídio = dolo eventual devem ser rechaçadas”.153

Dessa forma, o exercício da vontade deverá ser aferido imprescindivelmente conforme o caso concreto, jamais presumi-lo com base apenas em circunstâncias unicamente objetivas.

Nesse sentido, a relatora referiu-se ao Habeas Corpus nº 107.801 julgado pelo Supremo Tribunal Federal:

“PENAL. HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA POR HOMICÍDIO QUALIFICADO A TÍTULO DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. EMBRIAGUEZ ALCOÓLICA. ACTIO LIBERA IN CAUSA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO ELEMENTO VOLITIVO. REVALORAÇÃO DOS FATOS QUE NÃO SE CONFUNDE

COM REVOLVIMENTO DO CONJUNTO

FÁTICO-PROBATÓRIO. ORDEM CONCEDIDA.

1. A classificação do delito como doloso, implicando pena sobremodo onerosa e influindo na liberdade de ir e vir, mercê de alterar o procedimento da persecução penal em lesão à cláusula do due process of law, é reformável pela via do habeas corpus.

2. O homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB) prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção ante a embriaguez alcoólica eventual.

3. A embriaguez alcoólica que conduz à responsabilização a título doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se embebedou para praticar o ilícito ou

assumir o risco de produzi-lo.

4. In casu, do exame da descrição dos fatos empregada nas razões de decidir da sentença e do acórdão do TJ/SP, não restou demonstrado que o paciente tenha ingerido bebidas alcoólicas no afã de produzir o resultado morte.

5. A doutrina clássica revela a virtude da sua justeza ao asseverar que “O anteprojeto Hungria e os modelos em que se inspirava resolviam muito melhor o assunto. O art. 31 e §§ 1º e 2º estabeleciam: 'A embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos análogos, ainda quando completa, não exclui a responsabilidade, salvo quando fortuita ou involuntária. § 1º. Se a embriaguez foi intencionalmente procurada para a prática do

153 DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Recurso em

Sentido Estrito. RSE nº 687.195. 1ª Turma. Relatora: Des. Sandra de Santis. Brasília, DF. 20 de junho de 2013. DJ de 01.07.2013. p. 6.

crime, o agente é punível a título de dolo; § 2º. Se, embora não preordenada, a embriaguez é voluntária e completa e o agente previu e podia prever que, em tal estado, poderia vir a cometer crime, a pena é aplicável a título de culpa, se a

este título é punível o fato”. (Guilherme Souza Nucci, Código

Penal Comentado, 5. ed. rev. atual. e ampl. - São Paulo: RT, 2005, p. 243)

6. A revaloração jurídica dos fatos postos nas instâncias inferiores não se confunde com o revolvimento do conjunto fático-probatório. Precedentes: HC 96.820/SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 28/6/2011; RE 99.590, Rel. Min. Alfredo Buzaid, DJ de 6/4/1984; RE 122.011, relator o Ministro Moreira Alves, DJ de 17/8/1990. 7. A Lei nº 11.275/06 não se aplica ao caso em exame, porquanto não se revela lex mitior, mas, ao revés, previu causa de aumento de pena para o crime sub judice e em tese praticado, configurado como homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB).

8. Concessão da ordem para desclassificar a conduta imputada ao paciente para homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB), determinando a remessa dos autos à Vara Criminal da Comarca de Guariba/SP (HC 107801, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Relator(a) p/ Acórdão: Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 06/09/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-196 DIVULG 11-10-2011 PUBLIC 13-11-10-2011)”.154

A relatora é categórica ao afirmar que o princípio da especialidade aplicado aos delitos de trânsito afasta a competência do Tribunal do Júri para julgá-los, tendo em vista que a legislação de trânsito não reconheceu a aplicação do dolo eventual em caso de homicídio e lesão corporal.

Corroborando com o exposto, o desembargador revisor Romão C. Oliveira aduz que, na hipótese dos autos, houve ausência de provas probatórias de que o recorrente bebeu com finalidade de praticar o delito ou assentiu o risco de produzi-lo baseando-se no entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal para proferir seu voto.

Finalizando seu entendimento, expõe a doutrina de Eugênio Pacelli de Oliveira:

“O que se espera dele [juiz] é o exame do material probatório ali produzido, especialmente para a comprovação da inexistência de quaisquer das possibilidades legais de afastamento da competência do Tribunal do Júri. E esse

154 DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Recurso em

Sentido Estrito. RSE nº 687.195. 1ª Turma. Relatora: Des. Sandra de Santis. Brasília, DF. 20 de junho de 2013. DJ de 01.07.2013. p. 6 a 8.

afastamento, como visto, somente é possível por meio de convencimento judicial pleno, ou seja, por meio de juízo de certeza, sempre excepcional nessa fase”.155

Assim, em virtude da ausência de circunstâncias que demonstrem a assunção do resultado pelo autor, a relatora deu provimento unânime ao recurso.

Decisão da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal

Façamos um breve exame do Habeas Corpus nº 107.801 julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 2011, o qual foi objeto de deliberação pela Desembargadora Sandra de Santis conforme observamos acima.

A Turma no julgamento do writ relatado pela Ministra Cármen Lúcia a qual teve voto vencido, por maioria de votos, desclassificou a conduta imputada ao acusado de homicídio a título doloso, na modalidade de dolo eventual, para homicídio culposo na direção de veículo por entender que a responsabilização dolosa pressupõe que a pessoa tenha se embriagado com o intuito de praticar o crime.

In casu, o recorrente foi pronunciado pela prática de homicídio qualificado

(art. 121, 2º, IV c/c art. 18, I, segunda parte do Código Penal) em virtude de ter ocasionado a morte da vítima, sob o efeito de álcool.

A defesa interpôs recurso em sentido estrito contra a decisão de pronúncia o qual restou desprovido. Irresignada, impetrou habeas corpus nº 94.916 no Superior Tribunal de Justiça, porém foi novamente denegado nos seguintes termos, in verbis:

“HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA POR HOMICÍDIO QUALIFICADO A TÍTULO DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO NA

DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. EXAME DE

ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO. ANÁLISE

APROFUNDADA DO CONJUNTO FÁTICOPROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. COMPETÊNCIA DO CONSELHO DE SENTENÇA. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM DENEGADA.

155 DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Recurso em

Sentido Estrito. RSE nº 687.195. 1ª Turma. Relatora: Des. Sandra de Santis. Brasília, DF. 20 de junho de 2013. DJ de 01.07.2013. p. 13.

1. A decisão de pronúncia encerra simples juízo de admissibilidade da acusação, exigindo o ordenamento jurídico somente o exame da ocorrência do crime e de indícios de sua autoria, não se demandando aqueles requisitos de certeza necessários à prolação de um édito condenatório, sendo que as dúvidas, nessa fase processual, resolvem-se contra o réu e a favor da sociedade. É o mandamento do art. 408 e atual art. 413 do Código Processual Penal.

2. O exame da insurgência exposta na impetração, no que tange à desclassificação do delito, demanda aprofundado revolvimento do conjunto probatório - vedado na via estreita do mandamus -, já que para que seja reconhecida a culpa consciente ou o dolo eventual, faz-se necessária uma análise minuciosa da conduta do paciente.

3. Afirmar se agiu com dolo eventual ou culpa consciente é tarefa que deve ser analisada pela Corte Popular, juiz natural da causa, de acordo com a narrativa dos fatos constantes da denúncia e com o auxílio do conjunto fático-probatório produzido no âmbito do devido processo legal, o que impede a análise do elemento subjetivo de sua conduta por este Sodalício.

4. Na hipótese, tendo a decisão impugnada asseverado que há provas da ocorrência do delito e indícios da autoria assestada ao paciente e tendo a provisional trazido a descrição da conduta com a indicação da existência de crime doloso contra a vida, sem proceder à qualquer juízo de valor acerca da sua motivação, não se evidencia o alegado constrangimento ilegal suportado em decorrência da pronúncia a título de dolo eventual, que depende de profundo estudo das provas, as quais deverão ser oportunamente sopesadas pelo Juízo competente no âmbito do procedimento próprio, dotado de cognição exauriente.

5. Ordem denegada.

(HC 94916/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 04/02/2010, DJe 10/05/2010)”. 156

Ao expor seu voto-vista, o Ministro Luiz Fux concedeu a ordem no writ sob o argumento de que: “A embriaguez alcoólica que conduz à responsabilização a título doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se embebedou para praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo”.157

Segundo argumentou, o emprego da teoria da actio libera in causa somente poderia ser admitida para imputação a título doloso em caso de embriaguez preordenada, sob pena de incidir em responsabilidade penal objetiva.

156 DISTRITO FEDERAL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 107801, 1ª Turma.

Relator: Min. Luiz Fux. Brasília, DF. 06 de setembro de 2011 DJ de 13.10.2011. p. 2 e 3.

Ressaltou que, de um modo geral, está havendo uma banalização da tipificação dolosa nos delitos de trânsito. Destarte, entendeu que a responsabilização do condutor ébrio a título doloso somente pode ocorrer mediante a comprovação de que ele embebedou-se para praticar o ilícito.

Ademais, o i. Ministro salientou que, no caso em exame, houve apenas presunção acerca do elemento subjetivo indispensável para configurar o dolo, razão pela qual não ficou demonstrado ter o paciente assentido para o resultado.

Corroborando com o exposto, o Ministro Marco Aurélio acrescentou que em virtude do princípio da especialização, ocorrendo acidente de trânsito com resultado morte deverá ser aplicada a norma especial disciplinada pelo Código Nacional de Trânsito.

Insta salientar, que o posicionamento do Supremo Tribunal Federal não é vinculante, ou seja, não se pode concluir que todo homicídio de trânsito ocasionado por condutor ébrio seja imputado como culposo. Porém, esse precedente poderá ser utilizado como base para o ordenamento jurídico brasileiro.

Destarte, conforme podemos verificar nos acórdãos supramencionados, é fundamental que o magistrado aprecie todos os elementos de acordo com o caso concreto, pois, não é possível imputar o dolo eventual ou a culpa consciente sem verificar o desejo do agente ao praticar a conduta.

No entanto, a grande questão é que há um dissenso a respeito do tema, pois muitos Tribunais de Justiça e alguns doutrinadores têm admitido a imputação a título de dolo eventual aos motoristas embriagados que praticam homicídio no trânsito, indo contrariamente à regra geral estabelecida no artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro.

Corroborando com esse entendimento, Guilherme de Souza Nucci expõe:

“Tem sido posição adotada, atualmente, na jurisprudência pátria considerar atuação do agente, em determinados delitos cometidos no trânsito, não mais como culpa consciente, e sim como dolo eventual. As inúmeras campanhas realizadas, demonstrando o perigo da direção perigosa e manifestamente ousada, são suficientes para esclarecer os motoristas da vedação legal de certas condutas, tais como racha, a direção

em alta velocidade, sob embriaguez, entre outras. Se, apesar disso, continua o condutor do veículo a agir dessa forma nitidamente arriscada, estará demonstrando seu desapego à incolumidade alheia, podendo responder por delito doloso”.158 Na visão de Damásio de Jesus, não é somente a modalidade de embriaguez preordenada que responsabiliza o sujeito de forma dolosa. Tem que ser levada em consideração, a hipótese em que o sujeito de forma voluntária consome bebida alcoólica, e em estado de ebriedade assume a direção de veículo automotivo, dirigindo com ausência de cautela. Para ele, nesse caso o condutor assume o perigo de lesar ou matar terceiros.159

Destarte, o doutrinador ressaltou que em virtude da propagação dos meios de comunicação, principalmente o televisivo, é improvável que alguém desconheça os riscos de conduzir veículo automotor em estado de ebriedade.160

A respeito do julgamento do Habeas Corpus nº 107.801 pelo Supremo Tribunal Federal, argumentou que a embriaguez preordenada, via de regra, é incompatível com a modalidade de dolo eventual, adequando-se apenas ao dolo direto, uma vez que exige do sujeito o desejo de praticar o resultado.161

Assim, asseverou: “Ora, se o agente se embriaga para, em estado de inimputabilidade, cometer um crime, que ocorre, como falar-se em culpa? Se ele quis o crime e o praticou, é caso de dolo direto”. 162

Nesse sentido, de acordo com seu entendimento, era possível aplicar o dolo eventual ao caso supramencionado.

158 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: parte geral: parte especial. 6ª ed. rev.,atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 228.

159 Disponível em:

http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/o-stf-e-o-homicidio-causado-por-motorista-embriagado/8373. Acessado em: 09 de set. de 2015.

160 Idem.

161 Idem.

CONCLUSÃO

Conforme a literatura e outros estudos acerca do tema, pode-se verificar que este assunto é controverso, sensível e de muitas discussões acaloradas, já que a tipificação do dolo, tendo como base a embriaguez voluntária, não pode ser banalizada, sob pena do menosprezo das decisões judiciais. É fato que a manifestação veemente da sociedade, por si só, não detém competência a transformar condutas cristalinas culposas, em dolosas ou vice-versa.

Por sua vez, com a exposição dos acórdãos, evidencia-se que a diferenciação entre o dolo eventual e a culpa consciente baseia-se apenas em fatores psicológicos, na anuência ou não do resultado. Assim, tal entendimento concorre para divergência doutrinária e jurisprudencial.

Destarte, não se pode generalizar a imputação a título doloso de forma imperativa. Faz-se necessário examinar as particularidades do caso concreto, pois o Direito Penal não admite presunção e nem tampouco subjetivismo.

Dessa forma, é imprescindível haver certeza quanto à exteriorização da vontade do agente e comprovação probatória para não ferir dois princípios basilares do direito: o do in dubio pro reu e o da presunção de inocência.

Apesar dos reclamos sociais, não é possível prejulgar que qualquer homicídio praticado por condutor sob efeito de bebida alcoólica seja hipótese de dolo eventual, principalmente quando houver dúvida a respeito do animus dolandi do autor do delito.

Insta salientar que, se assim for, haverá uma banalização do instituto do dolo e, consequentemente, um desprestígio à Teoria do Crime e às normas penais.

Assim, vê-se de pronto que, numa perfeita harmonia, deve-se aplicar a Teoria da Culpa Consciente, onde se guarda o acusado diante do desvirtuamento das normas sob à égide do Direito Penal Garantista, mesmo que tal garantia fira o olhar fulminante da sociedade brasileira, tão carente de uma justiça célere!

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