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Desde o capítulo anterior, destacou-se a importância da presença dos amigos no processo de composição e nos rumos da carreira de Milton Nascimento: “A coisa mais

importante, para mim, de todas as coisas, é a amizade.” Valorizar a amizade foi um dos muitos ensinamentos de Lília. Uma das canções mais conhecidas de Milton e Fernando Brant, Canção da América, eterniza o tema em sua obra. Os laços de amizade conduziram a construção de parcerias musicais ao longo de sua carreira. Na entrevista que realizei com Milton, tivemos breve diálogo sobre suas parcerias, sobre a relação entre a amizade e o seu fazer artístico.

- E parece que isso [a amizade] na sua obra é muito importante tanto como

tema, como também por ser ela construída em cima de parcerias. - É!

- O Clube da Esquina reúne alguns parceiros que você levou para a vida afora. - Uhum. [balançando a cabeça afirmativamente]

- É muito forte. Eu queria que você comentasse um pouco essa coisa sua com a

parceria. Eu não te vejo como um artista que produz isolado.

- Realmente eu sempre quis, e continuo querendo, pessoas junto comigo... tem uma coisa que acontece... eu sou meio diferente de meus colegas assim, porque se eu for fazer uma música, compor, essas coisas todas, eu não gosto de silêncio. Então, se tem crianças na casa, os afilhados maiores, ou qualquer coisa, eu sinto que a casa está viva! Aí eu consigo fazer as coisas mais bonitas e levadas do jeito que eu quero. Então, realmente, tudo é a partir da amizade.

Por meio do contato com outros músicos e letristas, muitos deles seus amigos, Milton Nascimento enriquece sua obra, adensa seu som, renova seu talento e revela novos nomes. Foi assim, por exemplo, com Lô Borges, que ainda adolescente foi convidado pelo artista para assinar com ele o emblemático álbum de 1972, Clube da

Esquina. A personalidade dos talentos e as inovações resultantes dessa experiência acabaram produzindo uma identidade musical, de modo que o Clube da Esquina passou a ser, além de título de disco, a expressão que identificava a música do grupamento de artistas que se envolveu na feitura desse e de outros álbuns de Milton Nascimento. Espontaneamente, portanto, nascia uma corrente musical. Experiências como esta renderam a Milton adjetivos como: agregador, aglutinador, catalisador. Volta e meia, o

artista reúne novos talentos ao seu redor, retoma parcerias, estabelece laços. No diálogo acima transcrito, Milton ainda menciona como a coletividade de vozes o inspira a compor, como o artista precisa de vida para produzir arte. Nesse ponto, não são apenas os artistas, músicos e letristas que o inspiram, mas, principalmente, os amigos.

Na década de 70, e também nas que seguiriam, as experiências de gravação de disco de Milton chamavam a atenção pela quantidade de pessoas reunidas no estúdio. Por vezes, grandes coros eram constituídos na mescla de personalidades da música e amigos que se ajuntavam especialmente para aquela ocasião. Colaborador ativo de discos desse período, Novelli recorda o clima das gravações quando Milton Nascimento entrava em estúdio:

A gente, às vezes, colocava 150 pessoas no estúdio e organizava. Aqueles coros, “Reis e rainhas do maracatu”, aquilo ali tinha 80, 100 pessoas fazendo coro. Suzana Moraes, as filhas do Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Marieta... É um Butantã, muita gente!! O couro comendo, loucura! Só que a música prevaleceu, tá afinado, tem aquele volume, aquela presença. Às vezes apareciam músicos não sei de onde e já aderiam, já chegavam lá... Aparecia Cauby Peixoto de repente, que estava gravando numa outra sala, não sei que lá: “O que que tá acontecendo, aqui?”. “Ah, é uma gravação de um disco do Milton Nascimento.” “Que que tá rolando?” “É um coro aí, que tem umas 70, 80 pessoas”. Ele falou: “Ah, eu também vou”. [risos].1

A atmosfera que inspirava a composição das canções de Milton Nascimento era transposta para os discos, onde se buscava reproduzir o calor e espontaneidade das reuniões entre amigos. Interessante é que em discos como o Clube da Esquina nº 2, onde está presente a canção Reis e rainhas do maracatu, citada por Novelli, alguns dos coros de múltiplas vozes, improvisados com grande número de artistas, aparecem nomeados nos encartes pela expressão “Falta de Couro”. Brincadeiras à parte, o

trocadilho favorece o paradoxo de uma reunião anárquica e uníssona de vozes a romper limites e enquadramentos vocais dos coros tradicionais, porque, na verdade, o

que se busca mesmo é traduzir a presença de uma multidão. Vozes dissonantes, vozes que excedem, transbordam, faltam em coro por pura falta de couro, num gracejo, mesmo com “o couro comendo”. O Falta de Couro ganha volume ainda maior no disco posterior de Milton, Sentinela, de 1980. Ao consultar o encarte do disco, a surpresa com a lista onde nomes de amigos pessoais se misturam a músicos reconhecidos, atores,

1

Entrevista de Novelli concedida ao grupo “História e música: compondo identidades, fazendo histórias”, no Rio de Janeiro, em 10/12/2010.

pessoas da família. Gente de todo canto, de Belo Horizonte, do Rio, de Três Pontas.2 Um estúdio em festa a cantar: “Quem me ensinou a nadar/ quem me ensinou a nadar/

Foi, foi, marinheiro/ Foi os peixinhos do mar”3. Tais versos vêm abrigados naquela

aura mágica arquitetada pelo som do grupo instrumental Uakti, reconhecido pela personalidade e criatividade musical reverberadas de instrumentos inventados na oficina de seu maestro, Marco Antônio Guimarães. O grupo levaria seu som enigmático a outras obras de Milton Nascimento, arranjando bela parceria ao longo dos anos.

O clima de produção coletiva permeia os relatos dos participantes do disco

Clube da Esquina, o primeiro destes no livro que celebra seus 40 anos.4 No estúdio, todos participavam da elaboração dos arranjos de base. Antes de começar as gravações, Milton se mudou com seu primo Jacaré, Lô Borges e Beto Guedes para uma casa em Mar azul, na praia de Piratininga, Niterói, em busca de inspirações para o disco. Durante a estada, muitas foram as visitas dos outros membros daquele futuro Clube da Esquina. Os encontros também se deram em Belo Horizonte, onde moravam Márcio Borges e Fernando Brant. Pelo convívio na casa de Mar Azul e no estúdio, aqueles artistas fortaleciam laços sonoros e de amizade. Maturavam ideias, criavam caminhos musicais e poéticos inovadores que resultariam num disco espontâneo e com unidade, de tal forma que as canções parecem se enlaçar como peças de uma mesma narrativa. Na atmosfera de Clube da Esquina pairam nuvens enigmáticas. Detrás daquelas canções, outras histórias se insinuam, conversas internas ganham contornos poéticos e transbordam em letras que só poderiam ser gestadas numa experiência costurada pela intimidade profunda entre os participantes: Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes, Fernando Brant, Márcio Borges, Ronaldo Bastos, Wagner Tiso, Toninho Horta, Tavito, Robertinho Silva, Nelson Ângelo, Luiz Alves, Rubinho Batera, Eumir Deodato, Alaíde Costa, Paulo Moura e tantos outros que deram um pulinho por lá. Cada participante desembarcava com sua bagagem musical direto para o universo daquele

2 Assim estão listados os participantes do Falta de Couro em Sentinela: Celso, Silvana, Luiz Couto,

Arnold, Marisa, Wilma Nascimento, Marilene, Hildebrando, Márcia, Cássio Tiso, Carlos Diniz, Ana, Totó, Lulu, Ernesto, Jorge, George, João Anginha, Chico Alencar, Samarone, Rick, Cacá, Tavinho Bretas, Canela, Vivaldi, Rosina, Celso, Fred, Marden, Ike Popó, Sinara, Tunai, Ronaldo, Pedro Brant, Léo, Fernando Brant, Vina Brant, Ana Brant, Guiga, Murilo Antunes, Bel, Veveco, Biza, Zezé, Dedédela, Tonho da Diva, Russo, Haroldo, Beto, Rodrigo, Cabral, Da Laura, Wandinho, Jacarezinho, Marilena, Marcinho, Maria Eugênia, Jorge Tiso, Paulo Souza, Dudu, Regina, Marquinho, Carlinho Tiso, Sérgio, Déco, Fernando Tiso, Fran, Fernando Eiras, Maria Padilha, Paulinho, Pato Astaire, Ronaldo Bastos, Roma, Regina, Keller, Ingrid, Leinho, Naca, Léo II.

3 Peixinhos do mar. Cantiga de marujada. Arranjo e adaptação de Tavinho Moura.

4 Márcio Borges. Clube da Esquina 40 anos. Belo Horizonte: Associação dos Amigos do Museu Clube da

disco, onde Milton Nascimento promovia uma fusão de gêneros e estilos – jazz, Bossa Nova, rock, rock progressivo, música regional, música clássica, música sacra –, de que resultava um som provocador de distinta sonoridade, percebido como um novo estilo. “... as pessoas vestiram muito a camisa. Parecia que o disco era meu, do Wagner, de nós todos. Não parecia que era um disco do Lô e do Milton. A gente tomava aquilo como nosso. Acho que isso faz a diferença.”5 As palavras de Beto Guedes expressam um

sentimento compartilhado pelos participantes daquela obra e pelos inúmeros admiradores.

Clube da Esquina é um álbum duplo, o segundo nesse formato no mercado fonográfico brasileiro. Ao abrirmos a capa que acomoda os dois LPs, deparamos com variadas fotografias de músicos que participaram do projeto e de outros personagens que interagiram com o grupo, amigos, parentes. No meio daquele quadro de fotos, a imagem de uma nuvem. A ideia era de que ela viesse num pôster colorido, mas por falta de verba acabou como mais um quadrinho preto-e-branco num monte de fotos.6 A imagem da nuvem harmoniza-se com o conceito do álbum, elaborado em arranjos e orquestrações que dão o tom abstrato. O movimento das nuvens desperta sensibilidades latentes e dá pistas da temática das canções, sublinhando nelas a fluidez entre o leve e o denso, o claro e o escuro, realidades perpassadas por nuances pouco decifráveis. Nuvens que transcendem a ideia de mera contemplação, num convite ao público a interagir na (re)criação de desenhos e formas etéreas. Sonoridades e letras musicais se envolvem nessa elaboração poética, carregada de tons impressionistas.

Fig. 1 – parte interna do álbum Clube da Esquina

5 Beto Guedes (depoimento) In: Márcio Borges. Clube da Esquina 40 anos. Op. cit., 2012, p. 87.

6 Márcio Borges. Os sonhos não envelhecem: histórias do Clube da Esquina. 4ª edição – São Paulo:

No céu do Clube da Esquina, o horizonte se espraia em tonalidades cinzentas, como se pode perceber na canção Cais (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos): “Para

quem quer se soltar/ Invento o cais.” Aí, o som constante e pungente do órgão manejado por Wagner Tiso ganha todos os espaços da música, imprimindo profundidade e angústia à melodia. Combinada com a voz de Milton Nascimento, a canção lembra um ambiente sacro, como se as ondas daquele mar imenso fossem eco do som que se propaga pelo interior de uma igreja e escapa para o exterior, planando entre as baixas nuvens cortadas por montanhas. O céu se abre em alguns momentos do disco, como no da execução da balada O trem azul (Lô Borges/Ronaldo Bastos), “Você pega o

trem azul/ o sol na cabeça”. A voz de Lô Borges e o solo de guitarra de Toninho Horta ajudam a compor a ambiência, onde prevalece a leveza na condução de viagens que evocam sensibilidades. Tomar um trem azul é se jogar em sensações, num franco diálogo com a linguagem psicodélica. É como se o trem de ferro, objeto, se transformasse em sensação e nos atravessasse – esta seria a sua viagem. Da mesma dupla de compositores de O trem azul, a canção Nuvem cigana, interpretada por Milton Nascimento, evidencia essa movimentação da nuvem sonora, já pelo título, já pelos arranjos de orquestra assinados por Wagner Tiso. Regida por Paulo Moura, a orquestra ora surge volumosa, ora se recolhe, reaparece, movimenta-se, aplicando cor ao ambiente sonoro, perfurado pela voz de Milton, que, desse vórtice de sons, emite os versos da canção: “Se você quiser eu danço com você/ No pó da estrada/ Pó, poeira, ventania,/ Se

você soltar o pé na estrada.

Márcio Borges recorda em seu livro sobre o Clube da Esquina que o álbum de 1972 “tinha sido um disco estradeiro, cheio de motivos e citações de viagens, como “Cais”, “O Trem Azul”, “Nada será como antes”, “Saídas e Bandeiras””.7 Isto é

perceptível, inclusive pela ambiência sonora, onde por vezes se acentua um ar de psicodelia. As letras das canções ajudam a compor o ambiente com o uso de expressões e imagens abstratas, metáforas que mais inquietam do que constroem sentidos: “Se você

deixar o sol bater/ nos seus cabelos verdes/ sol, sereno, ouro e prata, sai e vem comigo”8, “Sol, girassol, verde, vento solar/ você ainda quer morar comigo”9.

7 Márcio Borges. Os sonhos não envelhecem: histórias do Clube da Esquina. Op. cit., p.315. 8 Nuvem cigana (Lô Borges/Ronaldo Bastos)

Outras imagens são apresentadas em corte vertical, por onde os sentidos se aprofundam na releitura de temas que circulam no cotidiano: “Alguém que vi de

passagem/ Numa cidade estrangeira/ Lembrou os sonhos que eu tinha/ E esqueci sobre uma mesa/ Como uma pera se esquece dormindo numa fruteira”. A canção Um gosto de

Sol (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos), cuja inspiração foi provocada pelo contato de Milton Nascimento com a juventude da Venezuela durante passagem por um festival de música por lá, tem ambiente intimista, composto pela voz e o piano do cantor- compositor. Deslizando as mãos pelas teclas do piano, o toque suave ganha ar de urgência quando os dedos pesam com maior intensidade, arrancando um tom dramático. Delicadeza se converte em força. A voz sobe em falsete, imprimindo agora tom contemplativo – contemplação da tela onde se pinta a natureza morta: uma pera dormindo numa fruteira. Imagem que salta do quadro e interage com aquela voz, metaforizando um estado de espírito. A identificação com aquele estrangeiro convidava ao despertar, ao revigoramento da inquietude que um dia fora sua: “Lembrou o riso que

eu tinha/E esqueci entre os dentes”. No arremate da canção, retorna o tema instrumental

apresentado anteriormente em Cais, mas agora, ao invés de apenas ao piano, ele é executado pela orquestra. O arranjo de Eumir Deodato dá ênfase aos ares de urgência e dramaticidade. A citação de um mesmo tema em duas canções salienta o sentimento de que aquele disco tinha uma unidade tal que favorecia o trânsito de melodias e arranjos por contextos diferenciados, numa espécie de diálogo intermusical em que a parte instrumental ganharia status de voz, a desafiar os limites formais da canção no disco. Inaugura-se aí um sofisticado mecanismo de construção de memória, a partir de emoções fluidas, inacabadas e dispersas, irmanadas pela música e abertas ao porvir. As canções se comunicariam entre si, afinal, para tecer uma trama, embora o resultado não guardasse compromisso com o decifrável, mas antes com o sensível. Ao atentarmos para outra composição, Tudo que você podia ser (Lô Borges/Márcio Borges), temos mais indícios dessas intercomunicações entre canções, pois nela se exorta ao revigoramento da inquietude diante da vida, em lugar de se ceder à acomodação: “Sei

um segredo/ Você tem medo, só pensa agora em voltar/ Não fala mais na bota e no anel de Zapata/ Tudo que você podia ser, sem medo.” A inspiração de Márcio Borges para escrever a letra foi o filme Viva Zapata, de Elia Kazan.10 Ao mencionar Zapata, o líder da Revolução Mexicana de 1910, a canção assume um tom de contestação. O

compositor recorre, portanto, à memória de outro acontecimento para sacudir as oposições ao regime político brasileiro da época. Mas essa citação não aprisiona os sentidos desses versos. O discurso era aberto a várias leituras e, portanto, adequado a situações diversas, sempre que houvesse necessidade de se libertar de comodismos, fossem eles vinculados à vida política ou à intimidade: “Você ainda pensa e é melhor do

que nada/ Tudo que você consegue ser, ou nada”. Como se vê, o trecho citado caberia muito bem em variados questionamentos que nos impomos cotidianamente.

Em relato a Chico Amaral, Milton Nascimento conta sobre o clima político na Venezuela naquele momento do festival e a respeito de seu contato com a juventude daquele país:

E quando a gente chegou, eu vi um canhão meio escondido numa rua. Vi que o clima tava esquisito. Fomos para o hotel, eu e Káritas, que era minha mulher naquela época. Aí teve entrevista para todos os jornais e eu falei tudo o que eu pensava. Como sempre acontece, um pessoal mais novo me procurou. Então apareceram uns estudantes no hotel.11

O convívio com a juventude venezuelana foi intenso. Na sequência do relato, Milton menciona que frequentou a casa de estudantes que moravam em favela. Da convivência com eles, acionou a memória de mais uma canção que comporia o álbum

Clube da Esquina, Dos Cruces: “Foi nessa casa que eu ouvi a mãe deles cantando Dos Cruces, de um jeito muito bonito. Eu conheci a música ainda em Três Pontas, eu e Wagner.”12 A canção que foi apresentada no festival venezuelano, Os Povos, parceria

de Milton com Márcio Borges, também integraria o disco Clube da Esquina. Seu ambiente sonoro, eivado de lamentação e angústia, abriga metáforas que expressam os sentimentos produzidos num cenário político adverso: “Ah, um dia, qualquer dia de

calor/ É sempre mais um dia de lembrar/A cordilheira de sonhos que a noite apagou”.

Desde a dedicatória da canção: “dedicado à juventude consciente da Venezuela”, percebe-se a sintonia entre as sensações que mobilizavam a dupla de compositores em relação ao cenário brasileiro e a atmosfera que Milton captou do clima venezuelano a partir do encontro com a juventude daquele país. O clima político daqui se assemelhava ao de lá, então os reconhecimentos entre os dois lugares se davam pela via do descontentamento e do questionamento da ordem estabelecida. Mas não era apenas isso, pois também as formas de sentir se engendravam de maneira semelhante. Em entrevista

11 Milton em entrevista a Chico Amaral In: Chico Amaral. A música de Milton Nascimento. Belo

Horizonte: Editora e consultoria Gomes, 2013, p. 121.

a Eric Nepomuceno, no mesmo ano em que foi lançado o disco Clube da Esquina, Milton é indagado sobre “a Espanha das Gerais”.

Essa coisa espanhola de que tanto falo? Isso vem de Três Pontas, Minas Gerais. Lá, paira sempre um som de Espanha sobre as casas, sobre as pessoas. Um som espanhol em cada lugar. De lá vem a vontade de gravar “Dos Cruces”. Como o som espanhol de Miles Davis e Gil Evans em Sketches of Spain – isso também tem muito a ver com Minas Gerais.13

Na fala de Milton, a percepção de uma circulação cultural que permite trocas e identificações. Três Pontas, sua cidade, foi o lugar onde teve contato com informações de outras paragens. Aquele canto de Minas Gerais estava em sintonia com outros cantos do mundo através da cultura que consumia. E algumas dessas ‘mercadorias culturais’ reativavam identificações entre povos distantes que, não obstante, guardavam alguns índices de formação cultural próximos. Ecos da Espanha vinham de tempos imemoriais, por meio de festividades religiosas tão presentes na cultura mineira e brasileira. Na mesma entrevista, o artista é incentivado a explanar sobre a tristeza espanhola e reconheceaí uma possibilidade de se criar uma ponte com toda a América Latina:

A tristeza espanhola? É como a tristeza das Gerais. Ela existe do jeito dela. Um jeito diferente das outras tristezas, que são talvez mais novas, e além disso a gente sabe tão pouco dessas coisas... não sei se a sede de Espanha acaba levando para um som hispano-americano. Mas deve ter algo em comum.14

No álbum Clube da Esquina, Milton Nascimento envereda rumo ao que a “gente sabe tão pouco”, mas pressente. Nesse disco aparecem seus laços com o restante do continente latino-americano em exemplos como o da canção San Vicente, parceria com Fernando Brant. Em entrevista ao jornal Correio Braziliense, o próprio Brant comenta sobre San Vicente:

Essa canção expressa o que estava vivendo e o que estava acontecendo na década de 1970 em toda a América Latina. O Bituca tinha feito a música para a peça Os cavaleiros, de José Vicente, interpretada por Norma Bengell. A cidade da peça era San Vicente. Mas acabou que não teve letra e resolvi usar o nome. San Vicente serve para todos os países da América Latina que viviam em situação de sufoco político provocado pelas ditaduras militares bravas. Por isso, falo no sabor de vidro e corte. 15

13 Milton Nascimento em entrevista a Eric Nepomuceno. “Solitário, inquieto, angustiado. Milton

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