• Nenhum resultado encontrado

OS FAZENDEIROS INDUSTRIAIS

No documento MARY DEL PRIORE UMA BREVE HISTÓRIA DO BRASIL (páginas 170-175)

Um dos assuntos mais polêmicos da história brasileira diz respeito à industrialização. Rios de tinta foram gastos em vários escritos a respeito do tema e verdadeiras montanhas de estatísticas digladiam-se, de um texto a outro, com o objetivo de demonstrar diferentes hipóteses. Em um aspecto, porém, a maioria dos pesquisadores parece concordar: ao contrário da evolução ocorrida no mundo europeu, a indústria brasileira não resultou de um lento e progressivo desenvolvimento do artesanato e da pequena manufatura, mas já nasceu grande, na forma de fábricas modernas.

Paradoxalmente, tal situação foi possível graças ao atraso econômico nacional. Na década de 1880, quando aqui começaram a ser implantadas as primeiras indústrias, a maquinaria fabril europeia já contava com cem anos de desenvolvimento técnico, e foi justamente com essa tecnologia importada que teve início nossa industrialização. Contudo, a aparente vantagem apresentava um gravíssimo inconveniente que deixa traços até os nossos dias: ela não estimulou o desenvolvimento de tecnologia industrial própria, muito necessária quando se quer construir máquinas que fazem máquinas ou simplesmente ajustar a produtividade aos padrões internacionais. Dessa maneira, fortes laços de dependência internacional foram gerados, seja pelo fato de as novas técnicas serem caríssimas, seja por serem alvo de monopólios zelosamente protegidos pelas grandes indústrias estrangeiras.

Além disso, a importação de tecnologia serviu de desestímulo ao desenvolvimento educacional. Aliás, não deixa de ser interessante observar que, no Brasil, o inventor, o gênio que da garagem da casa revoluciona o mundo, verdadeiro herói da era industrial, nunca foi um personagem socialmente muito importante. Não que faltasse gente talentosa e criativa, mas sim – vale repetir – pelo fato de aqui, ao contrário do mundo europeu, a industrialização não ter sido resultado de uma lenta incorporação de avanços técnicos à pequena produção manufatureira.

Qual seria então a proveniência dos capitais iniciais das indústrias brasileiras? Quem foram os nossos primeiros empresários? Ora, mais uma vez cabe sublinhar que várias pesquisas convergem para um mesmo ponto: nossa primeira industrialização, 1880-1930, grosso modo, originou-se da importação de máquinas modernas custeadas pelo mundo agrário tradicional. Quanto a isso, o caso paulista, região que se tornaria principal polo industrial do país, é exemplar.

Ao contrário do que se imagina, São Paulo nem sempre foi a região brasileira mais industrializada; até o início do século XX, a região ocupava uma situação relativamente modesta. E em 1907, por exemplo, o censo industrial indicou que a capital federal tinha duas vezes mais fábricas do que os vizinhos do Sul; Minas Gerais, por sua vez, vinha nessa listagem em segundo lugar, cabendo a São Paulo uma modesta terceira colocação, seguida então pelo Rio Grande do Sul. Em relação ao capital investido e à produção por fábrica ou ao número de operários por estabelecimento, a situação não era melhor: os paulistas perdiam em todos esses itens para os pernambucanos, que, por sua vez, ocupavam o sexto lugar na listagem de número total de indústrias brasileiras. Ainda com base nos dados de 1907, é bastante esclarecedor o fato de praticamente 85% da produção industrial nacional estar localizada fora das fronteiras paulistas. Ao contrário do que sugere o divulgado mito de “locomotiva do Brasil”, os habitantes da antiga terra dos bandeirantes não lideraram nosso primeiro processo de industrialização.

Tal qual ocorria em vários lugares, os fazendeiros paulistas investiam os recursos extras da lavoura de exportação na compra de máquinas. Muitos viam nesse investimento uma forma de complementar as atividades agrícolas. Desse modo, não era raro fazendeiros de algodão inaugurarem fábricas de fiação e tecelagem, pecuaristas fundarem fabriquetas de couro e cafeicultores voltarem-se para a produção de vagões e de máquinas que beneficiavam café. Havia ainda aqueles simplesmente interessados em diversificar os investimentos, ampliando assim as fontes de renda familiar; homens como Antônio da Silva Prado e Antônio Álvares Penteado que, entre fins do século XIX e início do XX, foram prósperos fazendeiros de café e, ao mesmo tempo, fundaram vidraria e fábrica de aniagem.

O que, porém, teria levado São Paulo a se tornar o principal polo industrial e quando isso ocorreu? Ora, uma vez mais adentramos em um campo de infindáveis polêmicas, cabendo aqui sintetizar a explicação mais recorrente. Primeiramente, cabe ressaltar que os paulistas possuíam a mais próspera atividade agrícola do país. Desde a década de 1830, o café havia se tornado o principal item da economia brasileira. No ano de 1900, o produto rendia, em exportações, dez vezes mais do que o açúcar, vinte vezes mais do que o algodão e quase trinta vezes mais do que o tabaco; somente a borracha – que estava vivendo seu período áureo – podia rivalizar com o café; mesmo assim, o fruto do extrativismo nos seringais da Amazônia contribuía, no quadro das exportações, com um quarto do que representava a matéria-prima da popular bebida matinal.

Alimentada por férteis terras e por estradas de ferro que viabilizavam a expansão da fronteira agrícola em regiões bastante afastadas do litoral, a lavoura cafeeira paulista, entre 1886 e 1910, aumentou sua participação na produção nacional de 42% para 70%, deixando muito para trás seus vizinhos fluminenses. Números ainda mais impressionantes quando recordamos que, na última data mencionada, o Brasil controlava cerca de 75% da produção mundial, o que significava dizer que os paulistas produziam aproximadamente metade do café

comercializado no mundo; produção que, em 1906, implicava a exportação de algo não muito distante de um bilhão de quilos!

Ora, tal situação garantia o ingresso de polpudas rendas para a economia local, ampliando o mercado consumidor e as fontes de renda para o investimento fabril. Além de contar com recursos abundantes que podiam ser canalizados para a indústria, os paulistas dispunham ainda de outras vantagens que os capacitavam a superar industrialmente as demais regiões brasileiras. Uma delas foi a de ter recebido milhões de imigrantes europeus, que competiam com os ex-escravos no mercado de trabalho, fazendo com que, até aproximadamente a década de 1920, os salários localmente pagos fossem inferiores aos despendidos por empresários cariocas e gaúchos; havendo casos, como o das indústrias de vestuário e de calçado, em que tais vencimentos eram até inferiores à média nacional, incluindo aí as regiões nordestinas atrasadas.

Transformações políticas também contribuíram para a prosperidade econômica paulista. Conforme mencionamos em outro capítulo, durante o Império, a província de São Paulo contribuía muito mais em impostos do que recebia em benefícios e investimentos públicos. Ora, a República, ao inaugurar o federalismo fiscal, em muito ampliou as verbas orçamentárias de prefeituras e do governo estadual, dando origem localmente ao que denominamos anteriormente de belle époque: um período de grandes obras públicas e de ampliação dos espaços urbanos. Obras e reformas que geravam milhares de empregos, incentivando o crescimento das cidades – sendo o exemplo mais impressionante o da capital paulistana, cuja população, entre 1872 e 1914, aumentou de 23 mil para 400 mil habitantes – e multiplicando o mercado consumidor de produtos industriais, como o de calçados, vestuário, bebidas, etc.

Por outro lado, São Paulo soube reagir com criatividade às crises econômicas. Como ocorria desde o período colonial, a expansão local da lavoura de exportação acabou gerando problemas de superprodução. As curiosamente denominadas safras-monstros levavam a drásticas variações de preço do café. Assim, ao compararmos os anos de 1890 e 1906, constataremos que, em libras esterlinas – moeda de referência da época –, houve uma queda pela metade no preço internacional do produto-rei da economia brasileira. Os paulistas, após amargarem por mais de uma década, reagiram à crise promovendo, em 1906, o que ficou conhecido como Convênio de Taubaté, reunião dos produtores brasileiros com o objetivo de lançar uma política de valorização do café. Tal política consistia na compra, estocagem e até destruição da mercadoria, com o objetivo de manter ou recuperar seu preço internacional. Embora produtores mineiros e fluminenses tenham sido reticentes a medidas tão radicais, elas, com o apoio do governo federal e de empréstimos internacionais, acabaram sendo implantadas. Contrariando as expectativas liberais da época, a valorização obteve êxito: entre 1907 e 1915, o preço internacional do café praticamente dobrou. O alívio foi tal que as safras-monstros de 1917 e 1921 acabaram – com sucesso,

diga-se de passagem – sendo enfrentadas da mesma maneira. Em 1925, a defesa do café torna-se permanente. Essa política, se não salvou a economia paulista da crise de 1929, pelo menos em muito diminuiu seus efeitos, preparando, já no início da década de 1930, uma retomada local do crescimento econômico.

A prosperidade da economia paulista, por sua vez, abriu caminho para que muitos imigrantes ascendessem socialmente. No entanto, raros foram os casos como o do sapateiro português Antônio Pereira Ignacio, fundador das fábricas Votorantim, que, começando a trabalhar aos 11 anos de idade, criou um império. Na maioria das vezes, os imigrantes empresários já chegavam com algum recurso ou eram originários da classe média e traziam consigo um importante capital: o capital cultural, ou seja, vinham qualificados do ponto de vista da educação formal. Esses foram os casos de Alexandre Siciliano, Antônio de Camillis ou, para citar o mais famoso deles, Francisco Matarazzo. Além disso, tais imigrantes nem sempre se dedicavam imediatamente à atividade industrial. Muitos atuaram primeiramente na agricultura de exportação ou no comércio interno de alimentos, reproduzindo assim uma trajetória social típica dos fazendeiros industriais.

Porém, durante a belle époque, a expansão econômica paulista esteve longe de ser uma marcha triunfal rumo à modernidade. Havia aspectos nefastos na política de valorização. Um deles dizia respeito ao estímulo para que surgissem novos países produtores. O aumento da oferta fazia com que os mercados internacionais ficassem cada vez mais exigentes em relação ao produto, levando à progressiva marginalização das regiões com cafezais antigos. Por outro lado, a estocagem era um recurso que não podia ser utilizado indefinidamente, o que levava, em alguns períodos, à destruição do produto, conforme observou Blaise Cendrars: “De 1929 a 1934, durante os anos cruciais da crise financeira mundial o IDC [Instituto de Defesa do Café] destruiu 36 milhões de sacos de café. Cargas de café foram atiradas ao mar. Queimou-se café nas caldeiras das locomotivas. Em Santos, uma montanha de sacos de café empilhados uns sobre os outros ardeu dia e noite durante todos os anos da crise e talvez até a declaração de guerra. Digamos uns 50 milhões de sacos... Era um absurdo”.

Além de “queimar” recursos que poderiam ter sido utilizados nas indústrias, a defesa do café tinha ainda outros efeitos negativos. Ela criava fortíssimas pressões pela desvalorização da moeda da época, mil-réis, encarecendo a importação de maquinário industrial. Pressões, aliás, nada desprezíveis, pois, ao receberem o pagamento pela venda do café em libras esterlinas, os fazendeiros lucravam muito com a desvalorização da moeda nacional.

Tendo em vista essa relação, ao mesmo tempo complementar e contraditória, entre lavoura exportadora e indústria, compreende-se por que não houve uma veloz revolução industrial paulista, mas sim um processo de transformação econômica lento e cheio de percalços. A mesma afirmação é, com certeza, válida para o resto do Brasil, que somente em meados da década de 1940 assistiu à indústria superar a agropecuária no conjunto das riquezas nacionais.

Outro aspecto importante para explicar nossa industrialização tardia diz respeito à oposição intelectual feita a ela. Não foram poucos os que a encaravam como uma “criação artificial” da sociedade brasileira. Posição partilhada por conservadores, opositores a todo e qualquer tipo de indústria e à própria vida urbana a ela associada, assim como por liberais ortodoxos, que defendiam o emprego dos capitais nacionais na agricultura, deixando a importação ou a produção de artigos industriais a cargo de companhias estrangeiras.

Uma vez que essa posição encontrava numerosos adeptos entre políticos e ministros, não é de se estranhar a boa acolhida dada ao capital internacional. Embora em uma escala bem menor do que a registrada na década de 1950, esses investimentos atingiram, durante a República Velha, numerosos e diversificados setores de nossa economia. Entre estes, incluíam-se ramos tradicionais, como os das estradas de ferro e de bondes, ou ramos vinculados à energia, como os investimentos da Light e da General Electric, ou à indústria farmacêutica, com os investimentos da Rhodia e da Bayer, ou ainda atividades vinculadas à fabricação de carros e pneus, com a instalação da fábrica da Ford e da Goodyear. Empresas aqui instaladas nos anos 1920, data, aliás, em que São Paulo desponta como principal centro industrial, relegando o Rio de Janeiro ao segundo lugar.

26

No documento MARY DEL PRIORE UMA BREVE HISTÓRIA DO BRASIL (páginas 170-175)