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Fazendo aparecer outros tipos de conhecimento: a potencialidade dos ESCT a partir das aproximações com Michel Foucault

Grande parte dos sociólogos dos estudos sobre ciência e tecnologia tem argumentado que a abordagem dos ESCT é tributária do pensamento de Michel Foucault, não obstante o reconhecimento de marcadas diferenças que permeiam as distintas trilhas teóricas (DOMÈNECH; TIRADO, 1998, p. 20 e ss.; LATOUR, 1986, p. 277; LAW, 1994). Algumas aproximações entre a perspectiva de Foucault, especialmente a genealogia, e os ESCT revelam um potencial crítico que deve ser melhor explorado, sobretudo para questionar as condições e os efeitos da produção científica. Importante salientar, também, conforme pretendemos esclarecer mais adiante, que as perspectivas teóricas mencionadas adquiriram o papel fundamental de pôr em evidência as rupturas e transformações de diversas formas de conhecimento que estavam até então “escondidas” sob um estatuto de ciência hegemônico.

Inicialmente, é relevante mencionar que existe uma sintonia entre o pensamento foucaultiano e os ESCT em torno da discussão sobre a verdade, no sentido de que ambas as perspectivas teóricas evidenciam a necessidade de desvinculá-la de um panorama frio e asséptico pretendido por certas epistemologias e situá-la no âmbito da produção, um cenário em que o político, a guerra e o domínio são moedas comuns (DOMÈNECH; TIRADO, 1998, p. 20).

O projeto genealógico foucaultiano, portanto, guarda importantes semelhanças com os ESCT, dentre as quais podemos citar:

a) a ideia de ciência como forma de discurso entre outros possíveis, em que um dos efeitos principais é o “efeito de verdade”;

b) a atitude antiessencialista diante de supostas entidades naturais que as Ciências tomam como objetos de estudo preexistentes;

c) os objetos aparentemente naturais são efeitos de práticas objetivadoras (ou normalizadoras);

d) o interesse pela aparição de conflitos que definem e liberam um espaço dado. Os sujeitos não preexistem às relações conflitivas ou harmoniosas, mas, pelo contrário, aparecem sobre um campo de batalha e é assim que tem definidos seus papéis;

e) invertendo o princípio de Clausewitz, a política é considerada “a guerra continuada por outros meios” (FOUCAULT, 1999b, p. 22). As relações de poder têm origem na guerra e o poder político, longe de instalar a paz, tem o papel de reinscrever, perpetuamente, esta relação de força; os enfrentamentos em que o poder se vê envolvido hão de ser interpretados como a continuação da guerra; a decisão final provém da guerra.

f) a descrição da ciência e da atividade dos cientistas em termos de dominação, assujeitamento e luta. Tanto a genealogia como os ESTC procuram evidenciar como atores e coletividades articulam concepções de mundos (naturais e sociais) e tratam de impô-las aos outros.

Trata-se, portanto, de duas perspectivas teóricas que, guardadas suas diferenças, evidenciam o caráter produtivo da adoção de um modelo de cientificidade, no sentido de arguirem que a adoção de determinada postura científica orienta, de maneira decisiva, os programas profissionais, as pesquisas e as políticas de financiamento de determinada área do conhecimento. Nesse sentido, o valor de verdade atribuído a um saber qualificado de “científico” não é dado a priori, ou seja, a sua “inserção” na vida social como um conhecimento legítimo não depende de sua coerência interna. Por essa razão, os ESCT, com clara referência à genealogia de Foucault, não operam no nível epistemológico dos conhecimentos, eis que, mesmo sendo insustentáveis do ponto de vista epistemológico, tais conhecimentos podem sobreviver incólumes, em termos de eficácia política.

Para Latour (1986), os ESCT devem tratar o poder como um efeito do fazer científico, e não como causa de seu eventual êxito. Nesse sentido, afirma que a ciência é

o exercício da política por outros meios. Segundo tal visão, a ciência não é explicada por processos causais que evidenciariam um interesse social ou político predeterminado, mas possuiria antes a capacidade de “reorganizar [e produzir] a vida social ao convencer os atores de que é o legítimo porta-voz de novas e poderosas entidades” (LAW, 1998, p. 68).

Vera Portocarrero refere que a perspectiva de Latour conforma a visão genealógica, pois procura dar ênfase às relações de força no fazer científico, na tentativa de superar a dicotomia entre ciência e sociedade:

É este o argumento de Latour: as bactérias, as enzimas, os elementos, as partículas, que saem dos laboratórios, definem-se por operações que geram inscrições a eles associadas. O número, a natureza, os poderes dos atores não são permanentes, mas transformados por traduções e pelos estados da rede – pelas inter-relações dos porta-vozes que a constituem. Sua realidade depende do que dizem os enunciados, a não ser quando se manifesta uma resistência, quando os efeitos de uma ação entram em conflito com associações já estabelecidas (PORTOCARRERO, 2009, p. 48).

É importante salientar, por fim, que os aportes teóricos aqui mobilizados fornecem importantes recursos para compor a análise da problemática da reflexividade do conhecimento científico. Eles põem em xeque o protagonismo do especialista na produção, transformação e estabilização do conhecimento científico. Seja na capacidade de resistência oferecida pelos actantes não-humanos (teoria ator-rede), seja na possibilidade de produção de estratégias de contracondutas antigovernamentais oferecidas por uma reformulada noção de verdade (arqueogenealogia), o especialista ganha a companhia de outros elementos – tão importantes quanto ele – na produção do conhecimento científico.

Se a incipiente sociologia do conhecimento e da ciência propôs, de forma pioneira, estudar as proposições relacionais entre ciência e sociedade, a questão colocada agora é feita nos seguintes termos: se o conhecimento em si não é o único fator que define a produção do conhecimento científico – visto que sua hegemonia e sua verdade está atrelada à capacidade de configurar práticas sociais e não apenas “revelar” determinado objeto – como as transformações na compreensão acerca da verdade são capazes de alterar as próprias práticas dos porta-vozes do discurso científico? As pistas teóricas foram traçadas acima. É preciso agora esmiuçá-las no caso da Psicologia aplicada ao sistema prisional.

2 O ADVENTO E CONSOLIDAÇÃO DAS TÉCNICAS PSICOLÓGICAS NA