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3 O DIREITO À BUSCA DA FELICIDADE NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988

3.1 Felicidade como necessidade

A partir do momento em que houve essa transição do Estado Liberal, marcado pelo pensamento lockeano, para o Estado do Bem-Estar Social, veio sendo construído no Brasil um novo papel do Estado que passaria a ser o de buscar estruturar a sociedade de forma a fazê-la experimentar uma harmonia mais concreta e um bem-estar social de fato.

O Estado, falando com enfoque no brasileiro mais especificamente, passa a ser o facilitador do bem-estar de sua população, que é agora encarado como o fim precípuo da

sociedade. A ideia é de que uma comunidade que consegue instaurar o bem-estar social é, além de mais justa, mais ligada à proteção de direitos e liberdades, que faz com que sejam prezadas a igualdade e a dignidade de seus cidadãos: “la categoria de necesidades básicas o

fundamentales – no cualquier tipo de necesidades – tiene un lugar em el razionamiento sobre la justicia”43.

A fim de ilustrar de forma mais clara os conceitos de necessidade, apresentam-se, então, neste capítulo, os pensamentos de Maria José Añón Roig, professora titular do Departamento de Filosofia do Direito, Moral e Política da Universidade de Valencia, contidos em seu livro

Necesidades y Derechos, um ensayo de fundamentación43. A autora fez uma análise esmiuçada da teoria das necessidades de Marx, que foi seguida posteriormente por Agnes Heller44, de quem é discípula. Tal teoria serve até hoje para a discussão acerca das necessidades concretas do homem e por isso aqui utilizada – sem que se adentre o espaço de discussão entre o modelo socialista marxista e o capitalista atual, que não é a pretensão do trabalho.

Seguindo o pensamento acerca do conceito de necessidade, nota-se que é intrínseco ao conceito de justiça que passou a ser experimentado pelas sociedades a partir do século XX. María José Añón Roig afirma que as necessidades humanas não aparecem fora de um contexto social específico e estão afetadas diretamente por valores pessoais e coletivos. Dentre diversas perspectivas teóricas diferentes, com a intenção de elaborar um conceito de necessidades humanas, a autora destaca que o alcance normativo das necessidades encontra espaço dentro do raciocínio sobre a justiça, estando estreitamente relacionado com a vida cotidiana.

Assim, as necessidades se desdobram dentro do contexto de justiça distributiva e correspondem à relação entre o homem e o mundo que o rodeia, vez que os fatores sociais determinam o âmbito das necessidades humanas dentro de um contexto histórico e social. Assim, as necessidades são produto da ação humana, como já defendia Marx à sua época, sendo

43 ROIG, María José Añón. Necesidades y derechos, um ensayo de fundamentación (ROIG, 1994, p. 21). 44 Filósofa húngara ainda viva, antiga professora de sociologia na Universidade de Trobe, na Austrália e atual professora da New School for Social Research, em Nova Iorque, é uma das mais influentes pensadoras da segunda metade do século XX. Sobreviveu ao holocausto e se tornou discípula de Marx, através dos ensinamentos de Georg Lukács. Tornou-se dissidente na Hungria comunista e acabou se exilando na Austrália. Sua teoria afirma que o ser humano nasce do cotidiano e, a partir daí, passa a produzir suas reflexões, teorias, concepções políticas e filosóficas.

tidas como desejos conscientes capazes de motivar uma ação ou uma intenção dirigida a um produto social desejado.

Por mais que as necessidades humanas básicas apresentem um caráter pluralístico e não permitam um estabelecimento concreto de medidas quantitativas para sua determinação, dentro do cenário brasileiro, as necessidades estão claramente abarcadas pela defesa do Estado do Bem-Estado Social e dos direitos fundamentais dos cidadãos. A justiça e o resguardo dos direitos básicos e inerentes ao homem, no âmbito jurídico brasileiro, representam a defesa das necessidades humanas básicas e, consequentemente, do padrão mínimo de felicidade do indivíduo.

O conceito de necessidade humana estaria perpassando pelo conceito de justiça e promoção de dignidade. Assim, conferir caráter de necessidade para a felicidade é o mesmo que permitir que seja realizado o processo de justiça social através da ação humana e estatal. Com isso, entende-se que os produtos sociais justiça, igualdade, liberdade, dignidade e

felicidade são desejos dos quais nascem as necessidades humanas no contexto brasileiro.

Uno de los critérios más generales que se tomam en consideración para definir las necesidades es la consideración de que éstas consisten en una “falta de” o em um estado de carencia45.

Assim, Maria Jose Añón Roig afirma que as necessidades só podem ser entendidas como um resultado de carências de poder aquisitivo, a privação daquilo que pode ser entendido como básico ou imprescindível, passando assim por uma noção de dano. Esse fundamental humano pode ser alcançado com o auxílio do Estado, desde a promoção de um padrão educacional básico a todos os cidadãos de forma igualitária, até o fomento da procura por trabalho, que, com isso, gera poder aquisitivo ao indivíduo e o possível cuidado com outros fatores como saúde, transporte, lazer etc.

Vê-se novamente, portanto, que a supressão da necessidade ocorre com o alcance dos direitos básicos. Essa carência que cria a necessidade da pessoa é finalizada com a promoção desses direitos sociais básicos e, com isso, o indivíduo tem em mãos as ferramentas capazes de

lhe gerar felicidade, seja ela como for. Muitas das propostas de supressão das necessidades básicas do homem, portanto, partem da noção de qualidade de vida.

No que diz respeito à Constituição Brasileira, com a missão de defender a felicidade individual para se chegar à harmonia geral, as instituições públicas são chamadas a levar esse trabalho à frente. Isso porque

El ser humano, como ser vivo constituye un organismo y por tanto depende del médio exterior en el que vive, es un organismo autónomo sólo relativamente, ya que no puede existir sin intercâmbios de asimilación y desgaste respecto al exterior46. Em outras palavras, para a sustentação de seus direitos e atendimento de suas necessidades, o homem depende não somente da sua vontade, mas também do meio exterior. Esse meio exterior é composto pelos demais cidadãos e pelo Estado. Portanto, esse atendimento às necessidades humanas tem três protagonistas: a própria pessoa, o Estado como promotor e mediador desse alcance e os demais indivíduos componentes do corpo social.

El sistema social, em concreto el sistema capitalista, introyecta em los sujetos aquellas necesidades que entende como imprescindibles para sobrevivir como sistema. Em definitiva, el sistema controla al sujeto a través de sus necessidades47. Assim, no sistema social e capitalista em que se encontra o Brasil, a felicidade como necessidade é tida, na Constituição de 1988, como o espelho da defesa dos direitos sociais, além de produto da leitura das noções de liberdade, igualdade e as condições de autonomia individual. Isso porque o atendimento a esses fatores é necessário para a sobrevivência do indivíduo no sistema em que se insere.

Esses direitos básicos do ser humano estão dispostos no artigo 6º da Constituição Brasileira e são a base necessária para uma vida digna. Tendo a felicidade uma ligação direta com a dignidade, já que não há como ser feliz sem uma vida digna, essa ligação persiste entre felicidade e necessidade da manutenção dos direitos sociais e das liberdades individuais.

Quando se faz a relação entre felicidade e necessidade, nada mais está se fazendo do que afirmando que se sentir feliz é algo necessário para o homem. Mas, é claro, esse sentimento que

46 Ibid., p.28

perpassa gerações é almejado por todo e qualquer indivíduo, como já discutido em larga escala nessa pesquisa.

Sendo assim, listando-se basicamente o que, em linhas concretas, faz o homem feliz perpassa-se necessariamente pelos direitos sociais, uma vez que direitos como educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados, dentre outros, formam a base de uma vida digna. Fora tudo isso, evidentemente que existem outros modos de ser feliz e outros meios capazes de gerar felicidade. Mas a felicidade como direito social é exatamente isso: a necessidade de se ter o mínimo para ser feliz, cada qual do seu modo e na sua intensidade.

Portanto, não depende somente do Estado essa produção de efeitos advindos do resguardo dos direitos sociais, mas também da sociedade, que tem o direito de não só se valer dessas ferramentas estatais para a busca de sua felicidade individual, como também o dever de resguardar a felicidade do outro. Assim, a felicidade não é só uma necessidade individual, mas coletiva. Daí o momento histórico constitucional brasileiro ser abarcado pelo espírito solidário.

El objetivo que subyace a casi todas las concepciones sobre necesidades se encuentra en dar razón de por qué algo ha de ser realizado o satisfecho em orden a que el sujeto de la necesidad cumpla su función como ser humano48.

Num primeiro momento, a felicidade é a necessidade de se satisfazer o desejo de uma vida digna, que é elemento crucial para que o ser humano cumpra sua função na sociedade. Necessidade básica ou fundamental como essa não depende do sujeito. É uma necessidade não-intencional.

A partir daí, a felicidade se torna não somente um sentimento subjetivo almejado pelo indivíduo, mas também um objetivo do instituto da cidadania constitucional. Saber defender a sua felicidade, através de sua liberdade, e a felicidade do outro, através do respeito à igualdade e da percepção de dignidade humana, é saber viver em sociedade. Além disso, ela é uma necessidade geral que obrigatoriamente se liga à defesa do aparato mínimo que o Estado tem o dever de proporcionar – os ditos direitos sociais - e ao respeito às igualdades e liberdades que o corpo social tem o dever de zelar.

48 Ibid, p.30.

Assim, tendo a sociedade civil como um sistema de necessidades, como afirmava Hegel49, e um conjunto de instituições criadas com o intuito de proteger a propriedade, a liberdade pessoal e tudo que a elas envolve, pode-se afirmar que a satisfação individual é produto do esforço individual, mas também da satisfação das necessidades de todos os membros da sociedade civil e do esforço coletivo. A sociedade é, assim, uma totalidade de indivíduos que perseguem seus próprios interesses, a fim de suprir suas necessidades particulares através do auxílio das instituições públicas, tendo atenção à necessidade e interesse dos demais. Passa- se a entender, então, o indivíduo como coprodutor da felicidade e corresponsável pelo desenvolvimento da comunidade solidária. Assim, o homem não é visto somente como o fim do Estado do Bem-Estar Social, mas um meio instrumental de seu desenvolvimento. Isso serve para entender que o conceito de felicidade como necessidade se atenta ao entendimento filosófico da Antiguidade Clássica e teórico liberal, levantado na presente pesquisa, que já embasava a noção de que só há satisfação individual, isto é, alcance da felicidade individual, com a integração entre esforço próprio e esforço do todo.

Isso também serve para demonstrar que não depende somente do Estado o alcance da felicidade individual e geral. Mesmo o Estado buscando entregar nas mãos da sociedade os meios capazes de tornar a felicidade realmente palpável, a população tem proporcionalmente o mesmo dever de não somente promover a felicidade própria e coletiva como não agir de forma a diminuir ou evitar a mesma.

Se a necessidade é guiada pela vontade, e a vontade maior do homem é conquistar os caminhos para ser feliz, a felicidade guia a necessidade. E para ser feliz é necessário manter a satisfação dos direitos básicos, a grande necessidade da vida humana. A satisfação das necessidades nada mais é do que o meio para alcance da felicidade.

Portanto, ao se falar em felicidade como necessidade dentro dos princípios normativos positivos que regem o constitucionalismo brasileiro, tem-se a esfera do direito social como norte desse entendimento. Além disso, a falta de felicidade e de fatores que contribuem para tal direito

49 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (Stuttgart, 27 de agosto de 1770 – Berlim, 14 de novembro de 1831): filósofo considerado um dos mais influentes do idealismo alemão do final do século XVIII e início do século XIX. Criticava veemente o iluminismo, desenvolvendo uma filosofia dita capaz de compreender o absoluto e desenvolver um saber absoluto. Filósofo da totalidade, do fim da história e da dedução da realidade do homem a partir da identidade. Sua filosofia aparece dividida em três momentos: tese (revolução), antítese (terror subsequente) e síntese (estado constitucional de cidadãos livres). Sua visão é precursora do totalitarismo do século XX.

e sentimento leva à necessidade. É a interrelação clara entre felicidade e necessidade. A falta do suprimento das necessidades básicas do cidadão leva à infelicidade.

Sendo assim, o direito à busca da felicidade é debatido dentro da esfera de defesa dos direitos sociais que fazem com que as mínimas necessidades humanas de sobrevivência sejam resguardadas, além da observância das liberdades, da igualdade e da dignidade humana, tanto pelo Estado quanto pelos próprios indivíduos. As necessidades básicas do indivíduo são tidas como o fundamento dos direitos e, na presente pesquisa, do direito à busca da felicidade.