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A FELICIDADE NO NEOPLATONISMO PLOTINIANO

Em Plotino (204-270), o problema da felicidade reaparece revestido de uma perspectiva inteiramente distinta da que vinha sendo discutida em sua época. Uma vez compreendida num perspectiva terminantemente transcendente, conforme observa Linguiti: Plotino

pôs fim ao longo período de pluralismo, durante o qual as diferentes escolas tinham produzido representações concorrentes de Platão (428-338 a.C.), quer fosse a favor ou contra os aristotélicos, pitagóricos, estóicos ou céticos89.

Todavia, conforme observa Marcos Costa, “na realidade o que encontramos em Plotino é uma tentativa de conciliação ou síntese entre Platão e Aristóteles e não só desses dois pensadores, mas de várias outras correntes filosóficas da Antiguidade [...]”90.

A teoria fundamental de Plotino parte das três hipóstases, isto é, realidades eternas que procedem umas das outras. Em sua ontologia/cosmologia, Plotino afirma a existência de três hipóstases primordiais ou inteligíveis, além do mundo sensível.

Na primeira hipóstase, acima de tudo, até mesmo do Ser ou ainda para além do Ser, está o Uno, o Super-Bem, que é transcendente, perfeito, eterno, infinito e necessário, ponto de partida das outras duas hipóstases91, razão de ser de toda a unidade, causa primeira da existência e do agir de todas as coisas. Conforme diz o próprio Plotino:

Há um princípio único que governa o universo, e é um erro supor que esse poder esteja atribuído aos astros, como se não houvesse um senhor único de quem depende o universo, e que distribui a cada ser um papel e funções conforme sua natureza. Não reconhecer isso é destruir a ordem de que fazemos parte, é ignorar a natureza do mundo, que supõe uma causa primeira, um princípio cuja ação tudo penetra92.

Cícero Bezerra, comentando essa questão diz:

A hipótese do Uno – Bem de Plotino, contrasta com duas visões determinantes na história da filosofia grega: Parmênides e Aristóteles. Segundo Plotino, quando Parmênides de Eléia formulou seu clássico argumento ‘pois pensar e ser são o mesmo’ (to gar auto noein te kai einai), reduziu o Ente à Inteligência, colocando-o entre as coisas sensíveis. Do

89 LINGUITI, Alessandro. Plotino. In: PRADEAU, Jean-François (org.). História da filosofia. Prefácio e trad.

de James Bastos Áreas e Noéli Correa de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC - Rio. 2011. p.104.

90 COSTA, Marcos Roberto Nunes. O problema do mal na polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho.

Porto Alegre: EDIPUCRS; Recife: UNICAP, 2002. p.160.

91 DUROZOI ; ROUSSEL, 2005, p.371.

92

PLOTINO. Enéada II: a organização do cosmo. Trad., introd. e notas de João Lupi. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 29.

mesmo modo, quando afirma Aristóteles que o Uno é ‘transcendente’, mas que pensa a si mesmo, compreendeu-o não como o Primeiro, dado que, como diz o próprio Plotino, o Uno – Bem nem conhece nada nem tem nada que desconhecer, mas, sendo uno e estando em si mesmo, não necessita pensar a si mesmo93.

Da primeira hipóstase deriva a segunda, também chamada de processão94, Inteligência, Espírito, Logos ou Nous. Ela é uma cópia do Uno, e embora tenha sido concebida diretamente do Uno, sendo a mais perfeita de todas as processões, não tem a unidade perfeita, posto que, marca o início da multiplicidade. Referindo-se a ela, diz Cícero Bezerra:

A inteligência em Plotino, corresponde às ideias de Platão, à Forma aristotélica e ao deus supremo dos estóicos, mas com uma particularidade: Plotino é o primeiro filósofo grego a não colocar a inteligência como princípio supremo. A Inteligência é um deus, mas, um deus múltiplo que contém todos os seres e, por isso, é modelo do mundo sensível95.

93 BEZERRA, Cunha Cícero. Compreender Plotino e Proclo. Petrópolis: Vozes, 2006b, p. 66. ”. Igualmente

diz KLIMER, Federico ; COLOMER, Eusebio. Plotino. In: Historia de la filosofía. Madrid: Editorial Labor, 1961. p. 110: “o Uno é o Ser supremo sobre todas as essências determinadas e finitas. Primeiro Princípio de todas as coisas, compreende em si toda a realidade e, no entanto, não possui nenhuma determinação. Não é ente, porque o ente expressa já alguma determinação. Não é entendimento, senão sobreentendimento, que existe antes ao entendimento, pois este é já uma forma de ser e supõe certa distinção entre o sujeito conhecente e o objeto conhecido. Sequer se pode dizer que o Uno, dotado de entendimento, poderá ao mesmo tempo conhecer-se a si mesmo, pois num entendimento próprio encontra-se alguma dualidade, posto que o mesmo sujeito é ao mesmo tempo inteligente e entendido, o qual repugna a unidade pura e simples do Uno. Não está em movimento nem em repouso, nem é substância, nem espírito, etc. Em uma palavra, é tal que nada pode predicá-lo, posto que está acima de tudo ”. Por isso, QUILES, Ismael. Plotino: a alma, a beleza e a contemplação. Trad. de Ivan Barbosa Rigolin e Consuelo Colinvaux. São Paulo: Centro Editor - Associação Palas Athena, 1981. p. 18, diz que “o nome Uno é dado por Plotino após ter buscado em vão outro com que expressá-lo”. Ou seja, na impossibilidade de dizer positivamente o que é o Uno, Plotino acabou por buscar defini-lo pelo que ele não é, iniciando a chamada “teologia negativa”, onde se nega toda determinação e toda predicação, conforme diz BUSSOLA, Carlo. Plotino: a alma no tempo. Vitória: FCAA/UFES, 1990. p. 35: “pela impossibilidade humana, o Uno não pode ser nem aproximadamente descrito, a não ser por meio de negações, como, por exemplo, ‘o Uno não é material’, ‘o Uno não é finito’, ‘o Uno, princípio de todos os entes, é um não-ente’, etc.”.

94 Segundo ALSINA CLOTA, José. El neoplatonismo: síntesis del espiritualismo antiguo. Barcelona:

Anthropos, 1989, p. 53, é possível que Plotino tenha despertado para a idéia de processão a partir do estranho conceito emanatista de criação do pensador judeu-helenístico Fílon de Alexandria: “Em Fílon, Deus, que é inteiramente transcendente, cria a partir da superabundância de sua perfeição. O emanatismo filoniano reaparecerá em Plotino, ainda que em forma completamente distinta. O processo através do qual se produz a criação se chama, na terminologia plotiniana, próodos, que os modernos têm traduzido por processão”. Em As Enéadas, Plotino fala da processões como de uma sucessão de círculos concêntricos, surgidos a partir de um único ponto: “Existe qualquer coisa que poderia dizer-se centro: ao redor deste, há um círculo que irradia o esplendor emanante daquele centro; ao redor deste (centro e primeiro círculo), um segundo círculo, luz da luz” (En. IV, 3, 17).

95 BEZERRA, 2006b, p.78. Igualmente diz SANTA CRUZ, María Isabel. Introducción. In: Plotino: textos

fundamentales. Sel. Trad. y notas de María Isabel Santa Cruz. Buenos Aires : Eudeba, 1998. p. 15: “seguindo a linha do platonismo que o precede, Plotino reúne na inteligência o primeiro motor aristotélico com o mundo platônico das idéias. A inteligência é pensamento que pensa a si mesmo e ao pensar-se pensa o mundo de Idéias ou paradigmas, que constitui seu próprio conteúdo, sua própria estrutura interior. O inteligível se multiplica em uma infinita pluralidade de inteligíveis que, ainda que distintos entre si, não estão separados; constituem um cosmos animado por uma vida única e universal, uma totalidade orgânica e dinâmica em que cada idéia é simultaneamente uma inteligência”.

Por fim, encerrando o mundo inteligível, vem a Alma Universal, também chamada Alma do Mundo, terceira hipóstase espiritual. Ela, olhando para a segunda processão, plasma todos os seres, animando as almas individuais, inclusive as dos homens. Ela marca a passagem ou está no limite entre o mundo inteligível e o mundo sensível. Nesse sentido,

Em Plotino, o que diferencia o mundo inteligível do mundo sensível é o caráter de unidade e simplicidade inerente a cada um. No mundo inteligível a processão está marcada, unicamente, pelo movimento dialético, enquanto que, no mundo sensível, a unidade se converte numa multiplicidade confusa96.

Com base nessas breves noções da cosmologia plotiniana, podemos retomar, mais propriamente, à questão da felicidade, lembrando que a mesma foi tratada por Plotino, mais especificamente na Enéada I. Nessa obra, ele introduz a questão fazendo uma crítica às teorias vigentes em sua época, as quais defendiam que a felicidade seria a harmonia da alma, a consecução do fim natural, a vida de prazer, a imperturbabilidade da alma. Contrapondo tais concepções, diz Plotino:

A felicidade resulta de uma espécie distinta de vida. Não me refiro a uma espécie de vida logicamente contradistinta de outra do mesmo gênero, mas como dissemos que uma coisa é anterior e outra posterior97.

Voltando à estruturação da cosmologia/ontologia plotiniana, lembramos que na Alma do Mundo se conclui a processão das hipóstases inteligíveis e dá-se início ao mundo físico. Esta alma é concebida como fruto da degradação, como limite imposto pela própria imperfeição do que é informe, sendo, juntamente com o Nous, a contrapartida do Uno perfeito, a máxima ausência de suma causa puramente formal que Ele representa. No mundo sensível encontra-se a maior privação possível do Uno, a ponto de este ser visto como uma instância má. É possível que esse equívoco tenha se derivado da relação corpo (matéria) e alma, onde Plotino assegura: “a alma exerce melhor suas atividades sem o corpo”98. Contudo, o mal não aparece como pura negatividade no sistema plotiniano, posto que ele seja visto apenas como ausência do bem, tratando-se tão somente de uma noção de mal pela privação do próprio bem.

96 BEZERRA, 2006b, p.75. 97

PLOTINO. Enéada I. Trad. e notas Jesús Igal. Editorial Gredos. 1996, p.56. ISBN: 84-395-5357-9. Disponível em: <http://www.olimon.org/uan/plotino-eneada_1.pdf>. Acesso em: 27 de maio de 2012 (La felicidad se origina en una especie distinta de vida. Quiero decir no en una especie de vida lógicamente contradistinta de otra del mismo género, sino como decimos que una cosa es anterior y otra posterior).

98 PLOTINO. Enéadas I, II e III – Porfírio, vida de Plotino. Introd, trad e notas de José Carlos Baracat Júnior.

Campinas: [s.n.], 2006, p. 323. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/>. Acesso em: 13 de julho de 2012

Segundo esse pensador, aqueles que investigam sobre a origem do mal precisam, primeiro, definir o que é o mal e qual é a sua natureza, embora ressalve:

Todavia, não teríamos caminho para conhecer a natureza do mal por uma das capacidades em nós, uma vez que o conhecimento de todas as coisas se dá através da semelhança. Pois o intelecto e a alma, porque são formas, produziriam conhecimento também a partir de formas e para elas estaria voltado seu desejo; mas como alguém poderia imaginar o mal como uma forma, se ele se manifesta na ausência de todo bem?99.

Logo, o mal acaba por ser necessário, pois, “se há uma processão inevitável que começa no Uno, também deve haver o termo dessa difusão que é matéria, aquilo que não guarda mais nada Dele. O sensível não é o não-ser, mas ‘somente o outro ser’ ”100.

Portanto, embora em sua cosmologia o mundo físico tenha sido concebido como local de degradação, é forçoso afirmar que Plotino seja indiferente em relação a ele, pois, em sua filosofia, está claramente expressa a ideia de que todas as coisas se dirigem para o Bem, nesse caso, o próprio mundo sensível está incluído:

As inanimadas se dirigem à alma, e a alma se dirige a ele através do intelecto. Mas todas as coisas possuem algo dele por serem unas de certo modo e por serem entes de certo modo. E também elas participam da forma: portanto, com participam dessas coisas, assim participam também do bem101.

Ou seja, o mundo sensível, assim como a Alma, faz parte, na última das instâncias, do Uno, conforme palavras de O’Meara: “A matéria não é, portanto, uma causa independente; ela deriva, em última análise, como tudo o mais, do Uno”102.

A matéria é, assim, o extremo limite do Uno (para além dos limites da matéria não há mais processão alguma, ou não existe mais nada), lugar da obscuridade, da multiplicidade

99 PLOTINO, 2006, p. 325. 100 Ibid., p. 329.

101 Ibid., p.322.

102

O’MEARA, apud ULLMANN, Reinholdo Aloysio. O conhecimento em Plotino. Teocomunicação. Porto Alegre, vol. 28, n. 121, p. 413-431, set.,1998, p. 418. Igualmente ULLMANN, Reinholdo Aloysio. Plotino - Pagão, Panenteísta, Místico. Teocomunicação. Porto Alegre, vol. 24, n. 106, p. 685-690, dez., 1994, p. 688, diz: “O último limite a que chega a Alma do Mundo é a matéria, o ‘informe’, o ‘mal primeiro’, antípoda do Uno, imperfeição; é mais sombra do que luz, mas também deriva do Uno”. Da mesma opinião é BUSSOLA, 1990, p. 41: “As emanações diminuem e se degradam à medida que se afastam do Uno; logo, num momento pode não haver mais luz, somente escuridão... mas, cuidado!, pois essa escuridão está ainda no Uno. O último lampejo antes da escuridão é apenas a última forma de emanação do Uno, dentro do Uno”. Já CHADWICK, Henry. Agostino. Trad. di Gaspare Bona. Torino: Giulio Einaudi Editore, 1989. p. 21, é mais categórico, e diz que a matéria é produto da Alma: “A Alma, ainda mais abaixo na escala do ser, tem o poder de produzir a matéria”. Assim sendo, temos aqui vários depoimentos que confirmam nossa hipótese de monismo e emanatismo em Plotino. Entretanto, é bom observar que, apesar de o mal derivar, em última instância, do Uno, uma vez que ele é identificado com a matéria, que é a última processão do Uno, isso em nada compromete a incorruptibilidade e imutabilidade de Deus, pois, como já vimos em outra ocasião, a degradação das emanações sucessivas em nada diminui a perfeição do Uno, que pode dar, sem perder, pois Deus é ao mesmo tempo imanente e transcendente - panenteísta.

e, portanto, fonte ou possibilidade do mal. Por isso, Plotino fala da matéria, quando de seu estado de natureza pura, ou seja, sem que esteja unida à Alma do Mundo, para com ela formar o ser, como privação ou defecção - falta de forma, indeterminação, distanciamento do Bem - o não-Ser, a que Plotino dá o nome de “nada”103.

Nesse sentido, o mal é visto como elemento necessário dentro da degradação da perfeição expressa na multiplicidade das essências. Como nenhuma delas pode realizar todo o Ser, há inevitavelmente, ou necessariamente, uma desigualdade das essências emanadas. O mal faz parte da “ordem” do universo, ou está determinado aprioristicamente, já que, conforme observa Cirne-Lima, “se tudo está pré-programado no ovo inicial, assim também o é o mal”104. Ele não é nada mais que o limite, a negação do bem maior e, nesse sentido, em nada incomoda a beleza do universo, e de certa forma ele é um “bem” necessário105, reduzindo o mal a um problema puramente de estética na ordem natural do universo.

Assim sendo, em última instância, a vida sensível é concebida como um bem, mas esse bem não pertence a todo vivente, uma vez que “a vida é o bem para aqueles que partilham do viver, e o intelecto, para aquele que partilha do intelecto: dessa forma, para aquele que partilha da vida do intelecto, dupla é sua vida para o bem”106. Logo, infere-se a existência de um movimento do transcendente para o imanente justificado pela difusão do Uno para o múltiplo.

Esta compreensão precisa ser tomada como ponto de partida para que possamos dar continuidade à questão da felicidade. Nesse aspecto, notemos, então, que sua doutrina da felicidade se caracteriza como o movimento oposto, que parte do múltiplo para o Uno, ao absoluto, ao repouso no Bem, ou seja, do que é ou está na imanência tendo como meta a transcendência. Frente a esta constatação, fica a dúvida: o que pode ter levado as almas a esquecer sua origem? Segundo Plotino,

A origem do mal que as tornou má foi a vontade própria, foi a entrada na esfera da alteridade e o desejo de pertencerem a si mesmas. Elas conceberam um prazer nessa liberdade, e se permitiram mover-se por si mesmas. Tomando assim o caminho contrário, e afastando-se cada vez mais [de seu

103Vale salientar aqui, que o termo “nada” utilizado por Plotino significa tão-somente o estado mutável em que

se encontra a matéria no seu eterno e contínuo movimento que dá origem aos seres múltiplos. Entretanto, apesar de ser mutável, fluida, informe, indeterminada, a matéria é algo real. Não é o nada absoluto do cristianismo, onde se diz que Deus criou o mundo do nada.

104CIRNE-LIMA, Carlos. Dialética para principiantes. Porto Alegre: Edipucrs,1997. p. 85.

105Cf. JOLIVET, Regis. San Agustín y el neoplationismo cristiano. Trad. de G. Blanco ; 0. Iozzia ; M. Guirao

; J. Otero ; E. Pironio y J. Ogar. Buenos Aires: Ediciones C.E.P.A, 1932. p. 94 e 97 que diz: “A matéria, em si mesma, é o mal, mas no conjunto tem o seu papel e, com relação ao todo, tem também sua bondade e sua beleza. De fato, o mal não existe, então, segundo Plotino, senão relativamente às essências mais perfeitas, não é senão um bem menor”.

princípio], acabaram por perder até mesmo a lembrança de sua origem divina107.

Desse modo, a alma de cada indivíduo, partícipe em certa medida daquela mesma Alma hipostática, é a nossa alma decaída e presa ao corpo, mas que, interiorizando-se, assumindo-se conscientemente como tal, almeja elevar-se ao transcendente. Logo, “colocar a felicidade nas ações é colocar em algo exterior à virtude e à alma: a atividade da alma está no pensar e no agir desse modo em si mesma. E isso é a felicidade”108. Na verdade, esse é o início do caminho para a eudaimonia. Interiorizando, inversa e sucessivamente, através da Alma hipostática inicial, a nossa alma deve ascender ao Nous porque, efetivamente, provém de lá, já que é desta segunda hipóstase que a alma individual pode alcançar o Primeiro princípio. Nesse sentido, Plotino faz a seguinte recomendação:

Aqueles que querem seguir o caminho contrário de retorno à sua origem – isto é, ao Supremo e ao Uno –, devem considerar duas coisas. E quais são elas? Devem, primeiro, considerar o quanto as coisas que a alma agora aprecia são desprovidas de valor. [...] A segunda coisa que devem considerar é a origem e a dignidade da alma. E esta consideração é mais importante do que a primeira, pois quando é exposta com clareza, faz com que a primeira se torne óbvia109.

Assim sendo, a alma não deve esquecer sua origem, pois ela é provocada a lembrar-se de sua essência mais íntima. Visto que, a alma

É um princípio (arché) distinto de todas essas coisas que organiza, move e vivifica, tem de ser mais honorável que elas, posto que se desfazem quando a Alma as abandona, mas a alma (psykhé) vive para sempre pois jamais abandona a si mesma110.

Entretanto, essa lembrança não deve ser motivo de orgulho, mas de responsabilidade, que se fundamenta em sua própria constituição, haja vista ser esse elemento fator de grande importância no movimento de retorno. Sendo que o caminho de retorno se encerra na direção ao Uno, passando inversamente pelas hipóstases da Alma universal e do Intelecto:

É nesse lugar [no Uno] que a alma encontra seu repouso e escapa das irresoluções, pois ela eleva-se à região que está livre de toda irresolução. Lá ela percebe; lá ela não sofre, lá ela vive sem se esconder. Pois nosso agora, que é uma vida sem divindade, é apenas um traço que imita aquela. A vida de lá é o estar em obra da percepção, e essa atividade, num calmo contrato com o Uno, faz nascer às divindades, faz nascer a beleza, faz nascer o

107 PLOTINO. Tratado das Enéadas. Trad., apresentação, introdução e notas de Américo Sommerman. São

Paulo: Polar Editorial, 2000, p. 69.

108 Idem, 2006, p. 300-1. 109 Idem, 2000, p.70. 110 Ibid., p.71.

sentimento de justiça, faz nascer a virtude. Isso tudo é concebido pela alma que se realiza com a divindade, essa é a origem e o fim; a origem porque vem de lá, o fim, porque o bem está lá. Ao chegar lá, tornar-se o que é o que foi. Mas, enquanto permanece aqui, entre as coisas desse exílio, permanece caída e sem asas. E o amor inato da alma indica que o bem se encontra lá111.

Portanto, a vida perfeita plotiniana pode ser encontrada apenas junto ao Bem que é o Uno, o primeiro Princípio. Ou seja, a vida feliz é aquela vivida segundo a natureza intelectual da alma humana que pode realizar a volta a seu verdadeiro lugar na instância máxima da transcendência, seu princípio e seu fim:

A alma é uma coisa tão honorável e divina, tenhas certeza de que podes aproximar-te de Deus por meio dela e, com ela, ascender a ele. Ele não está muito distante: os estágios entre [a alma e Deus] não são muitos112.

Segue-se a isso, a conclusão de que a existência da alma provém da inteligência, como já foi citado no início deste tópico, a sua razão torna-se ato quando esta contempla a Inteligência, e nessa ação, seu pensamento e ato tornam-se sua propriedade. No entanto, só podemos chamar de atos da alma propriamente ditos os que são de natureza intelectiva, determinados pelo seu próprio caráter.

Recordemos ainda que, no que se refere ao mundo físico, Aristóteles não descartava completamente que a posse de bens exteriores fosse um auxílio à consecução da felicidade. Plotino, no entanto, os vê do modo meramente contingente, pois estes bens são

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